Bestiários - o Leão

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Bestiário telúrico (Manuscrito Asmole 1511 do Bestiário de Oxford da Biblioteca Bodleian, c. 1180-1220, fol. 11r.)

1. Le Bestiaire (c. 1121-1152) vv. 25-390

O Leão


O que em grego se chama “leão” significa “rei” em francês.1 O leão, de várias formas, domina muitos animais. Por isso o leão é rei. Escutai agora suas propriedades.

Tem a expressão ardente, o pescoço grosso e com juba; o peito, na frente, é quadrado, valente e agressivo, os quartos traseiros, delgados; tem um grande rabo e as patas lisas e ágeis próximas aos pés; os pés, grossos e cortados, têm unhas largas e curvadas. Quando tem fome, enfurecido, trata os animais como a esse asno que urra e fala.2 Escutai, pois, com toda a convicção, o significado disso.

O leão significa o Filho da Virgem Maria. É, sem dúvida alguma, o rei de todos os homens; por sua própria natureza, tem poder sobre todas as criaturas. Com atitude feroz e terrível vingança aparecerá aos judeus quando os julgar, pois eles obraram mal quando o cravaram na cruz, e devido a esta ação perversa não têm rei próprio. O peito quadrado representa a força divina; os quartos traseiros muito delgados mostram que Ele foi humano depois de divino; o rabo, a justiça que se fecha sobre nós; mediante a pata, que tem lisa, mostra que Deus é rápido, e que foi conveniente se entregar por nós; o pé, que tem cortado, mostra que Deus rodeará o mundo e o terá no punho; através das unhas, se entende a vingança contra os judeus, e pelo asno entendemos evidentemente aos judeus. O asno é estúpido por natureza, como diz a Escritura, e não sairá de seu caminho a menos que o arranquem dali. A mesma natureza têm os judeus, que são uns néscios: não crêem em Deus, a não ser pela força; não se converterão, a menos que Deus lhes dê essa mercê. Escutai agora outra natureza, segundo o texto sagrado.

Quando o leão quer caçar e comer uma presa, traça um círculo no solo com seu rabo, como está comprovado; sempre que quer apanhar uma vítima, deixa uma abertura que sirva de entrada aos animais que deseja e que quer converter em sua presa. Tal é sua natureza que não haverá besta alguma que possa ultrapassar seu limite, nem ir além. Isto é o que mostra a ilustração3, e tem um sentido figurado.

O rabo, conforme indica o texto sagrado, é a justiça que pende sobre nós; pelo círculo, temos que entender naturalmente o Paraíso, e a brecha é a entrada disposta para nós, se fazemos o bem e abandonamos o mal; e nós somos representados pelas bestas, naturalmente.

Quando o leão está enfurecido, golpeia com suas patas, pisoteia a terra quando se encontra desgostoso, e esta propriedade está refletida pelo desenho.

Através do leão entendemos a Jesus Cristo, e nós somos sua terra em figura humana. Então, quando nos castiga com alguma desgraça sem que tenhamos cometido maldade nem tenhamos má vontade, isto significa sua ira, e que o maltratamos de alguma maneira. Quando não se porta com as gentes conforme todos os seus desejos e se vêem encarcerados ou com enfermidades, dizem então os infelizes que Deus não os ama em absoluto e que não merecem que os castigue assim; não sabem os afligidos que Deus não os castiga antecipadamente, que Deus põe em dificuldades a quem estaria menos atribulados se pudesse decidir e fazer o que quisesse. Mas Deus os acorrenta ao mal para que não cometam maldades. Deus ama muito a quem quer castigar; recordai, pois este é o significado.

Também diz a Escritura que o leão tem a seguinte natureza: quando o homem o persegue, vai com o rabo apagando suas pegadas do solo enquanto foge, para que o caçador não saiba como encontrá-lo. Isto tem um grande sentido, e deveis recordá-lo.

O leão, ao fugir, vai cobrindo suas pegadas: o rastro do leão representa a Encarnação que Deus quis tomar na terra para conquistar novas almas. E certamente o fez secretamente: se colocou nos degraus em que se encontrava cada ordem - profetas, apóstolos - até que chegou ao nosso, se converteu em homem de carne e osso, se fez mortal por nós e assim, segundo uma ordem aceitável, venceu o demônio. O demônio enganou o homem; Deus venceu o homem, que não o reconheceu, e depois ao diabo, mediante sua adequada virtude. Se o demônio tivesse sabido que aquele homem mortal era Deus, não o havia conduzido à crucificação. Assim Deus obrou habilmente, sem que o demônio se dessa conta; Deus se ocultou de nosso inimigo, que não soube que Deus era aquele homem até que o comprovou. Deus se ocultou tanto que os anjos do céu que estavam no Paraíso não o reconheceram. Por isso, quando voltou o Filho de Deus em majestade para o lugar de onde havia partido quando se encarnou por nós, perguntaram aos anjos que estavam com ele:

“- Quem é esse rei de glória que regressa com o triunfo?” Os que estavam com Deus deram a seguinte resposta: “- Este é o rei de glória que regressa com o triunfo.” E os anjos que estavam no céu também perguntaram: “- Por que carrega roupas de cor vermelha?” Os anjos e Nosso Senhor responderam: “- Pelo martírio que temos sofrido na terra para conquistar vossas almas.” E assim entendemos, através das pegadas do leão, que Deus quis ocultar-se para enganar o demônio.

O leão teme o galo branco e o ruído dos carros em movimento, e tal é sua índole que dorme com os olhos abertos. E isso haveis de entender nas figuras que vês.

O galo branco significa os homens de vida virtuosa que anunciaram sua morte antes que Deus falecesse. Ele muito a temia, pois era homem, e o texto sagrado demonstra que o próprio Deus disse: “- Pai, perdoa-Me pela morte que devo sofrer: que Tua vontade não se detenha por mim.” Assim mostrou ser homem em sua morte. Tal e como o homem é alma e corpo, Cristo é Deus e homem. E sabeis que Deus disse a São Pedro o seguinte: que lhe negaria três vezes antes que o galo cantasse. Em sua honra, o galo canta todas as horas, dia e noite, e nós, igualmente, cantamos a prima, a terça e meio-dia, e rezamos dia e noite para o Nosso Criador.4 Por isso, cantam os freires da matinas ao alvorecer: então Deus foi julgado, golpeado e atado; e ao sair o Sol os clérigos cantam a prima, pois então Deus ressuscitou e nos arrancou da morte. E cantamos a terça, quando é a hora da terça, pois então Deus foi castigado e elevado na cruz. E às doze, os clérigos cantam a hora do meio-dia: então se produziu a escuridão, quando foi morto na cruz; o Sol se escureceu e não deu luz devido à autêntica luz da dor que Deus sofreu devido à Sua humanidade, não à Sua divindade.

E falamos tudo isso lendo a Paixão; recorde-a, pois tem um profundo sentido. Cantamos as nonas, porque a essa hora o espírito se retirou, tremeu a terra e se quebraram rochas de diversas formas. Recorde-o, pois tem um profundo sentido. E se cantam as vésperas ao entardecer, porque então Seu corpo autêntico foi encerrado no sepulcro. Assim, ficam cumpridas as vésperas, que significa que Deus cumpriu tudo ao vencer o demônio; então veio silencium, que chamamos silêncio. Começa o repouso, e então nos calamos e os diabos se movem, que sempre atuam de noite, quando deixamos de rezar eles se põem a deambular: pela noite, os demônios, que chamamos de negros, têm o poder de obrar, pois são filhos de Neron.5 Por isso, quando chega o dia, eles fogem da luz e nós, com a claridade, louvamos o Criador, nos levantamos com o dia e recitamos nossas preces. Ouvi, graças ao magistério, o que significa o carro.

O carro designa, na verdade, os quatro filhos de Deus: Marcos, Mateus, sem dúvida, Lucas e São João, e o ruído significa a morte do Filho de Maria que eles anunciaram ao mundo, em virtude da qual as gentes ficavam redimidas: Jesus, por ser homem, tinha medo.

E sabeis outra atitude do leão: ele é de tal índole que dorme com os olhos abertos. Sabeis que isto representa o Filho da Virgem Maria, enquanto velava em Sua morte, quando destruiu a morte mediante a morte, chamou o demônio à morte e disse que seria sua morte, sua destruição e nosso descanso. E em Sua morte velou, quando encarcerou o demônio; mediante Sua morte, venceu a Satanás, nosso inimigo. E mercê à morte do Senhor, nos foi dado repouso, e assim entendemos o sonho do leão.

Figuradamente, o leão também tem outra propriedade: no dia em que vê um homem a primeira vez, se põe a tremer; e podeis comprovar isso mirando essas ilustrações.6

O temor do leão mostra razoavelmente que Deus se humilhou ao encarnar-Se em um homem, pois teve divindade primeiro que humanidade, assim como o homem é alma e corpo, do mesmo modo foi Deus e homem. E isso é suficiente a esse respeito. Escutai outra questão.

Sabeis que a leoa trás ao mundo seu filhote morto, e quando o tem, chega o leão, que tantas voltas dá em seu redor, rugindo, que no terceiro dia o filhote ressuscita. E esta propriedade mostra o sentido seguinte. Sabeis que a leoa representa a Virgem Maria e o leãozinho a Cristo, que morreu pelos homens. Durante três dias jazeu na terra para conquistar nossas almas, segundo sua natureza humana, não segundo a divina. Igualmente obrou Jonas, que permaneceu dentro do peixe. Entendemos pelo rugido do leão a virtude de Deus; mercê a ela, Cristo ressuscitou, arrancado do Inferno. Tal é o significado que não deveis esquecer. Na verdade, isto diz sobre a autoridade do leão. Mas não vou tratar mais desse assunto.

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British Library, Royal MS 12 C. xix, Folio 6r.

2. Bestiário catalão (século XV)

Texto do Manuscrito B7

Este livro é chamado Espelho de exemplos das naturezas de alguns animais, concordante com muitas sentenças da Sagrada Escritura, e possui um estilo muito gentil, feito por um reverendo freire da Ordem de São Francisco, dos claustrais, o qual, para evitar a vanglória e por humildade, não coloca seu nome. É um livro antiqüíssimo. Laus Deo.

Proêmio

É certo que todas as coisas que os homens deste mundo sabem, existem por duas razões8: a primeira razão é pelo sentido, a segunda razão pela ciência. E cada uma dessas duas razões tem dois companheiros, que são estes: do sentido9, um é a graça de Deus e outro o conhecimento da razão; e os companheiros da ciência, um é a administração das Escrituras10 e outro o entendimento do bom engenho. 11

Digo-vos o que conta a santa Escritura. Ela diz que o sentido é mais nobre coisa que o ouro e a prata, porque dá forma.12 E que seja verdadeiro o que a Sagrada Escritura conta de Salomão, que foi quase o primeiro homem sábio do mundo e que, em sua juventude, pediu a Nosso Senhor Deus que lhe desse sentido. E Nosso Senhor, que tudo sabe, viu que seu pedido era a coisa mais gentil que poderia ser pedida. Assim, enviou-lhe um anjo para lhe dizer que ele teria um terço do sentido que teve Adão. Vê-se que este sentido foi pela graça de Deus. Ainda diz a Santa Escritura que o anjo lhe disse: “- Por que vós pedistes este dom?” E Salomão respondeu: “- Porque com o sentido conseguirei tudo o que é mais necessário ao corpo e à alma. E como todos os bons dons vêm de Nosso Senhor Deus, o sentido é um dos mais nobres dons que o homem pode ter de Deus (por razão do conhecimento).”13

A verdadeira Escritura diz, e assim o crê o homem forte, que os filósofos que foram retos foram homens que tiveram um bom coração e um bom cérebro, e conheceram o corpo do Sol, da Lua, das estrelas e de todo o firmamento. E através do sentido natural, eles conheceram as naturezas dos oceanos, das bestas da terra e dos peixes do mar; e conheceram as naturezas das árvores, das ervas e das pedras preciosas; e conheceram os quatro elementos dos quais o mundo é feito, as quatro complexões do homem das quais ele é complexionado; e conheceram muitas outras coisas que seriam largas de dizer, e ainda, conheceram, por razão do conhecimento (e da razão), que aquele era Nosso Senhor Deus, que todas as coisas havia criado. E assim mesmo, os profetas e muitos outros santos conheceram Nosso Senhor Deus14, pois São João Batista o conheceu e disse: “Ecce agnus Dei qui tollit peccata mundi15, e São João Evangelista conheceu ainda grande parte das coisas celestiais, tanto que não houve nenhum homem que pudesse saber mais que ele, o mesmo vos posso contar de muitos outros.

Vês que através das maneiras ditas acima os homens conhecem o mundo, uns pelo sentido, o qual lhes dá Nosso Senhor Deus por graça, e o mesmo daqueles que o conhecem pelo conhecimento da razão. E como Deus agiu dando tudo ao homem, o homem o chama sentido natural, pois Deus verdadeiramente fez a natureza e o que a ela pertence.

Agora haveis entendido alguma coisa do sentido (e da ciência). Agora entendereis como os homens sabem pela ciência.

O primeiro companheiro da ciência é a boa administração das Escrituras16, pois as Escrituras e os ministros ensinam qual coisa é a Gramática, a Dialética, a Retórica, a Aritmética, a Geometria, a Música, a Astrologia, sobre as Leis, a Medicina, a Cirurgia, como fazer naus e barcos, como pintar e talhar, e como fazer todas as outras coisas que pertencem ao homem. Dessa maneira os homens sabem e podem saber. Isaías, Elias, Jeremias, Daniel, Salomão, São João Batista, São João Evangelista, São Pedro, São Paulo e outros sábios profetas, cada um deles soube por escrito o que souberam e conheceram.

O segundo companheiro da ciência, qual é? O entendimento de bom engenho. Esse bom entendimento de bom engenho dá a saber (e a conhecer) as grandes utilidades das profecias, das filosofias, das escrituras celestiais e das temporais; e dá a conhecer muito mais. E através do entendimento de bom e sutil engenho os homens fazem agora experiências de medicinas e de coisas naturais que foram desconhecidas pelos outros homens, e sabem fazer muitos artifícios, afinando e desenvolvendo as coisas que foram primeiramente encontradas por outros. Pois através do entendimento os homens fazem melhor neste tempo mais belos palácios e muitas outras coisas que faziam há tempos atrás. E poder-vos-ia dizer muitas outras razões (mas isso basta).

Agora desejamos dizer quais são as principais razões pelas quais os homens desejam saber tudo o que sabem. E é bem verdade que o homem pode nomear o sentido e a ciência natural. E a ciência não é o sentido natural, isto é, acidental. E deveis crer que o que os homens sabem naturalmente e acidentalmente o sabem porque Nosso Senhor Deus os conduziu a saberem isso por sua santa graça (de outra maneira não o poderiam saber, pois o anjo disse à Virgem: “– Invenisti gratiam apud Dominum17: encontraste a graça com o Senhor). Pois Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança, fez o céu, a terra e todas as criaturas, do ar, da terra e da água, e todas as virtudes das ervas e das pedras preciosas. Todas essas coisas Nosso Senhor Deus fez primeiramente para a utilidade dos homens. E mais: Deus fez os anjos para a utilidade dos homens; assim diz a Sagrada Escritura.

Logo, quanto valeria o que Deus fez para nossa utilidade, se a nós não tivesse dado a graça e o sentido de saber as propriedades e naturezas do que criou e fez sob os céus? Pois se o homem não soubesse curar as enfermidades que existem nos corpos dos homens, Deus teria feito tudo em vão. Essa é a razão pela qual Nosso Senhor Deus quer que os homens saibam e conheçam por natureza e acidente tudo o que Deus fez propriamente para a nossa utilidade.

Assim, à guisa disso, rendamos graças Àquele que é tão misericordioso Pai e Senhor Nosso, quem mostrou para saber e conhecer todas as coisas para nossa utilidade, para que tomemos exemplo à nossa edificação.

Das quais coisas nós contaremos algumas, para louvor de Nosso Senhor Deus (e de Sua bendita mãe), e para a utilidade da linhagem humana.18

3. XIV - Do Leão

O leão é a mais nobre besta que existe, e é chamado senhor das outras bestas pelas nobres complexões que tem em si, entre as quais é esta uma de suas naturezas: ele desfaz suas pegadas com o rabo de tal maneira que os caçadores não encontram o caminho por onde ele passou.Pg. 41-44. A outra natureza que o leão tem é que, quando está no cume de uma montanha, desce-a correndo com uma grande força (até o pé da montanha). A outra natureza é que a leoa faz seus filhos pareçam mortos; e estando mortos há três dias, no fim o leão vem e grita com eles tão fortemente que eles o escutam e tornam a viver. A outra natureza é que quando ele come e algum homem passa diante dele e não o olha na cara, ele o deixa ir e não lhe faz mal; mas se o homem o olha na cara, incontinenti ele pula sobre ele e lhe faz todo o mal que pode. Ainda há uma outra natureza: quando está no bosque e o homem lhe passa na frente e se humilha muito humildemente, ele não lhe faz mal, pelo contrário, lhe faz mercê.

De cada uma dessas naturezas podemos apreender um bom exemplo. Assim como o leão desce correndo do cume da montanha com uma grande força, Nosso Senhor Jesus Cristo desceu do céu para a terra com tão grande força amorosa que salvou a geração humana.

E assim como o leão desfaz suas pegadas com o rabo e os caçadores não encontram o caminho por onde ele vai, Nosso Senhor Deus, quando veio a este mundo para nos salvar, quis cobrir Sua divindade com a carne humana para que o diabo não pudesse reconhecê-Lo, e para que as gentes que O vissem fazer milagres não pudessem saber que ele era o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem; e apesar de O virem jejuar quinze dias, fazer vinho da água, ressuscitar os mortos, curar os endemoniados e (tornar sãos os doentes) purificar leprosos, satisfazer com cinco pães e dois peixes mais de cinco mil pessoas (e ainda terem sobrado doze cestos cheios de sobras) e muitas outras coisas que o viram fazer, as gentes não o reconheceram (até que Ele foi ao Inferno para livrar os santos pais e os santos profetas, e então o diabo O reconheceu).

E assim como o leão ressuscita seus filhos ao fim de três dias por sua grande voz, Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou no terceiro dia de Sua morte, e por Sua ressurreição todos aqueles que crêem n’Ele firmemente estão salvos, e também toda a geração humana.

Assim como o leão não faz mal ao homem que não o olha na cara enquanto ele come, e depois, se o olha na cara, cai sobre ele e lhe faz todo o mal que lhe pode fazer, o mesmo acontece com este mundo: quanto mais o homem repousa e coloca seu coração aqui, mais trabalho tem, pois todos os tempos está em pavor de perder os filhos que tem, ou que aquelas suas abundâncias a alma não possa levar; naquele momento, o mundo lhe vem abaixo, tomando-lhe um filho, depois os bens e depois dando-lhe trabalho, tribulações e doenças, nunca lhe desejando o bem, somente o mal. Mas quando o homem não coloca seu entendimento neste mundo nem em suas bem-aventuranças, o mundo não lhe faz mal nem lhe pode fazer, pois quem não deseja avareza, a avareza não lhe pode tomar a alma; e também quem não deseja a luxúria e a expulsa para trás dos ombros, a luxúria não lhe pode tomar a alma, e o mesmo de todos os outros pecados. Pois Jesus disse no Evangelho: “- Quem abandona o mundo por mim, Eu o farei grande em Meu reino.”19

Assim como o leão tem piedade do homem que se humilha a ele, Nosso Senhor Deus tem piedade quando o homem sábio se humilha a Ele por boas obras, confessando seus pecados com dor e contrição do coração e pedindo-Lhe perdão e misericórdia. Então Nosso Senhor Deus tem mercê e piedade e perdoa a todos os seus pecados, chamando-o para Sua Glória celestial.

4. Texto do manuscrito G - Leão

O leão é uma forte besta. E por onde passa desfaz o rastro com ao rabo. E quando tem filhos, lhes faz de mortos e por três dias grita tão fortemente em suas orelha até que os veja vivos.

Notas

  • 1. Philippe de Thaün. Le Bestiaire (ed. E. Walberg), H. Möller, Paris-Lund, 1900. In: MALAXEVERRÍA, Ignacio. Bestiario Medieval. Madrid: Ediciones Siruela, 2000. Esse é o mais antigo bestiário francês, escrito em versos de seis sílabas (3.194 versos), e segue com bastante fidelidade o texto latino do Physiologus (séc. III-V d.C.). Seu autor, de origem anglo-normanda, dedica sua obra a Aelis de Louvain, segunda esposa de Henrique I da Inglaterra (1100-1135), no manuscrito conservado em Londres; em outro exemplar, guardado em Oxford, a dedicatória é para Eleonor, esposa de Henrique II (1154-1189). Os manuscritos, ilustrados ou com vazios reservados para as iluminuras, contém prólogos em latim e indicações para o artista. Os 38 capítulos deste bestiário, editado por Walberg, estudam os quadrúpedes, as aves e as pedras (um pequeno lapidário), sucessivamente, e Philippe se refere a suas fontes como Physiologus, bestiaire, un livre de grammaire, Ysidre (Isidoro) e escripture.
  • 2. O texto remete às iluminuras do Bestiário.
  • 3. Mais uma vez o texto remete às iluminuras do Bestiário.
  • 4. Nesta passagem a seguir o autor explica o simbolismo do canto dos clérigos: “As horas do dia eram denominadas segundo as horas de orações: matinas (meia-noite), laudes (três da manhã), primas (primeiras horas do dia, ao nascer do Sol ou cerca de seis da manhã), vésperas (seis da tarde) e completas (na hora de dormir).” - TUCHMANN, Barbara W. Um Espelho Distante. O terrível século XIV. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990, p. 56.
  • 5. Satanás.
  • 6. O texto remete às iluminuras do Bestiário.
  • 7. Tradução e notas de Ricardo da Costa feita a partir da edição Bestiaris (a cura de Saverio Panunzio). Barcelona: Editorial Barcino, 1964, vol. II, p. 05-11. Este Bestiário é uma cópia de um Bestiário toscano também do século XV.
  • 8. No original italiano “strade”.
  • 9. Que sente, dotado de sensibilidade, que recebe facilmente as sensações externas.
  • 10. No original “amaestrament”, isto é, no sentido de ensinamento, com o manuseio constante e a leitura regular da Bíblia.
  • 11. Faculdade inventiva, talento.
  • 12. O editor sugere que se trata de uma corrupção ou lacuna do copista, pois em outros manuscritos ao invés de “dar forma” há “e a força”. No entanto, optei por preservar o texto original, pois parece dar a idéia que o sentido é mais importante que o ouro e a prata porque dá forma, estrutura o pensamento humano, isto é, dá sentido às coisas pensadas.
  • 13. Todos os parênteses também se encontram no texto crítico.
  • 14. Passagem que mostra que os medievais conheciam Deus através da natureza, isto é, percebiam e buscavam Deus em Sua criação (o mundo como um espelho/reflexo da ação divina).
  • 15. Jo I, 29.
  • 16. Ver nota 6.
  • 17. Lc I, 30.
  • 18. Aqui termina o Prólogo do Livro.
  • 19. Mt 10, 39; Lc 9, 24 e 17, 33.