Na Alvorada da Modernidade

Música e Pintura no tempo de Afonso V (1396-1458), o Magnânimo

Ricardo da COSTA
Alexandre Emerick NEVES
Antonio Celso RIBEIRO

In: Mirabilia Journal 37 (2023/2), p. 496-570.

Resumo: Estudo da música renascentista e da pintura hispano-flamenga da corte napolitana da Coroa de Aragão durante o reinado de Afonso V, o Magnânimo (1396-1458) à época do Poemário (Dictats) de Ausiàs March (c.1397-1459).

Abstract: Study of Renaissance Music and Spanish-Flemish Painting from the Neapolitan Court of the Crown of Aragon during the reign of Alfonso V of Aragon, the Magnanimous (1396-1458) at the time of the Poetry (Dictats) of Ausiàs March (c.1397-1459).

Palavras-chave: Afonso V, o Magnânimo – Arte hispano-flamenca – Música Renascentista – Coroa de Aragão.

Keywords: Afonso the Magnanimous – Hispano-Flemish Art – Renaissance Music – Crown of Aragon.

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I. Vir sapiens dominabitur astris

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Medalha Liberalitas Augusta de Afonso V (1449, M.A.N.), de Pisanello (c.1395-1455). DIVVS · ALPHONSVS · REX · / · TRIVMPHATOR · ET · / · PACIFICVS · (“Divino Afonso, rei triunfante e pacífico”). Busto com o rei de perfil. À esquerda, um elmo encimado por um Sol com raios e decorado com um livro aberto, com o lema: Vir sapiens dominabitur astris (“Um homem sábio dominará os astros”); à direita, uma coroa real; acima dela, ·M·/·C·C·C·C· (1400) e, abaixo, XLVIIII (49).1

Vir sapiens dominabitur astris (“Um homem sábio dominará os astros” – ou seja, seu próprio destino). É a divisa escrita no livro aberto à esquerda na medalha de Afonso V produzida por Pisanello (c.1395-1455) (imagem 1).2 O mais curioso é que, até então, o livro era um atributo iconográfico tradicionalmente associado ao mundo clerical.3 Ao universo da Igreja. E “bordado” em seu elmo! O que isso representa? Que se trata da imagem de um príncipe conquistador, guerreiro, vitorioso, mas também um monarca culto, mecenas da Cultura. Das Artes.

Essa faceta monárquica, de um governante sábio, erudito, já havia algumas vezes sido concretizada na Idade Média, tantas foram as admoestações dos intelectuais da Igreja – recorde-se a famosa máxima a respeito do bispo de Chartres, João de Salisbury (c.1120-1180): Rex illiteratus est quasi asinus coronatus (“Um rei iletrado é quase como um asno coroado”4).

É curioso constatar que esse mecenato e florescimento cultural avant la lettre, ocorrido em uma pujante monarquia hispânica vigente em um período imediatamente anterior à união dinástica castelhano-aragonesa de Fernando II de Aragão (1380-1416) e Isabel I de Castela (1451-1504), antecedeu em mais de um século o tema literário-nobiliárquico intitulado armas y letras, tão brilhantemente personificado por protagonistas do quilate de Garcilaso de la Vega (c.1431-1596), Cervantes (1547-1616), Lope de Vega (1562-1635) e Calderón de la Barca (1600-1681).5

Esse apoio às artes por parte de Afonso V também foi uma consequência natural do fato de nosso personagem estar quase que inteiramente identificado com a Itália de seu tempo6, que então vivia o início de seu primeiro Renascimento – posteriormente denominado Quattrocento.7 E concretamente pois, a partir de 1442, a corte aragonesa foi instalada em Nápoles. E lá seu mecenato desabrochou.

Assim a História registrou Afonso, o Magnânimo (1396-1458), V rei de Aragão (1416-1458), III rei de Valência, I rei de Maiorca, de Nápoles (1442-1458), da Sicília, da Sardenha (1416-1458) e IV conde de Barcelona.8

II. O contexto

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Territórios da Coroa de Aragão em 1443. Wikipedia.

A longa linhagem da casa dos condes de Barcelona (878-1410), iniciada no final do século IX com Wifredo, o Peludo (840-897) – último conde nomeado pela monarquia carolíngia e primeiro a legar seus territórios a seus filhos9 –, terminou com a morte de Martim I, o Humano (1356-1410), que não deixou herdeiros.10

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Letra capitular iluminada com o rei Martim I, o Humano. Livro dos Privilégios da Cartuxa de Vall de Cristo. Codex C. 1385 (primeira metade do século XV). Biblioteca da Catalunha, Barcelona, Espanha.

Logo surgiram pretendentes para o condado barcelonês. Dentre eles, Luís III (1403-1434), rei de Nápoles e duque de Anjou11 – reivindicação feita por sua mãe, Iolanda de Aragão (1381-1442), rainha de Nápoles e de Jerusalém –; Jaime II (1380-1433), conde de Urgel12 – quem já havia exercido o vice-reinado da Catalunha entre 1407 e 1410 (e preferido do [anti]papa de Avignon, Bento XIII [1328-1423]) –, e Fernando I de Aragão (1380-1416) – conhecido como Fernando de Antequera por ter vencido os muçulmanos na batalha de Antequera (Medina Antakira, então no Emirado de Granada), em 1410.13

Por isso, foi necessária uma arbitragem. A Corte Geral da Catalunha (órgão legislativo convocado pelo rei de Aragão e conde de Barcelona) nomeou doze bons-homens (prohoms) para administração, enquanto a sucessão do condado não era resolvida. Bento XIII interveio: coordenou uma reunião com representantes de Aragão, Valência e Catalunha em Caspe (Saragoça).14

Entre os nove representantes, três de cada reino, São Vicente Ferrer (1350-1419), confessor de Bento XIII.15 Após dois meses de deliberações, foi eleito Fernando de Antequera, coroado em fevereiro de 1414. Embora só tenha reinado dois anos, estabeleceu a nova orientação da política exterior da Coroa de Aragão: Sardenha e Sicília. E Nápoles.16

II.1. Rumo ao Mediterrâneo: o sonho italiano

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Tavola Strozzi (1472-1473), de Francesco Rosselli (1448-1513). Têmpera sobre madeira, 82 x 245 cm, Museo nazionale di San Martino, Nápoles. A cidade é descrita a partir do cais, em primeiro plano, com seus castelos – Castel Nuovo e Castelcarmine – suas muralhas, igrejas e construções civis, até as colinas, com destaque para a Cartuxa de São Martinho no alto, à esquerda. O ambiente arquitetônico citadino é tipicamente italiano (recorda os traços retos estilísticos de Simone Martini [1284-1344] e de Ambrogio Lorenzetti [1290-1348]). No golfo, muitos barcos. A luz no céu, à esquerda, sugere um amanhecer. Há uma revoada de pássaros, cena que faz alusão à cultura medieval cortesã, do ambiente conhecido como locus amoenus, típíco do gótico, especialmente do gótico tardio.

Com a morte de Fernando I (1416), o condado de Barcelona e os reinos de Aragão e Valência passaram para seu filho primogênito, Afonso V (1396-1458). E já em 1420 Afonso mostrou sua orientação mediterrânica: submeteu a Sardenha e parte da Córsega. Convidado por Joana II de Nápoles (1371-1435) para ser seu filho adotivo e herdeiro – Joana estava sendo sitiada por Luís III de Anjou (1403-1434) – Afonso foi recebido em Nápoles como libertador: derrotou Luís (e os genoveses que o apoiavam), mas logo se indispôs com Joana, que anulou sua adoção (1423).17 Afonso retornou para a Espanha em 1424, mas as portas de Nápoles haviam sido abertas.

Até 1430, Afonso esteve envolvido nos assuntos peninsulares, quando a Trégua de Majano (1430) – que pôs fim à guerra castelhano-aragonesa de 1429-1430 – permitiu que voltasse ao seu sonho italiano. Em 1432, partiu com uma pujante frota rumo à Itália. Dois anos depois morreram Luís III e Joana II. As circunstâncias pareciam propícias. Afonso então assediou Gaeta, no Lácio, mas foi derrotado por uma frota genovesa em Ponza (1435) e feito prisioneiro pelo almirante Biagio Assereto (c. 1383-1456). Desastre: além de Afonso e do rei de Navarra João II (1398-1479), também foram aprisionados o infante D. Henrique, o almirante da frota Gutierre de Nava, o duque de Sessa, o príncipe de Taranto, e muitos nobres valencianos, aragoneses, sicilianos e napolitanos (em Nápoles já havia uma facção pró-Afonso).18

Assereto entregou Afonso ao duque de Milão, Filippo Maria Visconti (1392-1447) – quem, curiosamente, seria o último duque milanês.19 Foi um prisioneiro cativante: em dois meses foi libertado, sem precisar pagar resgate! Mais: pactou com o duque uma aliança.

Afonso renovou sua investida rumo à Itália. Partiu da Sicília, avançou pela Calábria e novamente atacou Nápoles (1438). Foi rechaçado por Renato I de Anjou (1409-1480), irmão de Luís. Voltou à carga em 1441. Finalmente venceu. Entrou triunfalmente em Nápoles (23.02.1443), recebeu o reconhecimento de sua coroa napolitana por parte do papa Eugênio IV (1383-1447), estabeleceu sua corte no Castel Nuovo (posteriormente reformado pelo arquiteto maiorquino Guillem Sagrera [1380-1456]20) e nunca mais retornou a seus reinos catalães-aragoneses.

III. A cena musical no Quattrocento

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Hubert (c.1385-1426) e Jan van Eyck (c.1390-1421). Metade superior do políptico intitulado Retábulo de Gante (ou Adoração do Cordeiro Sagrado), 1430-1432, 3,75 (altura) x 5,2m (comprimento). Catedral de São Bavo, Ghent, Bélgica. Representa a redenção celestial – com o clássico arranjo da deesis (δέησις) de Deus (identificado como Cristo Rei ou Deus Pai), ladeado pela Virgem e João Batista que, por sua vez, são ladeados por anjos músicos e Adão e Eva.

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Anjos cantando (à esquerda) e anjos tocando (à direita). Detalhes da metade superior do Retábulo de Gante (ou Adoração do Cordeiro Sagrado), 1430-1432, 3,75 (altura) x 5,2m (comprimento). Catedral de São Bavo, Ghent, Bélgica. Os anjos cantores do painel à esquerda portam paramentos litúrgicos do início do século XV e interpretam o Gloria in excelsis Deo. Van Eyck incorporou a Ars nova, movimento musical introduzido na Borgonha por Guillaume Dufay (c.1397-1474) e Gilles Binchois (c.1400-1460). As melodias da Ars nova expressavam os distintos estados de espírito da alma. Graças ao realismo de Van Eyck, a julgar pelas expressões faciais, podemos supor que os anjos cantam polifonicamente e, pela posição de suas bocas, quem canta qual voz: soprano, contralto, tenor ou baixo. Eles estão ao redor de um atril giratório em um móvel esculpido com uma imagem de São Miguel matando o dragão (Ap 12,7) e dois profetas (um deles, Isaías). No painel à direita, um anjo toca órgão e outros dois (com uma harpa e uma viola) aguardam seu momento para tocar. Nos ladrilhos do piso, a inscrição AGLA (Atta Gibbor Le’olam Adonai – “O Senhor é sempre todo-poderoso”).

Apesar de cronologicamente ainda pertencer ao final da Idade Média, a música do tempo de Afonso V foi classificada já como Música da Renascença.21 Tempos distintos no mesmo tempo. Ela não foi apenas um conjunto de técnicas composicionais, mas um rico complexo histórico de condições sociais, estados intelectuais de espírito, atitudes, aspirações, anseios, hábitos dos instrumentistas, sistemas de apoio artístico, comunicação intracultural e muitos outros ingredientes que se juntaram para formar uma florescente matriz energética musical.22

Essas características puderam ser constatadas pelos historiadores em diferentes lugares e épocas na Europa ao longo do século XV como, por exemplo, nos centros urbanos de Nuremberg, Veneza, Londres e Nápoles, ressalvadas suas diferenças nos distintos momentos de suas histórias locais.23 Três fenômenos da maior importância social provocaram um dramático impacto no mundo musical de então em termos do ambiente em que os compositores trabalharam e criaram: 1) a difusão do Humanismo, 2) o crescimento da cultura burguesa e, por fim, 3) as crises religiosas do século XVI.24

Em relação ao Humanismo, é lugar-comum a constatação que suas discussões intelectuais propiciaram o motor cultural que impulsionou a mudança do estilo musical da Renascença. Para muitos, foi a principal força de renovação das artes no período.25 Mas é igualmente verdade que essas mudanças de estilo alteraram a função da música, que foram, por sua vez, respostas auditivas às mudanças nas estruturas e necessidades das sociedades de então, a começar pelo próprio Humanismo, e depois por outros fenômenos, como a mudança religiosa, o surgimento da imprensa e o crescimento da burguesia, todos eles íntima e inextricavelmente relacionados.

Na Weltanschauung renascentista, a arte, mesmo religiosa, era uma exaltação da vida26: não abstrata, mas concreta; não simbólica, mas idealista; não fanática, mas humanamente serena; não convulsiva, mas controlada e estilisticamente precisa, mesmo no drama.27 Como na estética gótica, seu princípio era a luz: o homem contemplava a Deus na luz da natureza.28 A música passou a contar com componentes intensos: elegância, serenidade e plasticidade, associados à uma compósita doçura, onde o feminino dominava com seu suave fascínio.

Madonna, percebida já no final do Românico numa materna luz humana, consolidou-se como um importante tema plástico.29 Nos cancioneros medievais, a imagem da Virgem era venerada e adornada com honrosos epítetos. Os poetas e trovadores dedicaram-lhe cantigas, hinos e louvores, em orquestrações ricas e coloridas pela voz humana.30 Os temas teológicos associados a Ela (Dormição, Assunção, Coroação) eram costumeiramente representados na pintura (afrescos e iluminuras) com gloriosos e iluminados anjos cantores, músicos (imagem 7).

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Detalhe de A Coroação da Virgem (c.1432) de Fra Angelico (c.1395-1455). Têmpera no painel, 112 x 114 cm, Galeria Uffizi, Florença.

A nobreza, através de seu patronato, incentivou as artes, e as cortes europeias se consolidaram como centros de resplendor artístico. No âmbito da música sacra, na primeira metade do século XV, além das escolas eclesiásticas francesas e italianas, a capela pontifícia de Roma era a mais renomada. Já no da música profana e cortesã, as capelas reais da Inglaterra, da França e as dos duques de Borgonha foram as mais importantes, embora também praticassem a música sacra.31

Para entender a arte musical praticada na corte de Afonso V, é necessário conhecer a cultura e a prática musical das demais cortes e igrejas da Europa de então. Caso façamos uma comparação entre a música e a cultura literária e artística da época, constatamos como o protagonismo da música rivalizou com as belas artes e letras de seu tempo. E como a música – como arte tecnicamente difícil e sempre refinada – costuma ser um reflexo bastante fidedigno da cultura de um reino ou de uma escola, seu estudo na corte de Afonso, o Magnânimo é de grande interesse para se conhecer melhor a cultura humanística e literária de sua corte.

O reinado de Afonso coincide com uma grande transformação da arte musical na Europa. Entretanto, ainda são poucos os estudos detalhados sobre a música em sua corte, tanto em Aragão quanto em Nápoles durante seu reinado e o de seu filho, Fernando I de Nápoles (1423-1494). Existe uma farta documentação que principia com Rogério II da Sicília (1095-1154) e seus sucessores (1137-1282) – quando o ducado de Nápoles foi incorporado ao reino da Sicília – e que prosseguiu com os reis da família Anjou e sucessores (1282-1285) até Afonso, o Magnânimo.32

Como vimos, em junho de 1442, Afonso emergiu vitorioso de uma guerra de sete anos contra Renato I de Anjou (1409-1480), anexando o Reino de Nápoles ao seu já vasto território aragonês. Em pelo menos um aspecto, porém, a vitória foi vazia, pois a vida intelectual e cultural de Nápoles já estava moribunda desde os gloriosos dias de Roberto I de Anjou, o Sábio (1276-1343), mais de um século antes, quando Nápoles foi palco para nomes como Giotto (c.1267-1337), Bocaccio (1313-1375) e o principal teórico musical da época – Marchetto de Pádua (fl. 1305-1319).33

Credita-se a Afonso o fato de, ao ter optado por estabelecer Nápoles como sua capital (para consternação de Barcelona!), ter proporcionado a rápida transformação da cidade e da corte em um dos principais centros culturais da Itália. De fato, por ela passaram a circular escritores humanistas, poetas espanhóis, pintores vindos de várias regiões da Europa, além de escultores, arquitetos e, naturalmente, músicos.

Dos vários ensembles musicais que compuseram o estabelecimento musical da corte, foi provavelmente a capela real – organização eclesiástica, musical e educativa que atendia às necessidades espirituais cotidianas da corte – a que o sinceramente devoto Afonso dedicou maior atenção. Esse cuidado quase paternalista transpareceu na profunda ligação com sua herança espanhola, causa do rápido crescimento da capela: de um pequeno grupo de não mais de seis ou sete cantores adultos que acompanhavam o rei de um acampamento a outro durante a guerra contra os angevinos, a capela cresceu para um total de quinze capelães e cantores adultos (registro de outubro de 1444), chegando a vinte e um em fevereiro de 1451 e vinte e dois em novembro de 1455. Além disso, foram acrescentados dois organistas e um número indeterminado de meninos cantores.34

Assim, na metade do século XV, Nápoles ostentava uma das maiores capelas da Cristandade e, de longe, a maior da Itália. Entre os seus funcionários estavam o teórico, retórico e mestre de canto Jaume Borbó (fl. 1439-1453)35, o cantor e compositor Pere Oriola (fl. 1440-1484), e o compositor Juan Cornago (c.1400-1475).36 Este último recebia o fenomenal salário de 300 ducados, além de isenção do elagio (imposto sobre os salários).37

Não somente a capela era notável por seu tamanho, mas pela elevada qualidade de suas performances e por seu repertório. Em junho de 1451, a capela foi bem recebida e elogiada em Florença, onde se apresentou no Duomo e SS Annunziata como parte de uma missão de boa vontade através da qual Afonso esperava melhorar sua deteriorada relação com os Medici.38

A influência da capela real de Nápoles pode ser observada em circunstâncias distintas: em 1454, o marquês de Ferrara, Módena e Reggio, Leonel d’Este (1407-1450), fundava sua própria capela conforme o more régio, o que pode bem significar que ele a teria modelado de acordo com a de Nápoles. Duas décadas mais tarde, em 1473, Galeazzo Maria Sforza (1444-1476), duque de Milão, famoso mecenas das artes e da música e notório por costumeiramente invadir a capela napolitana para recrutar cantores, teria instruído seu embaixador em Nápoles a obter cópias dos salmos que a capela tinha cantado para comemorar as vitórias militares de Afonso.39

Dentre suas obrigações, a capela real era solicitada a cantar com acompanhamento de órgão, presumivelmente polifonia, tanto nas missas quanto nas vésperas dos grandes dias de festa, embora não se descarte a eventual participação de instrumentos de sopros. Como Afonso mantinha tradições espanholas quando transferiu a capela para Nápoles – ele mandou fazer novas cópias das ordenanças domésticas aragonesas do século XIV – a corte pode ter conhecido o uso ocasional de instrumentos de sopro durante a liturgia, prática não inédita na época, mas que somente se tornaria habitual a partir do século XVI.40

A capela de Afonso tinha um pronunciado ar hispânico. Em todo o seu reinado, os funcionários da capela eram esmagadoramente de origem espanhola, pois muitos cantores já estavam ligados à corte antes de sua transferência para Nápoles.41 Assim, a estratégia de recrutamento de Afonso contrastava com a utilizada em Florença e em Ferrara, onde, em 1450, já se buscavam cantores e compositores na França e na Borgonha. É difícil dizer se o Magnânimo estava ciente das novas direções artísticas exploradas pelos habilidosos franco-burgúndios. É fato que ele apreciava e colecionava pinturas, tapeçarias e objets d’art do Norte, mas se estava mais confortável com a capela composta por compatriotas espanhóis ou se era incapaz de atrair os ultramontanos por razões culturais e políticas, não sabemos. A língua da corte era o castelhano, e o catalão na Chancelaria e na Tesouraria. Assim, o matiz hispânico da capela nunca perdeu sua cor.

A música secular na corte também tinha um forte sabor peninsular, condizente como centro que servia de ponto de encontro para poetas de várias regiões de uma Espanha ainda descentralizada. Como vimos, o principal compositor de música secular foi Juan de Cornago, que chegou a Nápoles por volta de abril de 1453. Típico de sua poesia – com um estilo musical escuro, sombrio – é a seguinte canción, atribuída em diversas fontes literárias como de autoria de Juan de Mena ou com mais precisão, Pere Torroella, poeta catalão que residiu em Nápoles por volta de 1456 a 1458:

Yerra con poco saber
quien toviere tal creencia,
que firmeza de mujer
a los peligros d’ausencia
se pueda mucho tener.

Con fe de presta tornada,
non cessando el escrivir,
Bien podra alguna guardada
dos o tres dias bevir.

Mas a la mas detener
no les abasta la ciencia,
por qu’es se natural ser
tienen aquesta dolencia,
qu’es olvidança sin ver.42

Assim, Nápoles foi lar de uma tradição florescente de música e de poesia lírica que compunha uma contraparte hispânica (mais modesta musicalmente, claro) à brilhante tradição da chanson que a geração de Ockeghem (1420-1497) e Busnois (c.1430-1492) estava começando a cultivar na França e na Borgonha. E a corte de Afonso em Nápoles, mais do que qualquer centro na Espanha, foi o berço dessa música polifônica.43

III.1. Na corte aragonesa de Nápoles: El Cancionero de Montecassino (séc. XV)

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Arco triunfal de Afonso de Aragão (1453-1458), entrada para o Castel Nuovo, em Nápoles. Destinava-se a comemorar o arco temporário erguido em frente à catedral quando o rei Afonso entrou triunfalmente na cidade, em 1443. O mestre catalão Pere Joan (fl. 1400-58) supervisionou o projeto. Sob sua direção, Pietro da Milano (c.1410-1473), escultor lombardo que passou seus primeiros anos trabalhando em Ragusa, na Dalmácia, supervisionou o trabalho de pelo menos cinco mestres escultores (incluindo Francesco Laurana [c.1430-1502]) e trinta e três assistentes. O trabalho escultórico foi alocado a diferentes trabalhadores, o que garantiu a rápida conclusão do projeto. De 1455 a 1458, Isaías de Pisa (fl. 1447-1464) trabalhou no arco, embora sua contribuição para o programa escultórico seja controversa – provavelmente em seus campos inferiores.44

Tão importante para a vida musical da corte como aqueles que cantavam a liturgia e a canção secular foram os instrumentistas (ou ministres) alaudistas, harpistas, tecladistas e instrumentistas de sopro – que figuram nos livros de contabilidade desde 1430, quando seguiram Afonso de um campo de batalha a outro (como os cantores da Capela). Especialmente valorizados foram os instrumentistas de sopro que formavam a alta cappella, grupo composto por duas charamelas sopranos ou tenores (instrumento de palheta dupla precursor do oboé), uma bombarda (charamela baixo) e, eventualmente, um trombone.

Como Johannes Tinctoris (1435-1511) apontou em seu De inventione et usu musicae (c.148l), a alta cappella fazia apresentações em casamentos, banquetes, cerimônias públicas e cívicas, nas igrejas e em campo de batalha. Mas talvez sua função mais importante tenha sido fornecer música para dança social, diversão cortês desfrutada tanto em Nápoles como em qualquer outro lugar. Aqui, também, a influência era hispânica. Como disse um poeta anônimo de meados do século ao relatar uma pequena lista de danças que foram populares na corte, foi dada preferência para li balli maravigliusi / tratti di catalani.45

Como vimos, em todas as grandes cortes da Europa a música desempenhava um papel importante nas ocasiões de Estado, onde servia como expressão artística do esplendor dinástico. A mais bem documentada destas ocasiões foi a espetacular entrada triunfal de Afonso em Nápoles (23 de fevereiro de 1443), imageticamente imortalizada no friso do Arco do Triunfo que Afonso mandou erguer como porta de entrada em Castelnuovo (imagem 8).46

Além dos habituais trombeteiros reais que se deslocavam num carro trionfale – pelo menos doze neste dia – havia muitos outros carros alegóricos cheios de músicos que percorriam as ruas. Entre eles, segundo o poeta, jurista e cronista da corte Panormita (Antonio Beccadelli, 1394-1471), estava uma torre com quatro cantores que, vestidos como as figuras alegóricas da Magnanimidade, Constância, Clemência e Liberalidade (atributos virtuosos de Afonso), iam cantantes suam quaeque compositus versibus cantionem (imagem 9).47 Noutro local, no Largo del Mercato, seis meninos vestidos de anjos, sentados num arco de madeira dourada, cantavam, enquanto em cada um dos seggi (bairros) da cidade, mulheres fantasiadas dançavam nas ruas ao  som da música dos ministres.

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Detalhe do Arco triunfal de Afonso de Aragão (1453-1458), entrada para o Castel Nuovo, em Nápoles. Ao centro, no carro triunfal, Afonso V está sentado em seu trono encimado por um rico dossel. À frente de seus cavalos, músicos caminham, com instrumentos de sopro. À direita, em um templo com pilastras coríntias, músicos a cavalo, também com instrumentos de sopro.

O Magnânimo amava a música. Graças aos livros de contabilidade preservados, somos informados dos nomes, cargos e soldos de dezenas de músicos contratados em sua corte. Ao se transferir de Aragão para a Itália, ele já havia levado seus músicos e cantores. Há relatos de que ele se interessava pelo bom êxito de seus artistas. Registros mostram, por exemplo, que ele havia doado 165 sólidos ao trompetista Jordi Juliá para que este pudesse comprar um instrumento novo.

Uma carta real assinada em Jargent em 15 de maio de 1434, dirigida ao alaudista Comes, de Valência, informa que o Magnânimo pediu que fosse elaborado um alaúde para sua câmara real. Em outra carta, escrita na mesma data e dirigida a Galceran de Requesens (c.1400-1465), Afonso ordenou o pagamento do alaúde e seu envio para as terras da Sicília, tão logo fosse terminado.48

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Um anjo tocando um alaúde (c.1480), de Melozzo da Forli (1438-1494). Fragmento de afresco removido, 93,5 x 117 cm, Mvsei Vaticani, Cat. 40269.14.10.49

Também enviou seu organista preferido, Perrinet Prebostel (ou Pronostrau), à sua irmã Eleonor de Aragão (1402-1445), princesa de Portugal.50 Em outro relato, Afonso se encontrava em Traiguera (em 10 de novembro de 1429) e teria pedido ao vigário-maior da vila de Vall-de-roures o transporte dos órgãos de sua capela para o mosteiro cisterciense de Benifassà, ordenando que eles fossem tratados com cuidados extremos e que estivessem no mosteiro logo pela manhã do sábado seguinte. Também determinou que se pagasse um generoso soldo aos quatro homens que fizeram o transporte dos instrumentos. No mesmo dia 10 de novembro, Afonso enviou uma carta para Perrinet Prebostel pedindo encarecidamente que fosse com a maior rapidez para o mosteiro de Benifassà para estar preparado para tocar os órgãos quando o rei lá estivesse pelo sábado de manhã.51

Como já mencionamos, o rei Afonso conservara na corte de Nápoles os costumes e tradições de sua casa real de Aragão, rodeando-se de nobres catalães e castelhanos. Entre eles se encontrava Dom Iñigo de Guevara (c.1418-†1462), profundo conhecedor de música, canto e danças, além dos poetas Andreu Febrer (c.1375-c.1440)52, Jordi de Sant Jordi (c.1399-1424)53 e Pere Torroellas (c.1420-1492)54, que visitaram e serviram na corte napolitana. O rei também se rodeou de homens cultos da Itália, de Castela e de Aragão, debatendo com eles temas literários e filosóficos.55

A exuberância de sua corte contribuiu para que o Magnânimo se sentisse estimulado a encomendar cópias de manuscritos musicais. Dentre todas as ricas e numerosas compilações musicais por ele ordenadas, destaca-se o Cancionero de Montecassino (c.1480).56 Trata-se de um dos mais importantes manuscritos do período. Contém um repertório de música sacra e secular executado na corte aragonesa de Nápoles. Inclui hinos, salmos, magnificats57 e lamentações, de compositores franceses, italianos e espanhóis. Já sua música secular compreende chansons francesas, ballate e strambotti58 italianas e canciones espanholas. Muitas das composições deste cancionero são exclusivas deste manuscrito.

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Primeira página da peça Princeps Pilate de Bernadus que se encontra à página 247 do manuscrito preservado na Biblioteca dell’Abbazia.

No Cancionero há vários fascículos que originalmente se encontravam separados e foram reunidos somente no final do século XVII. Contém 228 páginas (123 em pergaminho e 95 em papel). A música está registrada nas folhas de papel, e datam do século XV. Já os pergaminhos contêm música dos séculos XIII e XIV, além de diversos escritos religiosos. O copista foi provavelmente um monge do mosteiro de San Michele Arcangelo de Planciano (Gaeta), ou talvez do mosteiro dos santos Severino e Sosiso (em Nápoles).59

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Primeira página da peça Princeps Pilate de Bernadus transcrita em notação moderna pelo Dr. Clemens Goldberg, disponível na Goldberg Foundation para consulta e performance.

A lista de compositores do Cancionero é generosa. Dentre eles, Guillaume Dufay (1397-1474), Juan Cornago (c.1400-1475), Johannes Ockeghem (1410-1497), Firminus Caron (1430-1480), Antoine Busnois (1430-1492)60, Jean Molinet (1435-1507), Pere Oriola (fl. 1440-1484), Hayne van Ghizeghem (c.1445-1497), Loyset Compère (1445-1518), Anthonius Piccardus (fl. 1469-1476)61, Johannes Quadri, Franchinus Gaffurius (1451-1522) e John Bedingham (†c.1460), além de dezenas de compositores anônimos.62 As imagens 13 e 14 mostram duas notações de uma mesma composição: na notação original e na moderna.

O Cancionero de Montecassino compreende as seguintes obras:

70 obras religiosas:

  1. 1 fragmento de Sanctus
  2. 1 seção de missa do Ordinário
  3. 3 Magnificats
  4. 6 salmos
  5. 35 hinos
  6. 2 lamentações
  7. 15 motetes
  8. 4 laude
  9. 3 motetes-canções

72 obras profanas:

  1. 32 peças profanas francesas
  2. 26 peças profanas italianas
  3. 8 peças profanas espanholas
  4. 1 peça profana em latim
5 peças sem texto ou fragmentos.63

Imagem 13

Fragmento da obra Zappay (lo campo) de autor anônimo (ed.: Pope e Kazanawa).

Imagem 14

Transcrição (em notação moderna) da obra Zappay (lo campo) de autor anônimo (ed.: Pope e Kazanawa).

Com a morte de Afonso, em 27 de junho de 1458, a situação política em Nápoles mudou abruptamente, assim como as atividades culturais em geral e a música em particular. O Reino de Aragão foi dividido: os territórios espanhóis e as ilhas foram para a posse de seu irmão mais novo, João II de Aragão e Navarra (1398-1479)64, enquanto o Reino de Nápoles na Itália continental passou para seu filho ilegítimo, Fernando I de Nápoles (1423-1494).65

Embora não fosse uma modesta possessão – o reino se estendia por aproximadamente o terço meridional da Itália atual, sua única e maior entidade política – isso significava que Fernando I estava isolado, pois Nápoles já não mais fazia mais parte da Coroa de Aragão, e a influência espanhola na corte, embora nunca tenha desaparecido completamente, começou a diminuir. Sob Fernando, Nápoles se tornou italianizada e, em sua perspectiva musical, internacionalizada.66

IV. A Pintura sob o mecenato de Afonso V

Imagem 15

Cancionero de Stúñiga (séc. XV), folio 1r (detalhe). Na parte inferior desse folio, as quatro virtudes (aristotélicas) coroadas, cada uma portando um atributo: da esquerda para a direita, a Justiça (com sua espada), a Temperança (com a cruz), a Coragem (com um anzol de três pontas) e a Prudência (com uma pilastra). Todas sustentam uma enorme láurea poética. Esse cancioneiro registra a produção poética da corte de Afonso, o Magnânimo. Foi confeccionado para a corte de Fernando I de Nápoles (1423-1494), único filho (bastardo) de Afonso e de sua concubina napolitana, Gueraldona Carlino, em delicado pergaminho de velino, com letra humanística, letras capitulares iluminadas em ouro e franjas de tipo vegetal.

O protagonismo da Música na corte napolitana de Afonso foi uma consequência natural do realce que a cultura cristã deu à audição, pelo menos desde o surgimento do canto gregoriano.67 Na Idade Média, a Arquitetura abarcava todas as artes (inclusive a Música, graças à liturgia). Da Escultura à Pintura (afrescos, vitrais), mas também mosaicos e bordados. Metalurgia, Ourivesaria. Artes menores.68 Com o desdobramento do gótico internacional e das novas sensibilidades do século XV – desde a visão encantada de Fra Angelico (c.1395-1455) até as geometrias imaginárias de Paolo Ucello (1397-1475) e o cromatismo aristocrático de Domenico Veneziano (1410-1461) – os artistas gradativamente adquiriram um novo e inusitado prestígio, sobretudo como (hábeis) exploradores de distintos campos do conhecimento.69 E ultrapassaram o âmbito eclesiástico.70

IV.1. Mas antes, livros à mão cheia71

Desde cedo, Afonso V esteve às voltas com as artes. Ciente de que, para a imagem do príncipe como homem magnífico, para sua melhor conduta principesca, era necessário despender grandes gastos para prover templos católicos e sacerdotes com objetos e ornamentos que assegurassem tanto o decoro quanto a pompa do culto, ainda como infante de Castela, instituiu uma grande feira em Medina del Campo (Valladolid). Para lá acudiam mercadores do norte da Europa, que traziam informações sobre as modas francesas e flamencas no que diz respeito aos objetos suntuários e artísticos.72 Seu modelo principesco: João I, duque de Berry (1340-1416), patrono das artes, bibliófilo e um dos maiores colecionadores da época.73

Aliás, Afonso logo demonstrou sua paixão pelos livros – inicialmente obras iluminadas (litúrgicas e hagiográficas), e depois clássicos (de Horácio [65-08 a.C.] a Ovídio [43 a.C.-17d.C.], e Valério Flaco [c.45-90] a Estácio [45-96]). Cedo também proibiu a saída de livros de seus reinos e determinou a criação do cargo de bibliotecário real, “guardião dos livros do dito senhor rei”. Como neófito interessado, além de organizar tertúlias cortesãs – intituladas A hora do livro – para comentarem os clássicos, Afonso acolheu e protegeu alguns dos humanistas mais prestigiados de seu tempo, como Antonio Becadelli, o Panormita (1394-1471), Bartolomeo Facio (1400-1457) e Lorenzo Valla (1407-1457)74 – este último chegou inclusive a ser seu secretário particular (1435-1447).75

IV.2. A pintura valenciana com Afonso V: Jacomart (c. 1410-1461) e Lluís Dalmau (fl. 1428-1461)

Imagem 16

Anunciação (c. 1450), de Jacomart (c. 1410-1461). Díptico, óleo sobre painel, 180 x 172 cm, Museu de Belles Arts de València. Destacam-se o tamanho, monumental, e a solenidade das figuras. À esquerda, o Arcanjo Gabriel; à direita, a Virgem da Anunciação. As palavras do Arcanjo estão distribuídas pelos dois painéis e funcionam como motivo unificador entre eles. A influência da pintura flamenga pode ser percebida tanto na forma da composição – um díptico – quanto no tratamento idealizado das figuras. Trata-se de um notável testemunho da assimilação das novas escolas de pintura do Norte em Valência de meados do século XV que inauguraram uma nova concepção da realidade.76

Jacomart (Jaume Baçó Escrivá) foi o mestre mais importante do panorama valenciano da primeira metade do século XV. Já em 1430 tinha sólida reputação artística. Em 1442, fez sua primeira viagem a Nápoles, convidado para levar sua arte à corte napolitana de Afonso V. Lá permaneceu como pintor do rei até 1451 – com duas breves interrupções para viagens a València e Tívoli (Roma) – realizando trabalhos intitulados de pinturas decorativas (estandartes, insígnias, escudos, sepulturas, relicários), mas também retábulos.77 Há elementos perceptíveis em seu estilo, influências do gótico internacional, naturalmente, mas também da arte italiana, sobretudo da flamenga.78

Porém, o pintor de Afonso V foi o valenciano Lluís Dalmau (fl. 1428-1461). Temos notícia que foi enviado a Castela (1428) e a Flandres (1431-1436) em missão comercial e diplomática, e para conhecer a pintura flamenca79, especialmente a de Jan van Eyck (c. 1390-1421) – a estética da Ars Nova flamenca estava muito presente na corte do Magnânimo.80

Além do interesse monárquico de comércio, relações diplomáticas e pesquisas artísticas do envio de Dalmau a Flandres, a comitiva formada em 6 de setembro de 1431 tinha também em pauta o interesse do rei pela tapeçaria. A inclusão de Dalmau nessa viagem deu-se para que seu principal artista tivesse contato com aquele renovado ambiente artístico, sobretudo com a já renomada técnica pictórica a óleo de Jan van Eyck. O contato do pintor valenciano com o mestre flamenco repercutiu decisivamente em sua obra e, consequentemente, causou um grande impacto no cenário artístico valenciano e catalão. O entusiasmo com a renovação da linguagem artística de Dalmau à época não impediu que sua absorção dos elementos eyckianos fosse considerada por críticos atuais como “entusiasta, superficial e pouco criativa”.81 A suspeita é de uma assimilação direta, sem a elaboração de uma linguagem plástica original, seja de um estilo pessoal, seja de uma corrente local, o que ocorreria a partir da convergência dos valores formais e simbólicos autóctones com os elementos estrangeiros. Talvez isso em parte explique uma avaliação tão severa como a supracitada, por intuir que Dalmau tenha se tornado um mero copista dos procedimentos e aspectos formais do mestre flamenco, sem criar uma identidade própria a partir deles.

Apesar do interesse dos historiadores pela arte hispânica com a presença de Dalmau em Flandres, é significativo o silêncio de boa parte de autores de algumas das mais conhecidos obras dedicadas à História Geral da Arte, desde Ernst Gombrich (1909-2001)82 a Horst W. Janson (1913-1982)83, sobre a influência da estética de van Eyck na região por intermédio da corte de Afonso V. Isso indica certo desinteresse pela cultura artística ibérica, muitas vezes tida como atrasada pela historiografia além-pireneus, pouco influente no contexto europeu da época. O fato de Afonso V ter fixado residência em Nápoles sem jamais ter retornado aos seus reinos hispânicos e, mais que isso, ter adotado a corte napolitana como a capital de seu reino, contribuiu para a atenção às transformações artísticas e culturais italianas em detrimento da contribuição ibérica.84

De fato, os estímulos culturais promovidos pelo monarca em sua capital corroboram essa concepção. A atenção dos especialistas só se altera a partir do magnífico realismo do barroco espanhol (1600-1750), enquanto a arte portuguesa permanece como coadjuvante.85 Isso repercute nos currículos acadêmicos de nosso país, onde pouco ou nada se estuda sobre o desenvolvimento artístico na região, apesar dos evidentes laços históricos.

É oportuno lembrar como o mecenato de Afonso V foi importante para a difusão do novo estilo. Na época, um estilo tinha então tamanha força que até hoje é difícil atribuir a autoria a certas obras, como um São Jorge, hoje desaparecido, cuja paternidade de Jan van Eyck ainda é historicamente incerta. O fato é que há um elo entre o cenário artístico do reinado de Afonso V com os avanços técnicos ocorridos em Flandres.86

O próprio Vasari atesta a postura assertiva de Afonso V quando narra a vida de Antonello da Messina (1430-1479), pintor que teria protagonizado a difusão da extraordinária técnica pictórica que impulsionou a revolução estética no renascimento italiano.87

Passando um dia de Palermo a Nápoles, lá ficou sabendo que o rei Afonso recebera de Flandres o referido painel pintado por João de Bruges com óleos que podiam ser lavados e resistiam a batidas; que se tratava de trabalho de bom desenho, segundo a maneira daquele país, e de grande beleza de colorido; que o rei tinha grande apreço por aquela maneira de trabalhar. Por isso, sentiu muita vontade de vê-lo. E, envidando todos os esforços, finalmente conseguiu ver a obra, e foi tamanho o efeito que sobre ele exerceram a vivacidade das cores, a beleza e a uniformidade da pintura, que ele, deixando de lado todos os outros negócios e preocupações, partiu para Flandres.88

Há dois pontos importantes para este tema: a) o reconhecimento do pioneirismo da pintura flamenca no processo de transição da têmpera para o óleo, nova fase na história da pintura, o Renascimento, assim como a maestria de Jan van Eyck, e b) a ativa participação de Afonso V nesse processo.

Tal momento artístico sublinhou aprimoramentos técnicos, mudanças estéticas e novas demandas imagéticas. Devemos também levar em conta a ascensão do Humanismo. Cabe, além disso, uma recapitulação da técnica pictórica recorrente até então: a têmpera (dipingere a tempera), mistura de pigmentos em aglutinantes solúveis em água (usualmente colas vegetais, como a goma arábica que poderia ser acrescida de mel para maior plasticidade). A têmpera a ovo foi amplamente usada, por sua maior elasticidade e aderência ao suporte, sobretudo a feita com gema. A base orgânica das têmperas carecia da adição preventiva de um fungicida.

O preparo e a execução da pintura a têmpera apresentavam dificuldades técnicas. Como era uma tinta em que os pigmentos precisavam ser misturados com os aglutinantes no instante da execução da pintura, requeria uma execução ágil, pois secava rapidamente. Isso impedia uma manipulação demorada das cores, o que dificultava a obtenção de um resultado mais detalhista. Além da destreza nas pinceladas, exigia-se gestos precisos.

A baixa elasticidade das têmperas requeria dos pintores suportes rígidos para trabalhos de grandes dimensões, especialmente na madeira. Devido ao manuseio e às variações de temperatura e umidade, a movimentação da superfície dos suportes flexíveis acarretava o aparecimento precoce de rachaduras (conhecidas como craquelês) nas camadas de tintas das pinturas. A aplicação da têmpera alcançou resultados satisfatórios em suportes flexíveis menores – papéis, tecidos, pergaminhos, papiros – tanto em relação à permanência da tinta quanto aos recursos técnicos e resultados estéticos em imagens de pequenas dimensões, sobretudo iluminuras de manuscritos.89

Profissionalmente ativo em Valência e em Barcelona, Lluís Dalmau foi um artista importante para o amadurecimento do realismo advindo da novíssima técnica pictórica de Flandres, a pintura a óleo. Embora esse material já fosse conhecido no Ocidente pelo menos desde o século VII, seu aprimoramento técnico-artístico elevou a estética pictórica a partir da elaboração de imagens críveis, conforme a similitude com a realidade visível: o ilusionismo.90

IV.2.1. Novas possibilidades

Além do intenso colorido, o ilusionismo pictórico incorporou elementos representacionais de outras categorias estéticas. A combinação do chiaroscuro com o sfumato ultrapassou o suporte pictórico plano e proporcionou aos artistas a obtenção de uma melhor volumetria dos objetos e dos corpos escultóricos.91 As perspectivas linear e aérea permitiram a disposição dos espaços habitáveis das câmaras arquitetônicas e das paisagens – urbanas e naturais – para a posição dos objetos e as performances dos personagens.

Em contraste com os pigmentos expostos ao ar, que proporcionam uma luminosidade amena, o elevado índice de refração do óleo foi o responsável pelo brilho e pela intensidade das cores que tanto fascinaram artistas e público. Enquanto a secagem por evaporação da água atribuía uma opacidade aveludada à fina camada de têmpera, a secagem por oxidação mantinha razoavelmente a fatura pictórica da tinta a óleo, que poderia chegar a pinceladas robustas (conhecidas como empasto). A pintura a óleo permitia a aplicação de camadas delgadas e transparentes diluídas em terebentina, oferecendo efeitos próximos ao das aquarelas (aguadas). As películas podiam ser aplicadas em camadas sucessivas (velaturas), que edificavam o delicado aspecto tátil de superfícies cristalinas, evidenciavam os volumes dos objetos e dos corpos em passagens tonais sutis de áreas iluminadas e intensificavam a sensação de profundidade em sombras densas. Entre a velatura e o empasto, a imagem pictórica a óleo admitia a característica dualidade entre a transparência e a opacidade que faltavam às têmperas.92

Por sua vez, o chiaroscuro, responsável pela realística representação da volumetria dos objetos e dos relevos anatômicos dos corpos, foi fruto dessa dualidade na pintura a óleo. Com os estudos de Anatomia e o incremento da perspectiva, tais possibilidades técnicas e suas respectivas características estéticas na pintura a óleo garantiram um refinamento na disposição dos corpos no espaço, na construção de um espaço habitável para as figuras comportarem-se como personagens reais, em atitudes dignas da presença de seres animados nas imagens pictóricas, fossem elas históricas ou alegóricas, seculares ou celestiais.93

IV.2.2. A Decapitação de São Baudílio (c. 1448)

Para melhor escrutinarmos a participação da corte afonsina nesse contexto de renovação estética, consideraremos duas obras de Lluís Dalmau, ambas da década de 1440. Analisaremos a Decapitação de São Baudílio (c. 1448) primeiro, na qual o artista ainda trabalhou na têmpera sobre madeira e, por isso, trata-se de obra de transição que mantém elementos típicos da estética medieval – compressão do espaço plástico, superfície dourada etc. – mesclados com recursos da nova pintura. Em seguida, A Virgem dos Conselheiros (1443-1445), pintura executada antes da Decapitação, mas na qual o artista já recorre às soluções estéticas da técnica a óleo aprendidas em Flandres.

Na Decapitação de São Baudílio (imagem 17), Dalmau incorporou à técnica de têmpera a ovo algumas novidades estéticas que conhecera em Flandres. Estima-se que esse painel seja originário do retábulo-mor da igreja de Sant Baldiri de Sant Boi de Llobregat (Baix Llobregat, Barcelona). Essa peça lateral do conjunto permaneceu em uma coleção particular até ser adquirida em leilão pelo Museu Nacional d’Art de Catalunya, em 31 de maio de 2017.94 Sem que se saiba ao certo como, quando e porque as peças do referido retábulo foram separadas, conserva-se ainda a peça Julgamento de São Baldílio, que reapareceu em um leilão em 1980, quando foi adquirida para uma coleção privada.95

Quanto ao trágico destino do santo, a tradição afirma que, durante o cumprimento de seu ministério como missionário em Nîmes, na França, Baudilio foi condenado à morte pelo imperador romano Flávio Claudio Juliano (Juliano II, o Apóstata, 331-363), supostamente por ter se recusado a oferecer sacrifícios aos ídolos pagãos romanos, mesmo sob açoites e torturas que culminaram com seu terrível martírio por decapitação, sob golpes de machado. Por perseverar na fé, seu infortúnio é tido como uma morte gloriosa, o martírio.96

Para escrutinar os elementos estéticos e formais da imagem, é difícil não principiar pelas desafiadoras dimensões dessa obra pictórica, composição subserviente à acentuada verticalidade do formato do suporte. Os atores estão distribuídos em duas colunas laterais, edificadas por camadas sobrepostas de corpos, criativo modo de expor um expressivo número de personagens em um espaço restrito. Assim, o artista resguardou o eixo central para abrigar, em forma de diálogo corporal, as duas figuras centrais do violento episódio: o santo mártir, abaixo, e o imperador, seu algoz, acima. Para isso, foi necessário um rebatimento na perspectiva, com o deslizamento do ponto de fuga do centro da imagem para o topo, para coincidir com o rosto do soberano entronizado.97 Esse artifício cenográfico operou uma distorção do espaço plástico, necessária, inclinando o chão, o tablado e o trono em direção ao espectador, para expor com a maior visibilidade possível todos os elementos da composição.

Imagem 17

Lluís Dalmau (fl. 1428-1461), Decapitación de san Baudilio (c. 1448), 152,5 x 101,5 x 9,5 cm, têmpera a ovo e ouro sobre madeira. Museu Nacional d’Art de Catalunya.

Seccionada horizontalmente, a composição de Dalmau submete os elementos da imagem a uma ordenação espaço-temporal onde se vê, sucessivamente, as três etapas do terrível acontecimento, de cima para baixo. Do topo, a ordem para a execução dada pela imponente figura coroada do soberano, entronizado e com o cetro imperial em sua mão direita; na parte central, à esquerda, a incômoda figura do carrasco descansa, exausta, ao lado do corpo decapitado da vítima abandonado no tablado com as mãos atadas às costas – para não deixar dúvidas da execução como um fato consumado. Na base da composição, por fim, eventos imediatamente posteriores à execução: a cabeça do santo em meio ao povo, que prontamente alcança socorro do santo homem através de seu sangue.

Ao dividirmos verticalmente a obra, o eixo central da composição parece ser dedicado ao simbolismo das figuras de poder.98 Na base do quadro, a cabeça do santo aparece no chão junto ao sangue derramado, ladeada por dois personagens maltrapilhos. Apesar do aspecto cadavérico, esverdeado, a santa face apresenta um semblante compassivo, emoldurado pelo halo dourado, este da mesma natureza material e simbólica – ouro – dos suntuosos detalhes que adornam seu manto, no centro da composição, que simbolicamente recobrem o cetro e a coroa usados pelo soberano, assim como a estreita faixa na parte superior do quadro, que assume um caráter sólido e abstrato.

Dominado pelo protagonismo do corpo fragmentado do santo e pela figura do imperador, a porção central da composição estabelece um caminho vertical, que parte da integridade corporal do soberano, entronizado com a coroa na cabeça, passa pelo corpo do santo caído, ao centro, chega à cabeça no chão para então retornar para o alto pela relação visual do halo, que adorna e destaca a cabeça do santo, com o plano dourado que encima a composição, para traçar um caminho de ida e volta no jogo entre os poderes terrenos e celestiais.99 Assim, a posição escolhida para a cabeça decapitada na composição reivindica a restituição da sua autoridade, que transcende os poderes mundanos e supõe sua vocação metafísica junto ao povo necessitado.

Na cena inferior, protagonizada pelos maltrapilhos, há mais uma vez uma leitura sequencial, dessa vez dos gestos dos personagens, que compõem uma minúscula procissão de fiéis em busca de providência divina.100 À esquerda, um homem ajoelhado, de costas para o espectador, com uma faixa de trapo na cabeça, possivelmente um cego, parece esfregar os dedos banhados no sangue do santo em seu olho esquerdo, enquanto um peregrino com sua bolsa de viagem põe a mão direita sobre a poça de sangue no chão, certamente para alcançar uma benção, pois a fenda em sua calça vermelha deixa ver uma ferida aberta em sua perna esquerda, o que justifica o cajado que porta.

Há ainda um outro, coxo, que parece aguardar sua vez para se aproximar com a mesma intenção, todos espiritualmente convictos do homem recém executado, mas com a cabeça já adornada pelo halo dourado, operar os milagres atribuídos a um santo martirizado. Segundo a tradição, após a cabeça decapitada do santo ter quicado três vezes no chão, surgiram três fontes de água em cada ponto em que tocou o solo, imediatamente visitadas pelos peregrinos que alcançaram a graça.101

A coluna à esquerda de espectadores proporciona espaço para a aparição da figura que, de certa forma, contrasta com todas as demais, sobretudo com a do santo mártir: o carrasco. Na composição, esse é o espaço das armas – dos soldados e do carrasco – enquanto o lado direto é dedicado aos cortesãos.102

IV.2.2.1. O carrasco

Imagem 18

Lluís Dalmau (fl. 1428-1461), detalhe de a Decapitación de san Baudilio (c. 1448), 152,5 x 101,5 x 9,5 cm, têmpera a ovo e ouro sobre madeira. Museu Nacional d’Art de Catalunya.

Portador da arma da execução, o carrasco (imagem 18) ganha destaque como um corpo estranho no conjunto da obra.103 De corpo inteiro, vestido parcamente de amarelo, cor que o destaca dos demais personagens e o associa diretamente com sua vítima, que portava uma túnica amarela de diácono – dalmática – ricamente adornada com elementos forais bordados em roxo e delicados acabamentos em dourado nas bordas.104

Com ar indiferente, seu rosto é representado com características animalescas – como os camponeses na arte medieval! – enquanto seu braço esquerdo, estranhamente contorcido, acentua sua deselegância. Com a temível arma apoiada no chão e um olhar vago, sua postura intui a sensação do cumprimento do dever, e de modo absolutamente desumanizado. Assim, sua existência adquire uma dimensão tão instrumental como a da ferramenta que usa em seu terrível trabalho. E análoga aos animais que lutam, para sobreviver na Natureza indomada!105

Artisticamente, é desafiador representar um acontecimento dramático em um suporte tão restrito, e com a presença de treze personagens. Dalmau acentuou não somente o estreitamento do espaço pictórico, mas a compressão de sua espessura. A opaca solidez do chão, de tom cinza, neutro – o mesmo tom do trono pétreo, de aspecto mais românico que gótico – e o fundo, rebatido na parte superior por um panejamento vermelho sangue, comprimem ainda mais a profundidade do espaço.106 Sufocam-no. E isso com tal intensidade que parece não haver ar suficiente entre os soldados e os cortesãos empilhados nas laterais, espacialidade menos natural do que a preconizada na estética renascentista, o que ressalta o momento de transição artística que a obra historicamente se situa.

Outra característica espacial de transição da obra é o tratamento do plano pictórico. Mesmo que já tenha sido excedida, a superfície pictórica ainda manifesta sua planaridade, pois resume-se à bidimensionalidade preenchida por planos coloridos opacos – tecido vermelho, chão cinza – ou coberta pela materialidade do ouro. No topo da imagem, o artista não optou por uma janela para uma vista paisagística. Sequer preocupou-se com o fechamento da câmara com um elemento arquitetônico qualquer, mas substituiu as possibilidades miméticas pelo artifício abstrato, ao mesmo tempo decorativo e simbólico, da cobertura do suporte pictórico com uma camada opaca de ouro.

A decoração de superfícies com ouro vem de longa data. Basta lembramos a condenação do profeta Jeremias  (c. 650-570 a.C.) aos ídolos mesopotâmicos adornados à mão com ouro pelos artistas.107 A douração encerra desde o valor e a beleza naturais do ouro, como um metal valioso aplicado à coroa e ao cetro reais, até o valor místico da auréola dourada do santo, como símbolo de um valor absoluto, da imanência à transcendência.108 Restrito àquele que é dono de todo ouro e de toda a prata109, a superfície dourada que encima a composição de Dalmau alude a um valor de estima inacessível até ao soberano assentado em seu trono de pedra.

Uma análise crítica, portanto, deve ter em mente que a adesão àquele novo realismo, difundido desde Flandres, implicou também em uma renúncia à uma liberdade artística conquistada, que abdicara da herança helenística da representação fidedigna das coisas visíveis. A retomada da aplicação do ouro, agora na superfície pictórica, adveio como uma proveitosa independência do artista medieval em relação à estética naturalista.110 Assim como a distorção aplicada ao espaço plástico, a técnica da douração com a aplicação de finíssimas folhas de ouro resistiu em favor de um exercício composicional decorativo, mas ainda carregado de simbolismo místico. A adesão à modernidade artística flamenca não foi uma ruptura com o passado, mas uma cadenciada transformação da mentalidade medieval em uma experiência atualizada do presente, como veremos.

Com o expressivo número de personagens na Decapitação de São Baudílio, Dalmau se esmera para alcançar certa distinção nas fisionomias das figuras, o que demonstra seu esforço para atender a uma crescente demanda da estética pictórica de seu tempo. Um interesse notório na elaboração das imagens realistas fez com que cada personagem representado fosse identificado como um sujeito real. Nada mais condizente com sua época, a do desabrochar do retrato.111

Em cada tempo, a seu modo, o esforço dos artistas na representação da realidade vem de longa data. Por exemplo, pelo menos desde o século III a. C., os bustos romanos ofereceram notável contribuição à estatuária da Antiguidade pelo incremento do realismo dos retratos.112

Seus escultores demonstraram uma impressionante habilidade na inscrição dos pormenores descritivos dos modelos, não só por não pouparem nem rugas, nem verrugas, mas sobretudo por uma notável aptidão estética para fazer o rosto parecer como um personagem real.113

Também são conhecidos os Retratos de Faiyum, produzidos quando a presença romana no Egito influenciou a substituição das máscaras mortuárias em moldes estilizados, típicas nos sarcófagos, por retratos pictóricos dos falecidos. Pintados realisticamente na têmpera sobre tábua, eles romanizaram a arte funerária egípcia.114

IV.2.3. A Virgem dos Conselheiros (1443-1445)

Imagem 19

Lluís Dalmau (fl. 1428-1461), A Virgem dos Conselheiros (1443-1445). Óleo sobre madeira, 316 x 312,5 x 32,5 cm, Museu Nacional de Arte de Catalunha, Espanha.

Passemos agora à análise de uma pintura de Dalmau plenamente influenciada pelo advento da técnica a óleo e do pensamento pictórico por ele buscados em Flandres. Trata-se de A Virgem dos Conselheiros (imagem 19), obra paradigmática do artista, que recebeu de Afonso V a missão de absorver as novidades desenvolvidas pelos irmãos van Eyck. De fato, ao lado da temática religiosa, é inserido um tema adjacente, laico: os retratos dos benfeitores.

IV.2.3.1. A imagem como retrato

De certa forma, é em vista dessa possibilidade de presença, personificada, que os conselheiros encomendam seus retratos. Não mais para lhes imprimir um caráter do tipo superior ou paterno, afeito às figuras de autoridade egípcias ou romanas, ou de conotação memorial ou votiva, como os Retratos de Faiyum, mas para despontarem in persona junto aos ícones católicos – os santos, a Virgem, o Cristo – como figuras passíveis de receberem a graça divina (imagem 20). Retratados em uma convergência entre a imanência e a transcendência, materialmente alcançáveis apenas pelo ilusionismo pictórico, os mecenas foram aqui eternizados como partícipes dos paradigmáticos acontecimentos de sua fé.

Como vimos, os rostos como retratos, não como feições estilizadas, marcaram o retorno a um realismo que invocava a individualização dos personagens como figuras históricas.115 A vivacidade da figura prescinde de uma representação do corpo em movimento, motivado por uma causa externa.116

Imagem 20

Lluís Dalmau, A Virgem dos Conselheiros (1443-1445) (detalhe). Óleo sobre madeira, 316 x 312,5 x 32,5 cm. Museu Nacional d’Art de Catalunya.

Por sua vez, animado por uma introspecção, o repouso corporal não deixa de ser um gesto decidido. Contemplativo. Em A Virgem dos Conselheiros, a rígida imobilidade dos homens ajoelhados diante do trono da Virgem acentua sua presença na imagem devota. Além de registrar seus rostos no rol da História, a simbiose da retratística com a temática religiosa fez com que os conselheiros tivessem suas fugazes existências alçadas à eternidade celestial.

O reverente silêncio dos conselheiros reverbera um dos problemas dominantes no nascedouro da imagem renascentista: a influência dos antigos.117 A representação do movimento, mas com o pathos em sua fórmula nas artes figurativas vertido para a linguagem mímica (Pathosformel), foi um recurso da Antiguidade Clássica que perpassou a Idade Média sem necessariamente superá-la.118 Podemos intuir que artistas como Dalmau, nesse contexto, tinham a intenção de inscrever suas figuras – dos personagens celestiais idealizados e das personalidades históricas retratadas ­– posicionadas entre a autoconfiante mentalidade medieval na provisão divina e a autoconfiança calcada no frescor do pensamento humanista.119

Tanto a atmosfera psicológica quanto a latente espiritualidade dos conselheiros com a Virgem são oriundas do luminoso silêncio que ecoa de suas atitudes e gestos, ainda que contidos. Reverentemente ajoelhados, estão com as mãos em sinal de oração. Os santos que os acompanham os cobrem delicadamente com a doutrina de imposição de mãos..120 As bocas deliberadamente abertas das cantoras ao fundo e, sobretudo, os olhares que se cruzam diante do trono sem jamais alcançarem diretamente a tradicional imagem da Virgem com o Menino, tudo isso se entrecruza imageticamente para criar uma atmosfera que é ao mesmo tempo laica e religiosa, devota e profana, santa e humana, austera, pomposa e teatral.

A vida de uma época tem seu cerne em suas imagens. Investigamos a mentalidade das pessoas representadas na convergência dos personagens celestiais e históricos em cena. A vida dos santos divide espaço com a vida de seus adoradores, sobretudo os financiadores de suas imagens. Obras como a de Dalmau desvelam a imagem religiosa impregnada pela vida de sua contemporaneidade. Recorrentemente, comparecem à imagem criada a arquitetura da época, seus elementos, a natureza local e imaginária, os utensílios de culto, do cotidiano, os símbolos religiosos e laicos, os trajes litúrgicos, reais, cortesãos e populares, as características físicas dos personagens históricos retratados, sobretudo suas posturas e demandas. Tudo isso demonstra a intencionalidade do uso da expressão figurativa na vida da civilização. A imagem artística não é encomendada apenas para representar um quadro da época, fruto de sua gente e de seus costumes, mas como um modo de inscrição de elementos éticos, religiosos e artísticos, atuais na vida da sociedade em curso.121

Na melhor tradição da escola de Aby Warburg (1866-1929), rechaçamos uma demasiada atenção aos aspectos materialistas das imagens, já que esse tipo de abordagem quase desconsidera os elementos religiosos.122 Por isso, propomos uma metodologia mais abrangente, para que a análise tenha a pretensão de ultrapassar fronteiras geográficas ou históricas e abranja os mais amplos aspectos psicológicos das expressões humanas. Com isso, e para reconhecer o humanismo grego na profunda raiz da tradição latina da imagem medieval, nosso método reconhece que a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade estão inter-relacionadas em um processo de longuíssima duração.123

Tal abordagem, histórica, iconográfica – braudeliana e warburguiana – pode desvelar não só as origens das representações, mas também ser capaz de construir um quadro histórico e moral dos personagens como um diagnóstico imaginativo da formação do homem ocidental.124 Assim, a missão atribuída a Lluís Dalmau em busca da nova imagem flamenca inscreve-se na era da migração internacional de imagens125, tempo que ajudou a desabrochar a Renascença como um caso emblemático desse processo, figurado em sua arte valenciana nas serenas atitudes de seus reconhecíveis conselheiros.126

O caráter humanista do novo pensamento artístico preconizava o espaço pictórico como um lugar privilegiado para tais personalismos. Na moldura, em arco ogival, que atribui um espaço extra na parte superior do quadro, desponta o desafio de representar um aposento com a característica verticalidade da arquitetura gótica. Na cena, não é difícil notar um encurtamento dos pilares nervurados que ladeiam o trono da Virgem, o que faz com que seus capitéis fiquem rebaixados e ao alcance das figuras representadas. Os dois pilares em primeiro plano foram subtraídos para ampliar o campo de visão dos espectadores do quadro. Sem os capitéis, os dois pontos de recolhimento dos arcos foram decorados com anjos estilizados. Eles parecem sustentar todo o peso da abóbada.

Por sua vez, o topo do encosto do trono, que esteticamente replica a estrutura de uma catedral gótica esculpida em madeira,127quase alcança o teto oblongo em abóbada de aresta com nervuras (imagem 21). Assim, o artista distorceu a perspectiva dos planos baixos – o chão e a base do trono da Virgem – para obter uma visão ampla e aproximada da cena sem comprometer a característica verticalidade da arquitetura gótica.

Imagem 21

Lluís Dalmau, A Virgem dos Conselheiros (1443-1445) (detalhe). Óleo sobre madeira, 316 x 312,5 x 32,5 cm. Museu Nacional d’Art de Catalunya.

A moldura acompanha a estética arquitetônica da época, em especial um elemento basilar da cultura artística gótica: a catedral. Com elaborados relevos decorativos e, sobretudo, o arco com curvas ogivais que encima a composição e atribui ao suporte da pintura o mesmo espaço ampliado verticalmente para produzir um ambiente elevado.128 Delicados fustes com nervuras delgadas se unem aos arcos, dinâmicos e elegantes, e criam um entrelaçamento de linhas orgânicas que formam um elegante rendilhado nos interiores das janelas.129 Abertas, as janelas funcionam como elementos de comunicação entre o interior da câmara arquitetônica e o mundo que a rodeia. Criam assim um elo entre o particular evento transcendente e a realidade da vida em sociedade.

Como um recurso artístico, recorrente na arte pré-renascentista, as janelas abertas proporcionam uma vista tanto para a Natureza, graça divina, quanto para a cidade, fruto da prosperidade de uma humanidade renovada, agraciada. Em suas aberturas a música se faz presente, ambientando a cena com ares de um acontecimento místico, digno de louvores. Em cada lado despontam cinco figuras femininas que entoam cânticos de adoração a ecoarem no equilibrado ritmo das formas e na cromática harmonia que vivificam as atitudes contemplativas. De modo simbólico, metafórico ou literal, as janelas permitem não apenas um escrutínio dos elementos constitutivos de um período histórico, mas admitem o acesso à beleza de uma fé entronizada no esplendor da renovada estética medieval.

A luminosidade, outra característica das catedrais góticas, é reforçada pela abertura das janelas, com a substituição dos característicos vitrais coloridos pela vista da paisagem, o que mantém a entrada da luz diurna para o interior do ambiente. Ao mesmo tempo, as aberturas das janelas providenciam espaço, ainda que restrito, para as figuras que compõem o coro em ambos os lados do trono. Por analogia, a suntuosa moldura transforma o quadro em uma janela que oferece aos espectadores um acesso semelhante àquele dado aos anjos cantores ao fundo. Introspectivamente postados diante da imagem, temos o privilégio de experimentar, da abertura ao fundo, o calor ameno da luz que dá vida às formas. A brandura da musicalidade reverbera no equilibrado ritmo das cores do envolvente ambiente, habitado por corpos contemplativamente contidos.

O plano inferior da composição é preenchido por azulejos valencianos estampados com o escudo da cidade de Barcelona, repetido nas chaves que adornam as interseções dos arcos ogivais no teto da abóbada. Apesar de oferecidas aos bispos (cathedra = trono do bispo130), é a própria Virgem quem desponta entronizada e, com uma dobra tautológica, seu colo funciona como um trono para o Menino Jesus, sobre um suntuoso e macio manto lápis-lazúli que domina o centro da composição, avolumando-se em uma estrutura cônica cujo vértice aponta para o semblante ameno da Mãe de Deus.131

Um olhar mais pormenorizado nos personagens revela ainda mais a influência da pintura flamenca. Dalmau figura a Virgem de modo aproximado à Virgem e Menino com canônico Van der Paele (1434-1436), de van Eyck.132 Seus longos cabelos frisados cobrem os ombros e emolduram Seu semblante iluminado, que oferece um macio rosto ovalado, onde se destacam os olhos levemente delineados e uma pequena boca, com lábios sutilmente apertados sobre um delicado queixo. Sua cabeça pende ligeiramente para o lado, em meio-perfil, com o afetuoso olhar para baixo, evitando assim o contato direto com os demais.

Imagem 22

Lluís Dalmau, A Virgem dos Conselheiros (1443-1445) (detalhe). Óleo sobre madeira, 316 x 312,5 x 32,5 cm. Museu Nacional d’Art de Catalunya.

Dois modelos distintos de cruz associados aos martírios das santidades representadas estão dispostos em cada lado da cena, alusão à ordenança de Jesus para que cada um carregue sua própria cruz.133 (imagem 22) À esquerda do espectador, suntuosamente vestida com um manto dourado de arminho e bordado com troncos de árvores azuis, Santa Eulália de Barcelona (†303), virgem, martirizada com apenas treze anos de idade, está representada com seu atributo134: uma palma, símbolo de sua vitória final sobre o martírio, além da cruz em forma de X (cruz decussata), sobre a qual sofreu treze suplícios.135

À direita, uniformemente vestido com um manto verde esmeralda136, Santo André Apóstolo (c. 60) curiosamente suporta no ombro a crux commissa (e não a cruz decussata).137 Eulália e André apresentam os cinco conselheiros diante do trono da Virgem. Ajoelhados e com as mãos juntas, em posição de oração, os devotos mecenas comparecem vestidos com batas vermelhas forradas de peles que indicam a posição social que ocupam. Fielmente retratados em primeiro plano, com o realismo pictórico vindo de Flandres, é possível reconhecer personagens reais e coetâneos à pintura. São eles: Joan Llull, Francesc Llobet, Joan Junyent, Ramon Savall e Antoni de Vilatorta.138

Os conselheiros da cidade de Barcelona, orgulhosamente representados em A Virgem dos Conselheiros, confiaram a encomenda da obra a Dalmau pelo seu já afamado domínio do estilo pictórico nórdico, reputação aliás logo confirmada pela tradição artística: essa pintura posteriormente passou a ser reconhecida pelos especialistas como um marco na introdução da novíssima estética flamenca na Península Ibérica.139 Introdução essa, cabe lembrar, contemporânea à sua difusão pelas cidades italianas.140

Conclusão

Nas belas palavras de Fernand Braudel (1902-1985), de 1450 a 1650, uma multifacetada Itália, de deslumbrantes e variadas cores, derramou sua luz pelo mundo.141 Para o historiador francês, a irradiação desse clarão foi, indubitavelmente, o fruto maduro de três evidentes e irrecusáveis grandezas italianas: 1) na Antiguidade, Roma; 2) na Idade Média, seus séculos centrais (XII-XIV) – a primeira e verdadeira Renascença, com sua explosão demográfica, criação das universidades, surgimento das ordens mendicantes e expansão comercial142 – e, 3) no alvorecer da Modernidade, a segunda Renascença (do século XV à primeira metade do século XVII).143 Uma longuíssima maturação.

E como a História é sempre um continuum dessa natureza, como já destacamos, a reviravolta política mediterrânea com a conquista do Reino de Nápoles pelo Magnânimo, com seu apreço e estímulo às Letras e Artes, foi um dos formidáveis lampejos criadores da moderna luz italiana que o sucederia algumas décadas após seu desaparecimento. Pois a irrupção de Afonso V no teatro político da península itálica não só impulsionou o mecenato da cultura europeia com o estabelecimento de seu novo polo cortesão em sua corte napolitana, mas também aguçou a imaginação de notáveis pensadores e poetas, como foi o caso de Ausiàs March (c. 1397-1459), Dante hispânico, Petrarca valenciano e hispânico.144

Imagem 23

Retrato de Afonso V de Aragão (1557), de Juan de Juanes (c. 1503-1579). Óleo sobre madeira, 115 x 91 cm, Museo de Zaragoza.145

Por exemplo, March compôs um de seus ditados, o de número LXXII – panegírico em forma de circunlóquio (para o poeta não ser acusado do vício retórico do excesso [sobreslaus]) – inteiramente dedicado ao rei aragonês. É um belo exemplo de repercussão poética da expansão aragonesa no Mediterrâneo provocada pelo Magnânimo:

Ditado LXXII146

Ausiàs March (c. 1397-1459)

 

Trad. e notas: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)

Supervisão: Prof. Dr. Dr. Vicent Martines Peres (Universitat d’Alacant)

 

 

 

 

 

 

 

I.

Paor no∙m sent que sobreslaus me vença

Pavor não sinto de me exceder no louvor excessivo,147

 

lloant aquell qui totes llengües lloen,

por louvar aquele que todas as línguas louvam,

 

guardant honor a aquell eternal ésser

já que guardo a honra àquele Ser eterno

 

(on tota res en ell és pus perfecta

(onde toda coisa n’Ele é mais perfeita

 

que en si no és, obrant quant pot natura

que em si própria, já que obra por Sua natureza).148

05

ans he paor que mon parlar no cumpla

Pelo contrário, tenho pavor que meu parlar não baste

 

en publicar part de sa justa fama

para tornar pública parte de sua justa fama,

 

tal com requer i els mèrits seus l’atracen.

tal como o requer e seus méritos correspondem.

 

 

 

 

 

 

 

II.

L’hom envejós son ofici reposa,

O homem invejoso descansa em seu ofício

 

car d’egualtat ab ell negú pareja;

porque igualdade com ele ninguém quer emparelhar.

10

en ell pensant, cascú si justifica

Pensando nele, cada um se justifica

 

tallant de si l’amor a sa persona.

minguando o amor à sua pessoa.

 

Tant són en ell les virtuts manifestes

Tantas são nele as virtudes manifestas,

 

que∙s dirà cec l’hom qui bé no les veja;

que se dirá cego o homem que bem não as veja.

 

per los mig va, que en los extrems no toca;

Pelo meio, que nos extremos não toca, ele vai:

15

en temps dels déus en vida l’adoraren.

nos tempos dos deuses, em vida o adorariam.149

 

 

 

 

 

 

 

 

III.

E Déus, veent la perllongada honta

E Deus, ao ver a prolongada afronta

 

que∙ls grans senyors encontra d’ell cometen,

que os grandes senhores contra Ele cometem,

 

tenints ab fraus e tiranes maneres

oprimindo com fraudes e tiranas maneiras

 

les parts del món, los pocs e grans realmes,

as partes do mundo, os pequenos e os grandes reinos,

20

ha dat voler al justificat home

deu vontade a este merecido homem

 

que en breu espai haja la monarquia;

para que, em um breve espaço, tivesse a monarquia.150

 

clar lo nomen∙ab aquesta altra ensenya:

Claramente o nomeio com esta outra insígnia,

 

com de tot cert és dels hòmens pus savi.

assim como é inteiramente certo ser ele, dos homens, o mais sábio.

 

 

 

 

 

 

 

 

IV.

Per ço que mills a totes gents se mostre,

Para que melhor se mostre a todas as gentes,

25

mostrant-l’a aquells qui vaques e bocs guarden:

inclusive àqueles que vacas e bois cuidam,

 

ell és aquell qui en sa joventut tendra

ele é aquele que, em sua tenra juventude,

 

sobrà en aquells qui saviesa colen

superou aqueles que sabedoria cultivam,

 

e, despocat de nombre de gent d’armes,

e, com reduzido número de gentes de armas,

 

les multituds d’aquelles ha fet retre.

as multidões daqueles reteve.151

30

Tot quant pot fer virtut de fortalesa

Tudo o que pode fazer a virtude da fortaleza

 

dins un cos d’hom, en lo seu ho demonstra.

no corpo de um homem, no seu o demonstrou.

 

 

 

 

 

 

 

V.

En gran defalt és lo món de poetes

Em grande falta de poetas está o mundo,

 

per embellir los fets dels qui bé obren:

para embelezar os feitos dos que bem obram.

 

nós freturants de bella eloqüença,

Nós, mancos da bela eloquência,

35

l’orella d’hom afalac no pot rebre.

aos ouvidos do homem afagos não podemos fazer.

 

D’aquest valent una gran trompa sona

Deste valente, soa tão grande pompa

 

que els indians ab un poc no eixorda;

que aos índios por pouco não os ensurdece.

 

oen-la aquells qui són a Tremuntana,

Ouvem-na aqueles que estão na Tramontana152

 

i els de Ponent e de Llevant los pobles.

além dos povos do Poente e do Levante.153

40

 

 

 

VI.

Foll és aquell qui fa juí en los hòmens

Louco é aquele que faz juízo dos homens

 

segons que d’ells la fortuna ordena;

conforme o que deles a Fortuna ordena.154

 

aquells afers que no són en l’arbitre

Aqueles feitos que não estão em seu arbítrio,

 

colpa no hi cau si vénen per contrari.

culpa não lhes cabe caso sejam adversos.155

 

Embora panegíricos fossem comuns na tradição literária ocidental – desde a Grécia Clássica! – a poesia intelectualizada laudatória de Ausiàs March é, além disso, um registro poético do enorme impacto do avanço político-cultural de Afonso V (e de seu mecenato, pois no poema ele é rei virtuoso [13]: sapientíssimo [v. 24 e 28], dotado de temperança, de fortaleza [v. 15 e 31] e de coragem [v. 37].156

Príncipe do Renascimento157, ainda que “de transição”, com características culturais hispânicas, acentuadas pelo cosmopolitismo catalão-aragonês, apesar de rei-conquistador, Afonso V ficou registrado na História como um rei culto, amante das Letras, da Música e das Artes. Neste breve ensaio, destacamos apenas alguns aspectos de seu mecenato, rico, amplo e diversificado. O epíteto Magnânimo faz-lhe jus: orna a melhor qualidade dos príncipes do século XV, paradigmático tempo de expansão da Cristandade, mas também de suas fraturas, de guerras religiosas e de expansão ultramarina, mas sobretudo do Humanismo e do Renascimento, que Afonso V ajudou a consolidar com seu império mediterrânico e seu amor pela Cultura.

“Los libros son, entre mis consejeros, los que más me agradan,
porque ni el temor ni la esperanza les impiden decirme lo que debo hacer.”158

***

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Notas

  • 1. PÉREZ RODRÍGUEZ, Manuel. “Alfonso el Magnánimo y la divisa del libro abierto (II)”. In: Biblioteca Nacional de España (BNE), 2012; DOMENGE I MESQUIDA, Joan. “La gran sala de Castelnuovo. Memoria del Alphonsi regis triumphus”. In: COLESANTI, Gemma Teresa (a cura de). Le usate leggiadrie. I cortei, le cerimonie, le feste e il costume nel Mediterraneo trai l XV e XVI secolo. Atti del convegno – Napoli, 14/16 dicembre 2006. Centro Francescano di Studi sul Mediterraneo. Montella (AV), 2010, p. 317.
  • 2. Trabalho feito sob a orientação e supervisão do Prof. Dr. José María Salvador González, diretor do Grupo de Investigación CAPIRE (Colectivo para el Análisis Pluridisciplinar de la Iconografía Religiosa Europea), da Universidad Complutense de Madrid (UCM) e escrito em parceria com os Profs. Drs. Alexandre Emerick Neves (professor efetivo do Departamento de Teoria da Arte e Música [DTAM] da UFES; e-mail: [email protected]) e Antonio Celso Ribeiro (professor adjunto do Departamento de Teoria da Arte e Música [DTAM] da UFES; membro do Programa de Pós-graduação em Música da Universidade Federal do Paraná [UFPR]; e-mail: [email protected]), notadamente por seu conteúdo ter um caráter multidisciplinar – histórico, artístico e musical.
                Quanto a Pisanello, pintor e medalhista italiano, Vasari (1511-1574) comenta: “[...] quando o papa Martinho V veio a Florença, na volta o levou consigo para Roma, pedindo-lhe que pintasse em afresco na igreja Santo Ianni Laterano algumas lindas cenas, as mais belas que se possa imaginar. Porque nelas usou abundantemente uma espécie de azul ultramarino que lhe foi dado pelo papa, tão belo e vivo, que ainda não surgiu nada igual [...] Além disso, Pisanello era excelente em baixos-relevos; fez medalhas para todos os príncipes da Itália e, sobretudo, para o rei Afonso I.” – GIORGIO VASARI. Vidas dos artistas (trad. de Ivone Castilho Bennedetti). São Paulo: Editora WMF e Martins Fontes, 2011, p. 322-323.
  • 3. “En relación con la personificación se sitúa el atributo. Éste, según Federico Revilla, consiste en ‘un objeto real que define o caracteriza la personalidad de una figura, de acuerdo con hechos de su biografía o bien con determinados convencionalismos significativos’ […] El atributo es, por lo tanto, un signo cuya vida depende de la figura divina o humana, de la que indica su identidad, su historia, su poder y su papel. Se trata, pues, de un objeto, que es una parte accesoria pero fundamental de la representación, puesto que sin él la figura altera su significado. La asociación entre figura y atributo se puede calificar en muchas ocasiones de sinécdoque, es decir, en la que a partir de una parte se denomina el todo.” – CASTIÑEIRAS GONZÁLEZ, Manuel Antonio. Introducción al método iconográfico. Barcelona: Editorial Ariel, S.A., 2007, p. 36-37.
  • 4. De resto, aliança entre Marte e as Musas que remonta à Roma, e é renovada com a “reação espiritual do século IV” com Constantino. Já “[...] os capitães e reis germânicos [...] encontramos reis amigos da cultura também na Inglaterra (Alfredo, o Grande) e, mais tarde, na Sicília normanda [...] O ideal do monarca amigo das Musas dominou tanto a cultura hispano-islâmica como a abássida e a romano-imperial. O paralelo estende-se até ao espelho de príncipes.” – CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 234-235.
  • 5. Para o âmbito catalão-valenciano, o tema também já foi motivo de pesquisa: FELIPO ORTS, Amparo. De nobles, armas y letras. El linaje Cervelló en la Valencia del siglo XVII. València: Institució Alfons el Magnànim-Centre Valencià d’Estudis i d'Investigació, 2015.
  • 6. SABATÉ I CURULL, Flocel. “Catalunia medieval”. In: BALCELLS, Albert (dir.). Història de Catalunia. Barcelona: L’esfera dels llibres, 2004, p. 293.
  • 7. BURKE, Peter. O Renascimento italiano – Cultura e Sociedade na Itália. São Paulo: Nova Alexandria, 1999.
  • 8. CLARAMUNT RODRÍGUEZ, Salvador. “Alfonso V”. In: Diccionario Biográfico electrónico de la Real Academia de la Historia, 2018.
  • 9. COLL I ALENTORN, Miquel. “Guifré el Pelós en la historiografia i en la llegenda”. In: Institut d’Estudis Catalans. Memòries de la secció histórico-arqueològica. XXXIX. Barcelona, 1990.
  • 10. FERRER I MALLOL, Maria Teresa (a cura de). Martí l’Humà. El darrer rei de la dinastia de Barcelona (1396-1410). L’interregne i el Compromís de Casp. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans. Memòries de la secció histórico-arqueològica. XCVIII. Barcelona, 2015. 
  • 11. Mas também duque da Calábria, conde de Provença, de Focalquier, do Piemonte e do Maine.
  • 12. E também visconde de Àger, barão de Antillón, de Alcolea de Cinca e de Fraga.
  • 13. Para todo o contexto da guerra castelhana contra o reino de Granada, além da conquista de Antequera, ver GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Santiago. La Corona de Castilla: vida política (1406-1420), acontecimientos, tendencias y estructuras. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, Tesis de doctorado, 2010.
  • 14. SARASA SÁNCHEZ, Esteban. Aragón y el Compromiso de Caspe. Zaragoza: Librería General, D. L., 1981.
  • 15. Para o pensamento do santo, ver FRANCO, Gustavo Cambraia, e COSTA, Ricardo da. “A sapientia Christiana e a analogia das artes liberais em um Sermão de São Vicente Ferrer (1350-1419)”. In: CORTIJO OCAÑA, Antonio; MARTINES, Vicent (orgs.). Mirabilia/Medtrans 04 (2016/2). New Approaches in the Research on the Crown of Aragon, p. 01-26.
  • 16. Para Fernando de Antequera, GONZÁLEZ SÁNCHEZ, Santiago. Fernando I. Regente de Castilla y Rey de Aragón (1407-1416). Gijón: Ediciones Trea, 2012.
  • 17. Giovanna II d'Angiò regina di Napoli”. In: Treccani. Enciclopedia on line; CUTOLO, Alessandro. Giovanna II. La tempestosa vita di una Regina di Napoli. Novara: De Agostini, 1968.
  • 18. VICENS VIVES, Juan. Juan II de Aragón (1398-1479). Monarquía y revolución en la España del siglo XV. Pamplona: Urgoiti Editores S. L., 2003, p. 80-88.
  • 19. MANFRONI, Camillo. “ASSERETO, Biagio”. In: Treccani. Enciclopedia on line; CUTOLO, Alessandro. Giovanna II. La tempestosa vita di una Regina di Napoli. Novara: De Agostini, 1968.
  • 20. DOMENGE I MESQUIDA, Joan. “Guillem Sagrera et lo modern de son temps”. In: Revue d’Art n. 166/2009-4, p. 77-90.
  • 21. “Quando o flamengo Dufay chega à Itália, por volta de 1420, e o inglês Dunstable à França, por volta de 1422, começa uma nova era, que já podemos chamar de Renascença.” – DE CANDÉ, Roland. História Universal da Música. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 303.
  • 22. FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century. London: The Macmillan Press Limited, 1989.
  • 23. KRISTELLER, Paul Oskar. El pensamiento renacentista y sus fuentes México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
  • 24. No caso catalão-aragonês, o Humanismo – e suas raízes medievais – foi belamente estudado por Júlia Butiñá: BUTIÑÁ JIMÉNEZ, Julia. Tras los orígenes del Humanismo: el ‘Curial e Güelfa’. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), 2001; BUTIÑÁ, Julia. El los orígenes del Humanismo: Bernat Metge. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED), 2002.
  • 25. Inclusive já há uma tendência de incluir o Humanismo no recorte cronológico da Idade Média, por ser considerado um desdobramento natural dos renascimentos medievais. Ver AGUADÉ NIETO, Santiago. “El Humanismo”. In: ÁLVAREZ PALENZUELA, Vicente Ángel (dir.). Historia Edad Media Universal. Barcelona: Editorial Ariel S. A., 2005, p. 869-910.
  • 26. Vibrante e alegórico modo de sentir a existência que foi fruto do amor cortês medieval – e que sobreviveu pelo menos até o trágico século XVII, século do Barroco, quando o mundo foi pensado como ilusão e engano. Ver SILVA, Matheus Corassa da; COSTA, Ricardo da. “A Alegoria. Do mundo clássico ao Barroco”. In: OSWALDO IBARRA, César; LÉRTORA MENDONZA, Celina (coords.). XVIII Congreso Latinoamericano de Filosofía Medieval – Respondiendo a los Retos del Siglo XXI desde la Filosofía Medieval. Actas. Buenos Aires: Ediciones RLFM, 2021, p. 87-96.
  • 27. “Em alemão, a palavra refere-se literalmente a uma ‘visão’ (Anschauung) intuitiva do ‘mundo’ (Welt), por conseguinte, a ‘visões do mundo’ ou a valores ou princípios culturais subjacentes que definem a filosofia da vida ou a concepção do universo de uma sociedade ou grupo. Popularmente, o conceito tem sido usado para fazer referência a qualquer sistema geral de crença (cristão, liberal, pagão etc.).” – MORROW, Raymond A. “Weltanschauung”. In: OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 805.
  • 28. Por exemplo: “A luz é bela em si mesma, pois sua natureza é simples e contém totalmente a si mesma. É maximamente uniforme e tem, de modo sumamente harmonioso, a proporção intrínseca da igualdade, pois a beleza consiste na concórdia das proporções. Por isso, mesmo carecendo da harmônica proporção das figuras corpóreas, a luz é bela e agradabilíssima para a visão.” – ROBERTO GROSSETESTE, Hexaemeron, 147 v. Citado em TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la Estética. II. La estética medieval. Madrid: Ediciones Akal, 2002, p. 241-242.
                Ver também DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A Arte e a Sociedade (980-1420). Lisboa: Editorial Estampa, 1979, p. 103-136 (cap. 5. Deus é luz. 1130-1190).
  • 29. As representações medievais da Virgem já haviam sido inúmeras porque Ela foi tema essencial do imaginário. Podem ser agrupadas em três categorias: 1) Simbolismo teológico (séc. V-XII) – a Virgem no trono, ar impassível, com o Menino com um aspecto dogmático e severo, como um Cristo em Majestade, concepção teológica sem qualquer traço de naturalismo; 2) Simbolismo triunfal (sécs. VIII-XIII) – a Virgem-rainha, vestida e coroada como uma imperatriz, influência da arte bizantina, e 3) Naturalismo (sécs. XIII-XV – especialmente de Giotto à Renascença) – a Virgem como Mãe, cheia de ternura, humanamente maternal, embora divina. Ver ALMEIDA, José António Ferreira de. “A Virgem com o Menino na Arte Antiga e Medieval”. Porto, MCMLIV, p. 25-29.
  • 30. A obra mais conhecida do gênero são as Cantigas de Santa Maria (c. 1270-1282), escritas na corte de Afonso X, o Sábio (1221-1284). Trata-se de um conjunto de quatrocentas e vinte e sete composições em honra à Virgem que constitui uma das coleções de canções monódicas mais importantes da literatura medieval ocidental. Disponíveis em THE Oxford Cantigas de Santa Maria Data Base. Ver LEÃO, Angela Vaz. Novas leituras, novos caminhos: Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008.
  • 31. No século XV, o ducado da Borgonha rivalizava em prestígio com a corte dos reis franceses. Para o tema, ver o clássico HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • 32. ANGLÉS, Higinio. “La Música en la Corte Real de Aragón y de Nápoles durante el reinado de Alfonso V el Magnánimo”. In: Cuadernos de Trabajos de la Escuela Española de Arqueología e Historia en Roma, núm. 11, 1961, pp. 81-142.
  • 33. ATLAS, Allan W. “Aragonese Naples”. In: FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century. London: The Macmillan Press Limited, 1989.
  • 34. Em maio de 1450, figuravam como organistas Perinetto di Venezia e Johan Corbató. ANGLÉS, Higinio. “La Música en la Corte Real de Aragón y de Nápoles durante el reinado de Alfonso V el Magnánimo”, op. cit., p. 135.
  • 35. PUJOL, Josep; MARFANY, Marta. “La gaia ciència a Nàpols: l'Illuminator de Jaume Borbó (1453)”. In: Mot so razo 21 (2022), p. 15-29.
  • 36. GERBER, Rebecca L. Johannes Cornago. Complete Works. Madison: A-R Editions, 1984.
  • 37. A título de comparação, 50 anos mais tarde, Josquin Desprez (c. 1450-1521) – um dos maiores compositores de seu tempo – pediria 200 ducados para Hércules I d’Este (1431-1505), duque de Ferrara. Cf. ATLAS, Allan W. “Aragonese Naples”. In: FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century, op. cit., p. 157.
  • 38. De acordo com Atlas, no evento, a música acabou não sendo a panaceia buscada por Alfonso, pois uma verdadeira reaproximação entre a Nápoles aragonesa e a Florença mediciana não ocorreria antes de 1479.
  • 39. Sforza compartilhou com Afonso V a mesma receptividade à cultura flamenga: o duque empregou músicos flamengos em sua corte (entre eles, Alessandro Agricola [c.1457-1506], Johannes Martini [c.1440-1497] e Gaspar van Weerbecke [c.1445-1517]), transformando-a assim em um dos mais importantes centros musicais da Europa. Ver SCARPETTA, Umberto. “La musica nel Duomo di Milano dall'ars nova al rinascimento”. In: TOMOQUARTTO. Centro Studi di Musica Sacra.
  • 40. Em dezembro de 1444, figurava entre os músicos Michele Giovanni, que atuava como flautista, cantor e acompanhante do rei em suas jornadas reais, conforme nos informa Higinio Anglès (op. cit., p. 135).
  • 41. Naturalmente utilizamos o termo “espanhol” como uma licença poética, pois sequer havia acontecido a unificação dos reinos hispânicos (os próprios reis católicos, Fernando e Isabel, não utilizaram em vida o título de reis da Espanha – e Navarra só seria conquistada em 1512 por Fernando II após uma guerra civil [1451-1464]!).
  • 42. “Erra por pouco conhecimento / quem mantém a crença, / que a firmeza da mulher / nos perigos de uma ausência / se pode muito considerar. / Com a fé de um retorno imediato, / sem parar de escrever, / bem poderá alguma ser bem conservada / por dois ou três dias sobreviver. / Mas para o resto, não é suficiente / dar-lhes conhecimento, / porque é de seu ser natural / ter essa dolência / que é esquecimento sem ver.” (a tradução é nossa).
  • 43. Cf. ATLAS, Allan W. “Aragonese Naples”. In: FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century, op. cit., p. 156.
  • 44. KRÉN, Emil; MARX, Daniel. “ISAIA DA PISA. Arch of Alfonso I of Aragon”. In: Web Gallery of Art.
  • 45. Entre as danças constava a cascarda, a moresca (mourisca), a palonella, a basce e l’alta (danças pareadas chamadas em espanhol de danse basse e saltarello). Eram realizadas nos bailes com pessoas fantasiadas de Momos. Cf. ATLAS, Allan W. “Aragonese Naples”. In: FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century, op. cit., p. 160-161.
  • 46. Uma excelente descrição do friso se encontra em DOMENGE I MESQUIDA, Joan. “La gran sala de Castelnuovo. Memoria del Alphonsi regis triumphus”. In: COLESANTI, Gemma Teresa (a cura de). Le usate leggiadrie. I cortei, le cerimonie, le feste e il costume nel Mediterraneo trai l XV e XVI secolo. Atti del convegno – Napoli, 14/16 dicembre 2006. Centro Francescano di Studi sul Mediterraneo. Montella (AV), 2010, p. 290-342.
  • 47. “Cantando uma música deles própria, cada uma com um verso correspondente.” (a tradução é nossa) – ATLAS, Allan W. Aragonese Naples. In: FENLON, Iain (ed.). The Renaissance. From the 1470s to the end of the 16th century, op. cit., p. 160.
                Curiosamente, a tradição de cortejos com representações alegóricas também está presente em uma obra catalã medieval: o Breviculum (1325, Badische Landesbibliothek de Karlsruhe, Alemanha. Codex St. Peter, perg. 92), em sua iluminura VI (O exército de Aristóteles assalta a Torre da Mentira e da Ignorância. Ver VILLALBA I VARNEDA, Pere. Ramon Llull. Escriptor i Filòsof de la Diferència. Palma de Mallorca, 1232-1316. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 2015, p. 295-299.
  • 48. No reinado do Magnânimo, Galceran de Requesens i de Santacoloma (✝1465) foi pajem e uixer d’armes (oficial armado, encarregado da custódia do rei e obrigado a dormir em frente à câmara real). Teve uma brilhante carreira política e militar: battle geral da Catalunha (1432, administrador e representante do rei), governador-geral (1442), almirante e embaixador real (1450) e, por fim, tenente-geral da Catalunha (1453), contra o que determinavam as Constituições do país. O rei concedeu-lhe o privilégio da nobreza em 1458 e o tornou camarlenc (chefe dos serviços do quarto real). “Galceran de Requesens i de Santacoloma (?, ? - València, 1465)”. In: Enciclopèdia.cat.
  • 49. “O alaúde, na forma que a Renascença tornou famosa, só foi introduzido na Europa no século XII, pelos mouros, com seu nome árabe (al’ūd, que se tornou laud na Espanha, depois lut na França). No fim do século XIV, adquiriu seu aspecto característico, com sua caixa piriforme composta de ‘lados’ de sicômoro e o cravelhal recurvada para trás. Contudo, desde o século IX (Saltérios de Utrecht e de Sankt Gallen), encontra-se representada uma espécie de alaúde de braço comprido e fino, análogo ao setār persa, ao tanbur da Ásia Menor, ao colascione da Itália meridional, ou à dombrà quirguiz. Possui duas ou três cordas, e seu braço é munido de seis trastes.” – DE CANDÉ, Roland. História Universal da Música. Volume 1, op. cit., p. 227-230.
  • 50. Em uma carta real (28 de agosto de 1431) o Magnânimo comunicou a seu conselheiro, Martin Diez Davig (batlle do reino de Aragão), a “gracia que havem feta al amat e devot mestre d’orguens de nostra capella Perrinet Pronostrau, de trescents florins d’or d’Aragó caseun any” sobre as “cenas de ausencia del dicho reino”. ANGLÈS, Higinio. “La Música en la Corte Real de Aragón y de Nápoles durante el reinado de Alfonso V el Magnánimo”. In: Cuadernos de trabajos de la Escuela Española de Historia y Arqueología en Roma, Núm. 11, 1961, p. 125.
  • 51. ANGLÉS, Higinio. “La Música en la Corte Real de Aragón y de Nápoles durante el reinado de Alfonso V el Magnánimo”, op. cit., p. 121.
  • 52. ANDREU FEBRER. Poesies (ed.: Martín de Riquer). Barcelona: Barcino (Els Nostres Clàssics), 1951.
  • 53. JORDI DE SANT JORDI. Poesies (edició crítica a cura d’Aniello Fratta). Barcelona: Editorial Barcino, 2005.
  • 54. PERE TORROELLA. Obra completa (ed.: Francisco Rodríguez Risquete). Barcelona: Barcino (Els Nostres Clàssics), 2011, 2 vols.
  • 55. ANGLÉS, Higinio. “La Música en la Corte Real de Aragón y de Nápoles durante el reinado de Alfonso V el Magnánimo”, op. cit., p. 131.
  • 56. Biblioteca dell’Abbazia, Ms 871.
  • 57. Magnificat – cântico incorporado à liturgia das Igrejas Católica, Ortodoxa, Luterana e Anglicana e retirado de Lc 1, 46-55 (quando da Visitação de Isabel a Maria). Após cumprimentar sua prima, grávida de João Batista, o feto se move no ventre de Isabel, que então louva Maria por sua fé, e Maria responde com o Magnificat. Ele é cantado (ou recitado) no principal serviço noturno (as Vésperas), mas também pode ser cantado nos cultos – especialmente no Advento (primeiro tempo do ano litúrgico, quatro semanas antes do Natal).
  • 58. Strambotto (pl. strambotti) – uma das mais antigas formas de verso italiano, composto por uma única estrofe de seis ou oito linhas hendecassilábicas (11 sílabas). Strambotti foram particularmente populares na Sicília renascentista e na Toscana, e a origem da forma em ambas as regiões é incerta. Variações do strambotto de oito linhas incluem a oitava siciliana (ottava siciliana), com o esquema de rima abababab; a ottava rima, com o esquema de rima típico abababcc; e o rispetto, forma toscana geralmente com o esquema de rima ababccdd ou com ottava rima. Variantes de seis linhas geralmente rimam ababab, ababcc ou aabbcc. Os temas do strambotto eram geralmente o amor ou, às vezes, a sátira.” – “Strambotto”. In: Britannica 8, The Editors of Encyclopaedia. Encyclopedia Britannica, 8 Jan. 2018.
  • 59. POPE, Isabel, KANAZAWA, Masakata (eds.). The musical manuscript Montecassino 871: a Neapolitan repertory of sacred and secular music of the late fifteenth century. Biblioteca del Monumento nazionale di Montecassino, 1978. Esta edição compreende um estudo das origens e condições físicas do manuscrito; uma descrição literária (e musical) de 141 composições sobreviventes; transcrições musicais para prover uma edição prática para performance, bem como uma renderização acadêmica do texto original; um comentário crítico em cada peça com detalhes das concordâncias literárias e musicais, e uma bibliografia. Existe outra edição alemã, igualmente comentada: Montecassino 871 – Biblioteca dell"Abbazia, Ms 871.
  • 60. Antoine Busnois. Method, Meaning and Context in Late Medieval Music (ed.: Paula Higgins). Oxford: Clarendon Press, 1999.
  • 61. Antoine Busnois. Method, Meaning and Context in Late Medieval Music, op. cit., p. 562-563.
  • 62. A edição de Pope e Kanazawa (também a partir dos manuscritos originais) apresenta transcrições atualizadas da notação musical, facilitando sua execução aos músicos não acostumados com a notação mensural (tal como proposta por Goldberg).
  • 63. MAGRANER, Carles, PASCUAL, Miriam, BALLESTER, Pau. Ritmo y Métrica en la Música Mensural. El caso particular de dos obras del Cancionero de Montecassino. Valencia, 2011.
  • 64. VICENS VIVES, Juan. Juan II de Aragón (1398-1479). Monarquía y revolución en la España del siglo XV. Pamplona: Urgoiti Editores S. L., 2003.
  • 65. RYDER, Alan. “FERDINANDO I d’Aragona, re di Napoli”. In: Treccani.it. L’Enciclopedia italiana.
  • 66. ATLAS, Allan W., op. cit. 1989, p. 161.
  • 67. Até o século VI, a Música “...era vista como uma ciência, uma disciplina matemática, som material das realidades terrenas e celestes no qual poder-se-iam reconhecer os conceitos filosóficos (clássicos e, naturalmente, medievais) de ordem, proporção (como analogia, com o sentido de igualdade relacional) e harmonia. Em suma: era uma atividade sumamente intelectual. A criação do canto gregoriano, gradativamente, alterou essa percepção. A partir de então, cada vez mais, a música seria entendida, ou melhor, sentida, como integrante do mundo da emoção, como uma arte, a arte dos sons, expressão do mais genuíno sentimento humano: a fé.” – COSTA, Ricardo da. “Música. Uma das chaves para a compreensão do Tempo”. In: COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 52.
  • 68. Ou artes aplicadas (de uso cotidiano, como mobiliário, utensílios, joias, caligrafia, cerâmica, vestuário etc.). Ver MORRIS, William. Las artes menores. Palma de Mallorca: José J. Olañeta Editor, 2018.
  • 69. CAVINA, Anna Ottani. “Artes visuais. Introdução”. In: ECO, Umberto. Idade Média IV. Explorações, comércio e utopias. Alfragide: D. Quixote, 2015, p. 538-539.
  • 70. Na Música, por exemplo, já no final do século XV, surgem os cantos carnavalescos, no âmbito das festas cavaleirescas-corteses florentinas, eventos sociais celebrados pelo poeta Luigi Pulci (1432-1484) e pelo humanista, poeta e filólogo Angelo Polioziano (1454-1494). Ver MONARI, Giorgio. “Os cantos carnavalescos”. In: ECO, Umberto. Idade Média IV. Explorações, comércio e utopias. Alfragide: D. Quixote, 2015, p. 739.
  • 71. Subtítulo que destaca o amor de Afonso V pelos livros e que faz alusão a um dos maiores poetas brasileiros, Castro Alves (1847-1871): “Oh! Bendito o que semeia / Livros… livros à mão cheia... / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma / É germe que faz a palma / É chuva que faz o mar.” CASTRO ALVES. O Livro e a América.
  • 72. CORNUDELLA, Rafael. “Alfonso el Magnánimo y Jan van Eyck. Pintura y tapices flamencos en la corte del rey de Aragón”. In: LOCVS AMOENUS 10, 2009-2010, p. 41 e 44.
  • 73. O mesmo que encomendou aos irmãos Limbourg (Herman, Paul e Johan, fl. 1385-1416) As mui ricas horas do Duque de Berry (1412-1416 e 1440-1489), um dos mais magníficos manuscritos iluminados do gótico internacional da Idade Média. Ver The Très Riches Heures of Jean, Duke of Berry (introd. and legends by Jean Longnon and Raymond Cazelles. Preface by Millard Meiss). New York: George Braziller, Inc., Publishers, 1969.
                Entre as obras conhecidas que pertenceram à coleção do duque de Berry, o Relicário do Espinho Sagrado (c. 1400, British Museum), feito para abrigar um espinho, supostamente da coroa de espinhos colocada na cabeça de Cristo antes da Crucificação. As placas heráldicas esmaltadas na base mostram que foi feito para João, duque de Berry – a própria coroa de espinhos era uma relíquia real francesa, guardada em sua própria capela, em Paris (British Museum), e a Taça de Santa Inês (1370-1380, British Museum).
  • 74. GARCÍA MARSILLA, Juan Vicente. “La Cort d’Alfons el Magnànim i el seu univers artístic”. In: Art i societat a la València medieval. Catarroja – Barcelona: Editorial Afers, 2011, p. 253-254.
  • 75. “Em 1440, quando escreveu o Discurso sobre a falsa e enganadora doação de Constantino, Lorenzo Valla tinha 37 anos. As circunstâncias nas quais o escrito teve origem são conhecidas. O papa Eugênio IV tentava impedir, com armas, a ascensão de Afonso de Aragão, protetor de Valla, ao trono de Nápoles. Denunciando a falsidade de um documento célebre, Valla construiu um eficientíssimo texto de propaganda antipapal. Por que, mais de quinhentos anos depois, nós ainda o lemos?” – GINZBURG, Carlo. “Lorenzo Valla e a doação de Constantino”. In: GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 64.
  • 76. Entre o século XIV e o XV, o tema da Anunciação ganhou o protagonismo na Pintura pelo menos com três obras-primas: 1) A Anunciação (1333) de Simone Martini (1284-1344) e Lippo Memmi (1291-1356), 2) A Anunciação (c.1426) de Fra Angelico (1395-1455), e 3) A Anunciação (1434) de Jan van Eyck (c. 1390-1441), e atingiu seu clímax com A Anunciação (c. 1472-1475), de Leonardo da Vinci (1452-1519).
  • 77. GÓMEZ-FERRER, Mercedes. “Reflexiones sobre el pintor Jacomart: un nuevo retablo de la Visitación”. In: BSSA arte, 83 (2017), p. 15-18.
  • 78. Como, por exemplo, o estilo de Lodewijk Allyncbrood (c. 1400-1463), que se estabeleceu na Catalunha em 1437, e ajudou a transmissão da escola flamenca e da técnica de Jan van Eyck na Península Ibérica.
  • 79. Lluís Dalmau (València, ? – Barcelona, després del 1460)”. In: Enciclopèdia.cat. El teu portal del conexeiment.
  • 80. Provavelmente Dalmau presenciou os últimos retoques no Cordeiro Místico, na oficina de Jan van Eyck em Bruges, obra que deve tê-lo impressionado sobremaneira. Ver GARCÍA MARSILLA, Juan Vicente. “La Cort d’Alfons el Magnànim i el seu univers artístic”. In: Art i societat a la València medieval, op. cit., p. 267.
  • 81. CORNUDELLA, Rafael. “Alfonso el Magnánimo y Jan van Eyck. Pintura y tapices flamencos en la corte del rey de Aragón”. In: LOCVS AMOENUS 10, 2009-2010, p. 45-47.
  • 82. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012.
  • 83. JANSON, H. W. História Geral da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • 84. A revalorização da cultura ibérica por parte dos autores anglo-saxões parece ter ressurgido apenas com os estudos de Richard McGee Morse (1922-2001), especialmente com sua obra O Espelho de Próspero. Cultura e Idéias nas Américas (São Paulo: Companhia das Letras, 1988).
  • 85. Para o Barroco, ver PORTÚS PÉREZ, Javier (coord.). El Siglo de Oro de la pintura española. Madrid: Biblioteca Mondadori, 1991; PÉREZ SÁNCHEZ, Alfonso Emilio. Pintura barroca en España (1600-1750). Madrid. Cátedra, 2010.
  • 86. Vasari atesta essa relação: “Foi uma invenção belíssima e cômoda para a arte da pintura a do colorido a óleo, que se deveu a João de Bruges [Jan van Eyck], de Flandres, que mandou a Nápoles um painel para o rei Afonso...” – GIORGIO VASARI. Vidas dos artistas (trad. de Ivone Castilho Bennedetti). São Paulo: Editora WMF e Martins Fontes, 2011, p. 50.
  • 87. VENTURI, Lionello. “ANTONELLO da Messina”. In: TRECCANI. Enciclopedia Italiana, 1929.
  • 88. GIORGIO VASARI. Vidas dos artistas, op. cit., p. 294.
  • 89. A respeito da têmpera, ainda Vasari: “Antes de Cimabue e depois dele, até hoje, sempre se viram obras feitas pelos gregos a têmpera sobre madeira e às vezes em murais. Aqueles velhos mestres costumavam passar gesso na madeira, por temerem que ela se abrisse nas junções; cobriam tudo com linho grudado com cola de raspa de couro e, por cima, passavam gesso, sobre o qual trabalhavam, diluindo as cores com gema de ovo ou têmpera, que assim se faz: abriam um ovo, batiam-no e nele moíam um ramo tenro de figo, para que seu leite e o ovo formassem a têmpera das cores; assim, diluindo as cores com esse preparado, trabalhavam suas obras. E sobre tais madeiras usavam cores à base de minerais, que são feitas em parte pelos alquimistas e em parte são encontradas em jazidas. Para essa espécie de trabalho todas as cores são boas, exceto o branco que se usa em murais, feito de cal, que é forte demais. E dessa maneira eram feitas suas obras e suas pinturas; a isso dão o nome de pintar a têmpera. Somente os azuis eram diluídos em cola de raspa de couro, porque a cor amarela do ovo os transformava em verde, ao passo que a cola mantém sua cor; o mesmo ocorre com a goma. O mesmo modo de trabalhar se usa sobre madeira, com ou sem gesso (...) Nem por isso tais obras serão piores, pois mesmo as obras dos velhos feitas a têmpera se conservaram por centenas de anos com a mesma beleza e frescor. E ainda se veem coisas de Giotto, algumas das quais sobre madeira, que já duram duzentos anos e se mantêm perfeitamente. E assim chegamos à pintura a óleo, que levou muitos a abolir a têmpera, tal como vemos ainda hoje, nos trabalhos sobre madeira e em outras coisas importantes.” – GIORGIO VASARI. Vidas dos artistas, op. cit., p. 49-50.
  • 90. TIKKANEN, Amy. “Oil painting”. InEncyclopedia Britannica.
                Quanto ao ilusionismo, “Termo aplicado em seu sentido mais amplo ao princípio básico da arte naturalista, segundo a qual a verossimilhança na representação faz com que o espectador, em vários níveis, pense estar realmente vendo o objeto representado, ou o espaço no qual ele é representado, embora em parte saiba que está olhando para uma representação pictórica. Num sentido um pouco mais restrito, ilusionismo refere-se ao uso de técnicas pictóricas – como a perspectiva e o escorço – para iludir a visão (o mesmo a mente), fazendo com que tome aquilo que é pintado algo real, ou, na Arquitetura e no cenário de palco, a montagem de formas construídas parecerem visualmente mais extensas do que são. Duas formas específicas de ilusionismo na Pintura são a quadratura, em que a Arquitetura pintada parece estender o espaço real de uma sala, e o trompe-l’oeil, em que o espectador é genuinamente, ainda que momentaneamente, levado a pensar que um objeto pintado é um objeto real.” – “Illusionism”. In: Oxford Reference (a tradução é nossa).
  • 91. Chiaroscuro – técnica que consiste no acentuado contraste entre volumes (uns ensombrecidos, outros iluminados) em uma mesma obra, com o objetivo de aumentar a dramaticidade da cena representada. Embora tenha sido um dos métodos canônicos do Renascimento, ganhou sua máxima expressão no Barroco.
                Quanto ao sfumato, “termo usado para descrever a mistura de tons ou cores de forma tão sutil que se fundem entre si, sem transições perceptíveis – nas palavras de Leonardo da Vinci, ‘sem linhas ou bordas, à maneira de fumaça’. Leonardo era um expoente supremo do sfumato e Vasari considerava sua capacidade de suavizar os contornos precisos característicos do Quattrocento anterior como uma das marcas distintivas da pintura ‘moderna.’” – “Sfumato”. In: Oxford Reference (a tradução é nossa).
  • 92. MOTTA, Edson; SALGADO, Maria Luiza Guimarães. Iniciação à pintura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 16.
  • 93. MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 99.
  • 94. VELASCO GONZÀLEZ, Alberto. Pintura religiosa de los siglos XV al XVIII en la Colección Gerstenmaier. Sala Municipal de Exposiciones de la Iglesia de las Francesas. Catálogo, Ayuntamiento de Valladolid, 2018, p. 16.
  • 95. Juicio a San Baldirio (c. 1448), têmpera sobre madeira, 134 x 70 cm, procedente do retábulo maior da Igreja de Sant Boi de Llobregat, Barcelona, Coleção Gerstenmaier.
  • 96. ROHRBACHER, Pe. Vida dos santos. Vol. IX. São Paulo: Editora das Américas, 1960, p. 110-111.
  • 97. Para as questões relacionadas à perspectivaperspectiva inversa, isométrica, linear, múltipla, de ponto fixo – ver HOCKNEY, David; GAYFORD, Martin. Una historia de las imágenes. De la caverna a la pantalla del ordenador. Madrid: Ediciones Siruela, 2018, p. 85-92; 94-107, 135-138.
  • 98. O estudo clássico – e pioneiro – do gênero é KANTOROWICZ, Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Ver também BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • 99. Para o corpo na Arte, ver SILVA, Matheus Corassa da. A Estética do Corpo na Arte Ocidental. Santo André, SP: Armada, 2020.
  • 100. Não nos esqueçamos da importância, crucial, do gesto, nas sociedades medievais, culturas fortemente ritualizadas e, sobretudo, orais: “Antes do século XIII, quando o surto do comércio urbano e da administração favorece o desenvolvimento da escrita, a sociedade medieval é sobretudo oral. Os gestos assumem por isso uma amplitude particular, se bem que a escrita, propriedade quase exclusiva dos clérigos, é também um gesto, manual, importante e respeitado.” – LE GOFF, Jacques, e TRUONG, Nicholas. Uma História do Corpo na Idade Média. Lisboa: Teorema, 2003, p. 127.
  • 101. CASAS I PAYÀS, Martí. “L’obra de la setmana #78. Decapitació de sant Baldiri”. In: Amics Museu Nacional d’Art de Catalunya. Dilluns, 22 gener, 2018.
  • 102. Os cortesãos – como os cavaleiros, os camponeses e os religiosos (os que combatem, os que trabalham e os que rezam, na trilogia imortalizada por Georges Duby [1919-1996]) – são um topos social da Europa medieval. Desprezados por seu papel de bajuladores do poder, foram imortalizados na filosofia política na obra Policraticus (1159), de João de Salisbury (c. 1115-1180). Ver JUAN DE SALISBURY. Policraticus (ed. IADERO, Miguel Angel, GARCIA, Matias e ZAMARRIEGO, Tomas). Madrid: Editora Nacional, 1984.
  • 103. Personagem real, mas também do imaginário das sociedades europeias pré-industriais, a profissão de carrasco chegou a ter genealogia própria! Para o tema, ver BECHERBONNIER, Bernard. Carrascos de Paris: a Dinastia dos Sanson. São Paulo: Editora Mercuryo, 1991.
  • 104. Após a revolução do azul a partir dos anos 1140, triunfante em todas as classes sociais, após 1200, poucos são os homens e mulheres que na Europa ocidental se vestem de amarelo, tanto no mundo dos príncipes quanto dos plebeus. Ver PASTOREAU, Michel. Una Historia Simbólica de la Edad Media Occidental. Buenos Aires: Katz, 2006, p. 143.
  • 105. Os camponeses medievais eram representados na arte de um modo grotesco, como animais. Para o tema, ver COSTA, Ricardo da. “Entre Chartres e Amiens. A vida cotidiana dos camponeses medievais na Arte (séc. XIII)”. In: COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 225-241, e BRAGANÇA, Felipe Lube de; COSTA, Ricardo da. “Os camponeses na arte de Bruegel, o Velho (c.1525-1569)”. In: COSTA, Ricardo da. Delírios da Idade Média. Santo André, SP: Armada, 2023, p. 321-340.
                Do mesmo modo, na Literatura, não eram considerados capazes de amar, sentimento considerado nobre, refinado. O preconceito foi abordado por André Capelão (c. 1150-1220). Ver ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • 106. Para uma analogia entre os estilos Românico e Gótico em relação a um tema, ver COSTA, Ricardo da. “Entre Chartres e Amiens. A vida cotidiana dos camponeses medievais na Arte (séc. XIII)”. In: COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 225-241.
  • 107. Jr 10, 3-5.
  • 108. Plínio, o Velho (c. 23-79) registrou a técnica do douramento em Roma após a destruição de Cartago (149 a. C.). Tornou-se um luxo muito difundido em Roma. Além de Plínio (História Natural XXXIII, “A História Natural dos Metais”), na Idade Média, a técnica foi difundida por Teófilo, o Presbítero (fl. c. 1080-1125) em sua obra De Diversis Artibus (Livro III).
  • 109. Ag 2, 8.
  • 110. GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 183.
  • 111. Para o tema, ver BURCKHARDT, Jacob. O Retrato na Pintura Italiana do Renascimento. São Paulo: Unifesp, 2012.
  • 112. Por exemplo, o Brutus Capitolino (c. 300-275 a. C., bronze, globo ocular de marfim, íris e pupila em pasta vítrea, 69 cm. Museu Capitolino, Roma), provavelmente uma representação do cônsul Lúcio Júnio Bruto (m. 509 a. C.), um dos fundadores da República. Trata-se de um dos primeiros bustos romanos, talvez de um etrusco influenciado pela arte helenística e estilo grego contemporâneo de retratos, já que pode ser uma obra arcaizante do séc. I a. C.
  • 113. JANSON, H. W. Iniciação à história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 73.
  • 114. JANSON, H. W. Iniciação à história da arte, op. cit., p. 79.
                Ainda no Egito, cerca de três séculos antes, uma espécie de renascimento substituiu as figuras idealizadas predominantemente lineares por uma tendência realista. Trata-se do curto reinado (1353-1336 a.C.) do faraó Amenhotep IV, que mudou o seu nome para Akhenaton. O busto esculpido em calcário de sua esposa, Nefertiti (c. 1370-1330 a.C.) é considerado a obra-prima dessa breve revolução artística no antigo Egito (Rainha Nefertiti, c. 1360 a.C., calcário, estuque, encáustica, 49 x 24,5 x 35 cm, Staatliche Museen, Berlim). Mais que o realismo, um novo sentido da forma plástica é presenciado nesse retrato de ondulações mais orgânicas que geométricas. A inclinação da cabeça para frente evita a rigidez da forma, o sorriso levemente esboçado e o olhar afetivo perfazem a presença de uma personalidade, em uma beleza onde a soberania de uma rainha apresenta-se indissociável da dignidade de uma mulher.
  • 115. WARBURG, Aby. “Arte flamenga e início do Renascimento florentino (1902)”. In: WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 245-276.
  • 116. MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 99.
  • 117. GINZBURG, Carlo. De Aby Warburg a Ernst Gombrich: notas sobre um problema de método. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 43.
  • 118. Pathosformel – termo criado por Aby Warburg (1866-1929) para conceituar a representação de gestos e expressões faciais emotivas de validade universal. Com ele, imagens históricas são analisadas para determinar se formas e gestos foram eficazmente transmitidos. Seus primeiros trabalhos sobre pinturas de Botticelli e seus textos sobre o reaparecimento de símbolos astrológicos em obras de arte empregaram o conceito de Pathosformel. Para isso, ver WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 27-86 (“O nascimento de Vênus e A primavera de Sandro Botticelli”) e p. 99-128 (“Arte italiana e astrologia internacional no Palazzo Schifanoia em Ferrara”), e BECKER, Colleen. “Aby Warburg’s Pathosformel as methodological paradigm”. In: Journal of Art Historiography (9), p. 1-25.
  • 119. GINZBURG, Carlo. De Aby Warburg a Ernst Gombrich: notas sobre um problema de método, op. cit., p. 43.
  • 120. “Por isso, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até à perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus, e da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressurreição dos mortos, e do juízo eterno. E isto faremos, se Deus o permitir.” – Hb 6, 1-3.
  • 121. GINZBURG, Carlo. De Aby Warburg a Ernst Gombrich: notas sobre um problema de método, op. cit., p. 46-47.
  • 122. Para a Escola de Warburg, ver BURUCÚA, José Emilio (introducción y selección de textos). Historia de las imágenes e historia de las ideas. La escuela de Aby Warburg. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina (colección Los fundamentos de las ciencias del hombre, núm. 47), 1992. Um artigo breve e conciso é o de LINS, Jacqueline Wildi. “O enigma da imagem: a contribuição de Warburg à História da Arte”. In: DAPesquisa, Florianópolis, 2009, v. 4, n. 6, p. 338-343.
  • 123. A longa duração é uma tese de Fernand Braudel (1902-1985). Ele “...pertence à nata da historiografia. Metodologicamente, está (quase) tudo aí. Além da escrita (belíssima, narrativa em ondas, rítmica, suave), a longa duração, a capacidade de imaginar (primeiro e imprescindível instrumento mental de um historiador), os diferentes tempos simultâneos em um mesmo tempo que devemos, precisamos, temos a obrigação de tentar compreender.” – COSTA, Ricardo da. “Os camponeses medievais na arte de Benedetto Antelami (c.1150-1230). O Ciclo do Trabalho e os Meses do Batistério de Parma”. In: COSTA, Ricardo da. Visões da Idade Média. Santo André, São Paulo: Editora Armada, 2019, p. 253.
  • 124. AGAMBEN, Giorgio. Potentialities. Collected Essays in Philosophy. Stanford University Press, 1999, p. 92.
  • 125. WARBURG, Aby. “ltalian art and International Astrology in the Palazzo Schifanoia in Ferrara”. In: WARBURG, Aby. German Essays on Art History. New York: Continuum, 1988, p. 252-253.
  • 126. AGAMBEN, Giorgio. Potentialities. Collected Essays in Philosophy, op. cit., p. 92.
  • 127. Na base do trono da Virgem, Dalmau deixou a data de execução da obra e sua assinatura: SUB ANNO MCCCCXL PER LUDOVICUM DALMAU FUIT DEPICTUM.
  • 128. O arco ogival é o elemento de design definidor da arquitetura gótica. Seu uso, por sua vez, levou ao desenvolvimento da abóbada com nervuras pontiagudas e arcobotantes, ambos combinados com vitrais e tracerias (decoração com motivos geométricos em pedra ou madeira que subdividiam rosáceas, janelas ou arcos). Ver FRASER, Murray (ed.). “Gothic”. In: Sir Banister Fletcher Glossary. Royal Institute of British Architects (RIBA) and the University of London, 2019. Ver também COSTA, Ricardo da; DANTAS, Bárbara. As artes do rei: as Cantigas de Santa Maria de Afonso X. Vila Velha-ES: Balsamum, 2019, p. 19 e 51.
  • 129. Fuste – Parte central de uma coluna ou pilar, compreendida entre o capitel e a base.” – CHING, Francis D. K. Dicionário visual de arquitetura. São Paulo: Editora WMF Martin Fontes, 2010, p. 205. Para os fustes com colunas adossadas como os da pintura de Dalmau, ver DANTAS, Bárbara. A arte de construir: a arquitetura nas Cantigas de Santa Maria do rei Afonso X. Vila Velha-ES: Balsamum, 2018, p. 227-228, 385-386, 389.
  • 130. GOMBRICH, Ernst H. A história da ArteRio de Janeiro: LTC, 1999, p. 188.
  • 131. “O azul, que ainda é o pigmento natural mais caro, é fabricado a partir do lápis-lazúli, uma pedra semipreciosa dura, que até há pouco tempo só era extraída no Afeganistão e que continua sendo designada pelo nome que lhe foi dado na França e na Itália da Idade Média tardia, azul-ultramar, uma vez que chegava ao Ocidente europeu proveniente de ‘além-mar’ (...) O pensamento medieval também associara os pigmentos minerais tradicionais a pedras preciosas e, por conseguinte, a forças morais e terapêuticas. O lapidário de Thomas de Cantimpré, do século XIII, por exemplo, identificava a safira indiana com o lápis-lazúli (...) e atribuía uma longa lista de virtudes a ela, inclusive o alívio de dores nos olhos e na fronte, além da cura de úlceras na língua. Afirmava-se também que ela estimulava a castidade e oferecia proteção contra a fraude, a inveja e as sensações de pavor.” – CAGE, John. A cor na Arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 97 e 114.
  • 132. Óleo sobre madeira, 122 x 157cm. Groeningemuseum, Bruges.
  • 133. Mt 16, 24; Mc 8, 34; Lc 9, 23.
  • 134. Atributos – objetos habitualmente associados a uma personagem (real ou imaginária), por meio dos quais ela pode ser identificada quando representada em forma artística [...].” – CHILVERS, Ian (ed.). Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 34.
  • 135. “A obra que iremos analisar retrata Santa Eulália de Barcelona. Porém, antes de tudo, é importante mencionar a existência de uma homonímia entre duas santas distintas, uma proveniente de Barcelona e outra de Mérida. Suas histórias foram imortalizadas pelas mãos de dois compositores em forma de Hinos. O primeiro autor, Prudêncio, em fins do século IV, narrou a história de Santa Eulália de Mérida. Três séculos mais tarde, Quírico, bispo da cidade de Barcelona entre os anos 656-666, escreveu o Hino à Santa Eulália de Barcelona. As duas histórias se assemelham em suas narrativas. O poema de Eulália de Barcelona consta na página quarenta do Breuiarium Goticum. Acredita-se que os restos mortais de Eulália de Barcelona encontram-se sepultados no templo de Santa Maria del Mar, construído no século XIV, na mesma cidade.” – LOFÊGO, Barbara Lofiego Pimenta. O corpo feminino em sofrimento: o martírio de Santa Eulália (c. 1442-1445) de Bernat Martorell (c. 1390-1452). Vitória: UFES (dissertação de mestrado), 2018, p. 109.
  • 136. Santa Eulália com troncos azuis no manto; Santo André com um manto verde: dialética santa azul/verde tipicamente medieval: “O verde mantém vínculos estreitos com o azul...” – PASTOREAU, Michel. Una Historia Simbólica de la Edad Media Occidental, op. cit., p. 131.
  • 137. Posteriormente desenvolveu-se a tradição de André ter sido crucificado em uma cruz decussata, a partir de então conhecida como Cruz de Santo André – e supostamente a seu próprio pedido, por ele ter se considerado indigno de ser crucificado no mesmo tipo de cruz que Jesus tinha sido. Sua iconografia, amarrado a uma cruz em forma de X, passou a ser recorrente apenas no final da Idade Média. Ver CALVERT, Judith. “The Iconography of the St. Andrew Auckland Cross”. In: The Art Bulletin 66, 1984, p. 542-555.
  • 138. CASAS I PAYÀS, Martí. “Virgen de los «consellers»”. In: AMICS Museu Nacional d’Art de Catalunya. 29/06/2020.
  • 139. VELASCO GONZÀLEZ, Alberto. Pintura religiosa de los siglos XV al XVIII en la Colección Gerstenmaier. Valladolid: Ayuntamiento de Valladolid, 2018, p. 20.
  • 140. Lembremos também que as inovações artísticas nórdicas do tempo do Magnânimo (ou seja, até a primeira metade do século XV) impulsionaram mais tarde o surgimento do maneirismo nórdico (também conhecido como Renascimento tardio) praticado nas artes visuais ao norte dos Alpes no século XVI. Ver SHEARMAN, John. Mannerism. London: Pelican, 1967 e SHAWE-TAYLOR, Desmond y SCOTT, Jennifer. Bruegel to Rubens, Masters of Flemish Painting. London: Royal Collection Publications, 2008.
  • 141. BRAUDEL, Fernand. O modelo italiano. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 17.
  • 142. “A turbulência das últimas invasões havia cessado. A partir do séc. XI, a paisagem do continente europeu foi gradativamente enriquecida com novas áreas de plantio (às margens das florestas, nas terras intra e extramuros citadinos). Por todos os lados, os campos receberam aldeias de jovens agricultores. Seus arroteamentos, iniciados séculos antes pelos monges, juntamente com a melhora das técnicas de cultivo, propiciaram uma melhor e mais nutritiva base alimentar (desconhecida da Antiguidade). Pântanos foram secados, canais foram abertos, estradas foram construídas. Com isso, a população da Europa cresceu cerca de 300% entre os séculos XI e XIV e sua expectativa de vida saltou dos 20 anos no séc. II para 35 no início do séc. XIV!” – COSTA, Ricardo da. Delírios da Idade Média. Santo André, SP: Armada, 2023, p. 24-25.
  • 143. BRAUDEL, Fernand. O modelo italiano, op. cit., p. 19.
  • 144. É vasta a bibliografia sobre March. Indicamos alguns trabalhos: MARTINES PERES, Vicent (coordinació i curat). Canelobre 39-40. Estudis sobre Ausiàs March. Revista de l’Institut de Cultura Juan Gil-Albert. Diputació Provincial d’Alacant, 1988-1989; ALEMANY FERRER, Rafael (edició a cura de). Ausiàs March. Textos i contextos. Barcelona: Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana/ Publicacions de l'Abadia de Montserrat, 1997; NOGUERAS VALDIVIESO, Enrique; SÁNCHEZ RODRIGO, Lourdes (coords.). Ausiàs March y las literaturas de su época. Universidad de Granada: Editorial Universidad de Granada, 2000; TERESA GIRONÉS, María. “Ausiàs March i la reformulació del bé: de l’amor a la dona al bé diví”. In: eHumanista: Volume 13, 2009, p. 195-209; GÓMEZ BAYARRI, José Vicente. La Valencia de Ausiàs March. Valencia, 2009; GRILLI, Giuseppe. “Leggere o interpretare Ausiàs March”. In: SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 19/juny 2022/pp. 227-234.
  • 145. “Na década de 1530, a assimilação da linguagem artística italiana na pintura veio principalmente pelas mãos do aragonês Jerónimo Vallejo Cosida (1510-1592), cujo estilo se caracterizava pela delicadeza dos detalhes, beleza e doçura. Outros artistas como Juan de Juanes (c. 1503-1579) conheceram a pintura italiana pela influência direta de outros mestres, como demonstra seu Retrato de Afonso V ou A Adoração dos Três Reis Magos, de Pablo Scheppers (fl. 1559-1575) que, com Roland de Mois (1520-1592), refletiram em suas obras as novas tendências do flamenco.” – “Renacimiento”. InMuseo de Zaragoza.
  • 146. Base da tradução: AUSIÀS MARCH. Dictats. Obra completa (edición de Robert Archer; traducciones de Marion Coderch y José María Micó). Madrid: CÁTEDRA. Letras Hispánicas, 2017. Aproveitamos as introduções explicativas que encabeçam a numeração dos ditados, além das notas dessa edição; quando forem de nossa autoria, constarão como N. do T. (nota do tradutor) ou N. do R. (quando forem do revisor).
                Os parâmetros de nossa proposta de tradução estão expostos em COSTA, Ricardo da. “Las traducciones en el siglo XXI de los clásicos medievales. Tensiones, problemas y soluciones: el Curial e Güelfa”. In: eHumanista/IVITRA, 3 (2013). University of California at Santa Barbara, USA, p. 325-346.
                Por fim, explicito a escolha em traduzir “Dictats” por Ditados (em vez de Poemas). O significado de ditado em português é o mesmo que em catalão (e em espanhol): Dictat/Dictado/Ditado significa “aquilo que é dito de maneira sentenciosa, palavra, autoridade”. O exercício atual de escrever um ditado para praticar e melhorar o aprendizado da língua faz eco com esse sentido medieval, pois quem escreve um ditado obedece uma voz que ordena palavras que se devem seguir, palavras dotadas de autoridade porque saem da boca de um – literalmente – “ditador”. A poesia de Ausiàs March (c. 1397-1439) poderia estar marcada – além de tratar de temas de amor, algo então bem vivo, desde a tradição trovadoresca – do dom, nem sempre tido como algo positivo, oriundo da inspiração e da mímese, que trespassava a verdade. March tem famosíssimos dois versos em que diz que se expressa “Lleixant a part l’estil dels trobadors / que, per escalf, trespassen veritat” (“Deixando de lado o estilo dos trovadores / que, por ardor, traspassam a verdade”, XXIII, 1-2). Sempre se refere aos seus poemas como dictats – por exemplo, XV, VI, 46; XXXIX, I, 2; XLVIII, IV, 31 e LXX, VII, 49.
  • 147. Nos manuais de Retórica de então – e que influenciavam a poesia de March – o sobreslaus, louvor excessivo – era um vício proscrito para a prática da poesia. O poeta faz alusão ao mesmo vício no início do Ditado XXIII: “Deixando de lado o estilo dos trovadores / que, por ardor, traspassam a verdade / e, subtraindo meu afetado desejo / para que não me turve, direi o que em vós encontro”.
  • 148. March mostra ter muita consciência de que a preceptiva retórica insistia que o poeta guardasse os encômios superlativos para Deus e a Virgem Maria, por serem a própria perfeição. Assim disse o escritor. advogado e armador Luis d’Averçó (c. 1350-1412), em sua obra Torcimany (tratado medieval de gramática catalã): “[...] loando de cualquier manera que queráis a Nuestro Señor Dios y su santa madre Snta María, no caéis en este vicio de sobrelaus, porque por muchas alabanzas que queráis hacer, aún hay tanta excelencia y perfección en ellos, que no se podrá decir todo el bien que hay.” – LUIS DE AVERÇÓ. Torcimany (ed. José María de Casas Homs). Barcelona: CSIC, 1956, tomo 2, p. 126.
                Nestes versos, o poeta afirma a supremacia de Deus sobre todos os seres por Ele criados, os quais estão sujeitos em tudo o que façam em sua natureza humana. O sentido algo obscuro do verso 3, com a estudada ambiguidade da identidade do elogiado, possibilitou uma interpretação sacra, segundo a qual o ditado é um louvor a Jesus Cristo.
  • 149. Isto é, na época do Império Romano (cf. Ditado LXXV, 17) quando imperadores eram divinizados após sua morte.
  • 150. Justificativa teológica para a ascensão monárquica de Afonso V de Aragão, o Magnânimo.
  • 151. O poeta aqui faz alusão ao destinatário do panegírico, inominado, pela descrição de sua fama como prodígio de sabedoria e por seu êxito militar – no caso, na Itália.
  • 152. Tramontana – Vento do Norte (N. do T.).
  • 153. Levante (Llevant) – vento do leste; Poente (Ponent) – vento do oeste. Não é a primeira vez que March se refere aos ventos (uma atenção muito peculiar da propensão marítima da cultura litorânea catalã-valenciana.
  • 154. Para o tema, ver COSTA, Ricardo da; LEMKE, Wilson Coimbra. “A Roda da Fortuna nos Dictats de Ausiàs March (c.1397-1439)”. In: SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 20, desembre 2022, pp. 27-51.
  • 155. Na tornada – palavra de origem occitana que, na literatura trovadoresca medieval, designa a meia estrofe [três versos que se repetem ao fim de uma composição ou de cada estrofe ou grupo de estrofes que costumeiramente revelam a chave interpretativa de seu sentido] – há uma nota de cautela moralizante: até um homem extraordinário como o louvado rei do Ditado está sujeito às vicissitudes da Fortuna. O poeta parece se referir aos contratempos da carreira militar do Magnânimo, especialmente sua derrota na Batalha Naval de Ponza (05 de agosto 1435): uma esquadra naval genovesa derrotou-o e o aprisionaram, além de seus irmãos, os infantes de Aragão, D. João (1398-1479), rei consorte de Navarra, e D. Henrique (1400-1445).
  • 156. Para nos atermos à tradição cristã, Cassiodoro (c.490-533) nos deixou um livro de panegíricos, as Laudes (506). O objetivo literário desse tipo de discurso era obter um elogio contido, porém excessivo, ainda que dentro dos limites do decoro e da moderação. Ver O’DONNELL, James J. Cassiodorus. Berkeley: University of California Press, 1979.
  • 157. LAW, John. “O Príncipe do Renascimento”. In: GARIN, Eugenio (dir.). O Homem Renascentista. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 17-36.
  • 158. Frase atribuída a Afonso V. Citada em AURELL, Jaume. Elogio de la Edad Media. De Constantino a Leonardo. Madrid: Ediciones Rialp, 2021 (cap. “Escena 18: Tierra”). Agradecemos a leitura crítica da Profa. Dra. Júlia Butiñyà (UNED).

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