Boécio e Ramon Llull
A Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens
Ricardo da COSTA e Adriana ZIERER
In: Revista Convenit Internacional 5 (Editora Mandruvá).
Herausgegeben vom Forschungsprojekt Die Umbrüche in der Wissenskultur des 12. und 13 Jahrhunderts.
Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main - 2000.
Editors ad hoc of Convenit 5: Alexander Fidora e Andreas Niederberger
(ISSN 1517-6975).
Ricardo da COSTA e Adriana ZIERER
In: Revista Convenit Internacional 5 (Editora Mandruvá).
Herausgegeben vom Forschungsprojekt Die Umbrüche in der Wissenskultur des 12. und 13 Jahrhunderts.
Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main - 2000.
Editors ad hoc of Convenit 5: Alexander Fidora e Andreas Niederberger
(ISSN 1517-6975).
O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval encontra-se muito bem exemplificado em uma iluminura do Hortus Deliciarum - obra redigida pela abadessa do mosteiro de Odile (ou Hohenbourg), Herrade de Landsberg (1130-1195), voltada à instrução das monjas de seu mosteiro. O Hortus Deliciarum contém várias iluminuras, dentre as quais esta representação abaixo da Roda da Fortuna (GREEN: 1979).
Imagem 1
La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’ Hortus Deliciarum de Herrade de Landsberg. Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept Estampes Ad 144 a)
A imagem acima contém os quatro estágios simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda:
1) regnabo (eu devo reinar: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço direito erguido)
2) regno (eu reino: figura em cima da Roda, freqüentemente coroada, para significar o reinado)
3) reganvi (eu reinei: figura que está do lado direito da roda, caindo da graça)
4) sum sine regno (eu não tenho reino: figura na base da roda que perdeu completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente jogada da Roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo) (STRAYER: 1983, p.145-147).
Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana (BIEDERMANN: 1996, p. 591).
Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que o destino dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado pela Fortuna. Além disso, o ressurgimento da imagem da Roda a partir do século XII também se explica pelas condições materiais de então: a figura das três ordens já não refletia a realidade. O dinheiro voltou a ser o nervo do poder, penetrando em todas as relações de sociedade, "...se infiltrando em relações até então baseadas na gratuidade, na amizade, na dedicação e na devoção" (DUBY, 1992, p. 162). Provocou desestabilização, esperança de cada um "ganhar" (palavra que se disseminou ao longo do século XII). A vida transformou-se em aventura, em possibilidades. Em suma, enriquecer passou a ser considerado (DUBY, 1992, p. 163-164).
O termo Roda da Fortuna parece ser uma evolução de duas diferentes deusas antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a que traz”, relacionada ao conceito de providência) e Fortuna (ligada à fertilidade, à agricultura e às mulheres). Esta última tinha traços similares à Tyche, deusa grega associada ao acaso e à sorte.
Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a criação de uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte, destino e acaso de suas predecessoras.
Existiam pelo menos três templos dedicados à deusa Fors em Roma e um festival lhe era dedicado em 24 de junho (“Fortuna”). Ela era apresentada freqüentemente segurando uma cornucópia e um timão, sobre uma esfera ou uma roda, e simbolizava seu poder sobre a vida das pessoas que consideravam possuir fortuna se tivessem sorte ou infortúnio (BIEDERMANN: 1996, p. 275-276).
O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra justamente no período de vida de Ramon Llull (1232-1316), na coleção de canções germânicas profanas denominada Carmina Burana, uma coletânea de obras anônimas datada de 1300 e provenientes da abadia bávara de Benedictbeuern. Trata-se de uma estimulante exaltação à natureza em forma de fortes tons primários, que possui uma canção a respeito da Fortuna.
A obra Carmina Burana transmitiu, por tradição, a obra do Arquipoeta (†c.1165), um latino anônimo, provavelmente da Renânia, que foi patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de Dassel. Sua obra mais famosa, Confessio, expressou os paradoxos e o brilho do renascimento cultural do século XII, com sua confiança na razão e na natureza. Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos. Em duas canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da Fortuna, que, com seu sobe-e-desce, traz alegrias e desgraças para os homens:
O FORTUNA (CB 17)
I
O Fortuna Ó Fortuna
velut luna tal a Lua,
statu variabilis uma forma variável!
semper crescis Sempre enchendo
aut decrescis Ou encolhendo:
vita detestabilis Ó que vida execrável!
nunc obdurat Pouco duras,
et tunc curat Quando curas
ludo mentis aciem De nossa mente as mazelas;
egestatem A pobreza,
potestatem A riqueza,
dissolvit ut glaciem. Tu derretes ou congelas.II
Sors immanis Bruta sorte,
et inanis És de morte:
rota tu volubilis Tua roda é volúvel,
status malus Benfazeja,
vana salus Malfazeja,
semper dissolubilis Toda sorte é dissolúvel.
obumbrata Disfarçada
et velata De boa fada,
michi quoque niteris Minha ruína sempre queres;
nunc per ludum Simulando
dorsum nudum Estar brincando,
fero tui sceleris. Minhas costas nuas feres.III
Sors salutis Gozar saúde,
et virtutis Mostrar virtude:
michi nunc contraria Isto escapa a minha sina;
est affectus Opulento
et defectus Ou pulguento
semper in angaria. O azar me arruína.
Hac in hora Chegou a hora,
sine mora Convém agora,
corde pulsum tangite O alaúde dedilhar;
quod per sortem A pouca sorte
sternit fortem Do homem forte
mecum omnes plangite!” Devemos todos lamentar
(WOENSEL: 1994, p. 32-35).
Símbolo da mutação, das alternâncias da vida cotidiana, esta imagem percorreu toda a Idade Média, que a recebeu como herança de Boécio (LE GOFF: 1983, vol. I, p. 206). Trataremos aqui da imagem da Fortuna em Boécio, na obra Consolatio Philosophiae, e de como Ramon Llull utilizou esta metáfora para criticar os novos valores sociais dos burgueses citadinos do século XIII.
*
O tema da Fortuna percorre toda a Consolatio Philosophiae (524) — depois da Bíblia e da Regra de São Bento, a obra mais lida na Idade Média. As circunstâncias da redação da Consolatio explicam o destaque dado ao tema, pois Boécio a escreveu na prisão, após ter sido preso por motivos políticos e caído em desgraça.
Na época, a Itália era governada pelo rei godo Teodorico, ariano, que, num primeiro momento, desejou demonstrar tolerância religiosa com os católicos, nomeando elementos da aristocracia romana, como Boécio, para cargos no governo. O arianismo foi uma corrente cristã considerada herética, que se dividida em três seitas acerca do pensamento sobre a natureza de Cristo: os eunomeanos (que negavam que o Filho tivesse qualquer coisa em comum com o Pai, os homeanos(atribuindo-lhes uma simples semelhança) e os homoeouseanos (subordinando o Filho ao Pai) (DE LIBERA: 1998, p. 248-249).
Porém, mais tarde, Boécio defendeu publicamente Albino, um senador romano acusado de conspirar com Bizâncio contra o rei godo, e foi tido também por traidor. Desde 522 Mestre de Ofícios de Teodorico, Boécio foi então preso (524) e levado de Ravena para Pavia. Para Teodorico, este era um sinal que a aristocracia romana o estava traindo. Com um sádico requinte de crueldade, Teodorico determinou que os juízes do processo de Boécio fossem os mesmos senadores romanos que haviam sido fiadores em sua defesa de Albino (FUMAROLI: 1998, p. XVIII).
A Consolatio, genial diálogo em forma socrática, mostra-se ainda mais interessante pelas circunstâncias de sua redação, pois foi escrita entre uma sessão e outra de tortura, quando uma correia de couro era apertada em torno do crânio do filósofo, fazendo saltar os globos oculares das órbitas, fato registrado numa crônica anônima de Ravena — e confirmado pela História Secreta de Procópio (FUMAROLI: 1998, p. XIX).
No texto, Boécio também menciona os efeitos da tortura, como por exemplo uma perda passageira da memória (BOÉCIO: 2000, p. 87). Graças às visitas de seu sogro Símaco, conseguiu fazer chegar o original à posteridade. Mais tarde, por demonstrar publicamente sua revolta com o assassinato do genro Boécio, Símaco também foi morto por ordem de Teodorico.
Na Consolatio, Boécio conversa com a Filosofia, e lamenta a sua sorte, mostrando-lhe durante boa parte do diálogo, a malévola e enganosa Fortuna, que trata cruelmente os homens, sem se importar com as acusações a um inocente. Por causa dela, os homens erram em seus julgamentos, pois, ao invés de analisar os méritos das ações passadas, só vêem os caprichos da Fortuna e acreditam que esse é o desejo natural dos acontecimentos: Mas gostaria apenas de dizer que o fardo mais pesado com que a Fortuna possa afligir alguém é este: que as olhos do povo estaja sendo justamente castigado quem na verdade é inocente. (BOÉCIO: 2000, Livro I, I.1, p. 15)
No entanto, a Filosofia repreende Boécio:
Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens (...) seus jogos são funestos (...) e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo ao outro que caracteriza a Fortuna que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou desejá-la. (BOÉCIO: op. cit., Livro II, II.1, p. 26)
A Filosofia então se coloca no papel da Fortuna para que Boécio compreenda melhor sua sorte. Neste momento, o autor se vale da metáfora da Roda para explicar o sentido do movimento da Fortuna:
E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com minha própria natureza! Minha natureza, o jogo interminável que jogo é este: virar a Roda (da Fortuna) incessantemente, ter prazer em fazer descer o que está no alto e erguer o que está embaixo: Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição: que não consideres injusto descer, quando assim ditares as regras do jogo. Ignoravas mesmo a minha maneira de agir? (BOÉCIO: op. cit., Livro II, II.3, p. 29)
Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande espetáculo. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o teatro da vida. Vive-se uma grande peça, onde se desenvolvem tumultuadas e violentas relações pessoais que perpassam a prática social.
Esta visão de mundo foi igualmente recuperada na Idade Média. Por exemplo, a arte de Brueghel (1525?-1569) retratou a cultura rural medieval e, especialmente, o sentido da teatralidade da existência humana: a vida se desenvolve em diferentes cenários, onde diversos personagens atuam seus múltiplos papéis existenciais (COSTA: 1998).
Brueghel via o mundo assim, como um teatro. Todos interpretam um papel: o soldado, o agricultor, o comerciante e rico, exausto de tanto comer no paraíso dos glutões (JANSEN: 1995). Trata-se de um testemunho que une o real, o fantástico, o cotidiano vivido e o imaginário temido. Um depoimento angustiado, mórbido, dilacerante, pessimista. Um famoso cartaz da época anunciava o teatro do mundo: “Theatrvm orbis terracvm”. Pois todos atuam num cenário e giram como os rádios de uma roda. Sempre foi assim e a roda seguirá girando eternamente.
Esse prisma via a vida como um ritual, cheio de significação teológica, mística e carismática. Essa espécie de encenação comandava o real através do imaginário: é o que Georges Balandier chamou de teatrocracia, o conjunto de todas as manifestações da existência social, o tribunal teatral (BALANDIER: 1982, p. 05). A Roda da Fortuna apenas ressaltava este tipo específico de farsa que organizava os poderes constitutivos e as ações sociais.
Por esses motivos, a Filosofia de Boécio afirma que os homens não devem procurar nada na Fortuna, pois não há nada nela que mereça ser procurado. Não há nada nela que seja intrinsecamente bom, já que ela beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se associa.
Em contrapartida, a Filosofia mostra a Boécio que a Fortuna é benéfica aos seres humanos, pois esclarece a eles quando se desmascara e mostra seus métodos de ação. Ela possui, assim, duas faces: uma, sedutora e atraente, caprichosa e flutuante, quando mente com sua aparência de felicidade; outra, comedida e sincera, pois mostra os verdadeiros amigos, distinguindo a franqueza da hipocrisia.
Assim, a Fortuna comporta uma parte de bem e uma parte de mal. Uma engana, a outra instrui. Pois a amizade é o tesouro mais sagrado que existe, pois os amigos são dados pela virtude e não pela Fortuna.
Apesar do momento adverso pelo qual estava passando, o autor, ao longo da obra, mostrou possuir uma visão postiva acerca do universo: o mundo caminha para o bem e aqueles que estão desprovidos da Fortuna fugaz deste mundo (luxo, riquezas, poder) estão livres se mantiverem-se bons e virtuosos. Desta forma, toda a injustiça sofrida por Boécio é atenuada pelo sentimento de que atingirá o verdadeiro bem (Deus) na eternidade.
Boécio também explica porque motivo a Fortuna é inconstante. Como o desejo pela boa fortuna avilta os homens, a Providência Divina envia males, misturados com bens, para que os bons não se corrompam ou para reforçar as virtudes. Aos maus é deixado o livre-arbítrio para escolherem o bem, graças ao poder que muitas vezes possuem em suas mãos (como por exemplo, o rei Teodorico), mas se persistirem no mal serão mais tarde punidos pelo Juiz Supremo, Deus, por toda a eternidade.
Veremos agora como a Fortuna se apresenta na obra do filósofo Ramon Llull e de como se aproxima do pensamento de Boécio.
*
Em sua Ars, na hora de fazer aplicações, Ramon Llull define cem formas abstratas, que ele chama generalíssimas. Na forma 61, Ramon trata da fortuna e do afortunado:
A fortuna é acidente, e por isso encontra-se fora da segunda espécie da regra C. E é um hábito, com o qual a pessoa afortunada se dispõe acidentalmente para aquela boa fortuna; como o caminhante que, indo em peregrinação, encontra ouro ao acaso. A própria fortuna é, sem dúvida, pela segunda espécie da regra D; e tem ser no sujeito no qual se encontra, pela quarta espécie da regra C. E é o que é pela terceira espécie da regra D; e encontra-se fora do princípio, do meio e do fim, da concordância e da contrariedade.
Não se encontra, contudo, fora da menoridade e maioridade. E neste passo, o entendimento conhece que a fortuna tem pouco de “ser” enquanto a consideramos em si mesma, mas tem muito “ser” enquanto a consideramos em relação ao afortunado (RAMON LLULL,Ars Generalis ultima, ROL 128, Parte 10, cap. 61 p. 349-350).
Para Ramon, a Fortuna é um acidente, portanto não é substância. Em seu sistema de pensamento, Llull faz dez perguntas para saber de modo completo o que são as coisas. Ele chama estas perguntas de regras. Na segunda regra, chamada de C, pergunta sobre a essência das coisas.
Por sua vez, esta questão desdobra-se em quatro espécies. Na segunda espécie, Ramon se pergunta o que a coisa tem em si mesma essencialmente e naturalmente, coisa sem a qual não poderia ser. Aí então encontra-se a Fortuna. Como ela é acidental no sujeito, encontra-se então fora da segunda espécie da regra C. A Fortuna para Ramon é um hábito, hábito esse com o qual a pessoa afortunada se dispõe acidentalmente para aquela boa Fortuna.
O exemplo que Ramon dá é o do peregrino, que em sua caminhada encontra ouro. Então afirma que a Fortuna é pela segunda espécie da regra D. Enquanto a regra C pergunta sobre a essência das coisas, a regra D pergunta pela materialidade da coisa. Desdobra-se em três espécies; a segunda espécie pergunta “de que é algo feito ou constituído?”. Por exemplo, o prego é constituído de ferro e o homem de corpo e alma.
De que então é constituída a materialidade da Fortuna? Ramon passa por essa questão, relacionando o sujeito à quarta espécie da regra C — que pergunta pelo “que tem uma coisa na outra” (por exemplo, o entendimento, no objeto que contempla, se pode ter pecado).
Por esta quarta espécie da regra C vê-se que a Fortuna está no sujeito que tem a sorte de tê-la. Ela está no sujeito sem que ele queira, por isso ele é pessoa afortunada. A terceira espécie da regra D pergunta “de quem é?” a coisa, como por exemplo,`“o reino é do rei?”, ou “o acidente é da substância?”. No caso da Fortuna, esta não existiria sem a pessoa afortunada, pois, para Ramon, ela não existe em si mesma.
Neste aspecto, Ramon não se vale da Fortuna em si; pelo contrário, transfere o centro da atenção para a pessoa afortunada: é nela que o filósofo encontra o principio, meio, fim, a concordância e a contrariedade. Na Fortuna, Ramon vê os princípios relativos da maioridade e menoridade. Existiriam então Fortunas maiores e menores.
Esta explicação de Llull nos parece ligada à noção corrente acerca da Fortuna que provinha da Antigüidade e que Boécio mostra na Consolatio, como algo inconstante, fugaz e incontrolável aos humanos.
Num outro exemplo, o filósofo catalão compara a Roda da Fortuna aos grupos sociais da época, especialmente aos usurários, a quem critica. Tal como Boécio, mostra que as glórias deste mundo são fugazes e que o burguês que peca pela avareza e pela cobiça do lucro será mais tarde punido por Deus. Na Doctrina Pueril (1274-1276) — uma das primeiras obras pedagógicas na Idade Média em língua vulgar e um dos primeiros livros escritos para as crianças — Ramon usa a metáfora da Roda da Fortuna para mostrar que os homens se movem em seus diversos ofícios:
Assim como a roda que se move dando voltas, filho, os homens que estão em seus mesteres acima ditos se movem (lavradores, ferreiros, mercadores, sapateiros, etc...). Logo, aqueles que estão no mais baixo ofício em honramento, desejam subir a cada dia, tanto que estejam no lugar da roda soberana, na qual estão os burgueses. E porque a roda se vai a girar e a inclinar até abaixo, convém que ofício de burguês caia abaixo. (RAMON LLULL, Doctrina Pueril, 1972, p. 187-188)
Os homens que estão abaixo na Roda aspiram subir até o topo e por isso a Roda se move (o tema da Roda da Fortuna é recorrente nos Espelhos de Príncipes, até se chegar a Maquiavel [SKINNER: 1996, p. 140-141], onde discutem-se as qualidades necessárias ao governante para reduzir e controlar o poder da Fortuna).
Além de mostrar a intensa mobilidade social da sociedade medieval de meados do século XIII, esta é, sem dúvida, uma crítica do autor aos novos valores sociais dos burgueses.
Na Idade Média, burguês era o habitante da cidade não-clérigo, não-nobre e não-estrangeiro, que exercia determinadas atividades que lhe garantiam uma relativa independência, estando ligado a duas categorias de citadinos, os maiores emediocres, de acordo com os textos da época (LE GOFF: 1992, p. 164).
É importante lembrar que a atividade mercantil era, em princípio, condenada pela Igreja, que era contrária a toda atividade relacionada ao empréstimo de dinheiro a juros (usura). Exemplos da Bíblia convergiam para esta condenação, como no Levítico: “se o teu irmão achar-se em dificuldade (...) não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para receber usura (...) ” (Lv. 25, 35-37), e o Decreto de Graciano, obra eclesiástica do século XII, afirmava que “O mercador nunca pode agradar a Deus — ou dificilmente.” (“Homo mercator nunquam aut vix potest Deo placere”, citado em LE GOFF: 1991, p. 71).
Para Ramon os burgueses são avaros. Citadinos, eles valorizam a riqueza e a ambição pessoal em detrimento do senso de justiça e da comunidade medieval. Jeffrey Richards já avaliou a crescente mobilidade social que ocorria no ocidente medieval a partir do século XII:
A avareza, subproduto do retorno a uma economia de dinheiro, se manifestou através de um grande aumento do roubo e da simonia, de uma hostilidade crescente contra os judeus e de uma preocupação tanto dos pregadores quanto dos satiristas com o amor excessivo pelo dinheiro.
A ambição foi estimulada pela mobilidade social crescente, mais notadamente pela ascensão de profissionais alfabetizados e especializados em cálculo (advogados, administradores, escreventes). No século XII, ela tornou-se, pela primeira vez, um tema nos sermões dos pregadores. (RICHARDS: 1992, p. 19)
Por esse motivo, o direito só deve existir para Llull porque falta ao homem o amor a Deus, já que todo aquele que ama a Deus ama a justiça:
...porque todo homem que seja Vosso amante convém de necessidade que ame o direito. Logo, como o direito é formado em Seu relembrar e em Seu entendimento e em Sua vontade, então a alma lembrará e entenderá e desjará amar direitamente.”
(...car tot home qui vos sia amant cové de necessitat que am dretura. On, com la dretura se será formada en son remembrament e en son enteniment e en son voler, adoncs la ánima membrará e entendrà e volrà l’amat dreturament.) (RAMON LLULL, “Libre de Contemplació en Deu”, em ORL, vol. VII, tomo VI, 1913, p. 392).
Assim, a justiça luliana visava a proporção, a cada um o que é seu de direito, e através dela o príncipe cumpriria uma das finalidades de seu ofício. No mundo terrestre, o príncipe seria o responsável pela harmonia da sociedade, devendo cada indivíduo voltar-se para as virtudes para aproximar a alma do bom caminho a ser trilhado na outra vida.
*
Como vimos, para Ramon Llull e Boécio, o que importava era o mérito pessoal do cristão no caminho para a sua salvação e não o apego aos bens materiais, passageiros, inconstantes e pouco duráveis. Daí a importância do exempla da Roda da Fortuna, que mostrava aos homens a fugacidade do tempo terrestre em oposição ao tempo divino. A figura do burguês na Doutrina Pueril está em consonância com o tirano de Boécio: ambos preocupam-se com as falsas glórias da Fortuna (luxo, bens, poder) ao invés de preocuparem-se com as verdadeiras virtudes, os valores espirituais, como, por exemplo a bondade, que aproxima os humanos de Deus, o verdadeiro bem.
Embora não saibamos com clareza se Ramon leu a obra de Boécio, a tradição desta perpassou todo o período medieval, e parece-nos que para ambos os autores, todas as falsas glórias do mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no alto da Roda, poderão cair ao Inferno, ao passo que as almas dos bons viverão na eterna bem-aventurança, ao lado de Deus.
*
Fontes
BOÉCIO, A Consolação da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 1995.
Carmina Burana [Canções de Beuern], MAURICE VAN WOENSEL (trad., introd. e notas), São Paulo, ARS POETICA, 1994.
HERRAD OF HOHENBOURG. Hortus Deliciarum (ed. by ROSALIE GREEN), Studies of the Warburg Institute, vol. 36, London and Leiden, The Warburg Institute, University of London; Brill, 1979.
RAMON LLULL, Ars Generalis ultima, ROL XIV.
RAMON LLULL, “Libre de Contemplació en Deu”, em ORL, vol. VII, tomo VI, 1913.
RAMON LLULL, Doctrina Pueril (a cura de GRET SCHIB), Barcelona, Editorial Barcino, 1972.
Bibliografia
BALANDIER, Georges. O Poder em Cena, Brasília, Editora UnB, 1982.
BIEDERMANN, Hans. Encyclopédie des Symboles (ed. française de Michel Cazenave), Paris, Le Livre de Poche, 1996.
COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média, Rio de Janeiro, Edições Paratodos, 1998.
DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval, São Paulo, Edições Loyola, 1998.
DUBY, Georges. A Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D'Arc. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
FUMAROLI, Marc. “Prefácio”, In: BOÉCIO, A Consolação da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
GREENE, A. K. Richard Leighton. "Fortune." In: JOSEPH R. STRAYER (org.) Dictionary of the Middle Ages, Vol. 3, , New York, Scribner's, 1983, p. 145-147.
JANSEN, Pierre. História Geral da Arte — Grandes Gênios da Pintura, Madrid, Ediciones delPrado, 1995.
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval, Lisboa, 1983, Editorial Estampa, vol. I.
LE GOFF, Jacques. Mercadores e Banqueiros na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 1991.
LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval, São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 164.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.