A Igreja Católica e a escravidão
Ricardo da COSTA
Texto publicado no Jornal Gazeta do Povo
no dia 02/02/2013
Imagem 1
Negras novas a caminho da Igreja para o batismo. Jean Baptiste Debret (1768-1848).1
Vivemos em uma época conturbada. Qualquer coisa afirmada levianamente ganha auréola de verdade. Por exemplo, recentemente, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) disse que sessenta por cento dos congressistas brasileiros utilizavam serviços de prostitutas e que, por isso, eles gostariam de gozar essa atividade em “locais mais seguros”. Conclusão: para o deputado, deveríamos regulamentar a vida das meninas.2
Rapidamente a notícia ganhou as manchetes dos jornais. Contudo, dias depois, Wyllys voltou atrás – em uma matéria infinitamente menor, claro: disse que baseou sua afirmação em sua “percepção da sociedade brasileira”, e que, de fato, desconhecia casos de pagamento de prostitutas por colegas.3
Bem, cito o deputado do PSOL porque o próprio se valeu de um trecho de uma mensagem do papa Bento XVI no XLVI Dia Mundial da Paz para mais uma de suas afirmações bombásticas. O papa defendera a “estrutura natural do matrimônio” – a união entre um homem e uma mulher – quando negou que quaisquer outras formas radicalmente diversas de união fossem igualmente consideradas, pois elas “prejudicam, desestabilizam e obscurecem a função insubstituível do casamento”.
Fazer essa equiparação constituía uma “ofensa contra a verdade da pessoa humana e uma ferida grave infligida à justiça e à paz”. Parafraseando o papa, o deputado afirmou que “ferida grave infligida à justiça e à paz foi a escravidão de negros africanos apoiada pela Igreja Católica”.4
Nesse caso, Jean Wyllys não está só. Essa é uma das acusações costumeiras feitas à Igreja. Teria ela, segundo seus detratores, apoiado o sistema escravocrata, especialmente o ocorrido na África no período moderno (séculos XVI-XIX). Isso é verdade? Não. A verdade é exatamente o contrário disso. Vamos (mesmo que brevemente) aos fatos?
Na Bíblia há várias passagens relativas a escravos (especialmente o Antigo Testamento). Quase sempre são prescrições atenuantes. Por exemplo: não se deve entregar um escravo fugitivo5, nem utilizá-lo em tarefas degradantes ou serviços desnecessários6; ao escravo é reservado o dia de descanso (sábado).7 Em Eclesiástico:
Emprega-o [o escravo] em trabalhos, como lhe convém,
e, se não obedecer, prende-o ao grilhão.
Mas não sejas muito exigente com as pessoas
e não faças nada de injusto.
Tens um só escravo? Que ele seja como tu mesmo,
pois o adquiriste com sangue.
Tens um só escravo? Trata-o como a um irmão,
pois necessitas dele como de ti mesmo (Eclo 33, 29-32).
Em resumo: apesar de reconhecer a escravidão, a religião a atenuava. Essa foi basicamente a herança do mundo antigo no que diz respeito aos preceitos religiosos.
Com a ascensão social e política da Igreja na Idade Média e a consequente cristianização das monarquias, a pressão a favor dos pobres, das mulheres e dos escravos tornou-se maior. Por exemplo, uma lei do século VI (sob influência da Igreja Católica) afirmava que nenhum escravo poderia ser preso caso estivesse em um altar católico: seu dono deveria pagar uma pesada multa caso fizesse isso.
Nesses séculos conhecidos pelos especialistas como Alta Idade Média (V-X) o Catolicismo que se difundiu na Europa pressionou aquelas sociedades a considerar a escravidão algo ultrajante aos seres humanos, já que, pela fé em Jesus Cristo, somos todos filhos de Deus.8
Apesar disso, a escravidão só lentamente diminuiu – para dar lugar, pouco a pouco, à servidão. Com ela, a dignidade humana estava muito acima da escravidão. Nessa, o escravo era uma coisa que falava; naquela, o servo tinha deveres (e muitos!) – mas também direitos (como, por exemplo, a inalienabilidade da terra).
Mas os homens são dificilmente civilizados (e com revezes regulares). Mesmo com a pregação regular da Igreja, na Europa medieval a escravidão continuou tão comum que teve que ser reiteradamente condenada (Concílios de Koblenz, em 922, de Londres, em 1022, e no Conselho de Armagh, ocorrido na Irlanda em 1171).
Naquele Concílio de Londres, por exemplo, foi decidido: “Que futuramente, na Inglaterra, ninguém queira entrar naquele comércio nefasto no qual estavam acostumados a vender homens como animais irracionais” (artigo 27).
O problema era que as antigas leis romanas, seu Código Civil, reorganizado nos anos 529-534 pelo imperador bizantino Justiniano I (482-565) como Corpus Iuris Civilis (Conjunto do Direito Civil), regulamentava a escravidão. Segundo ele, embora o estado natural da Humanidade fosse a liberdade, os direitos dos povos poderiam, no entanto, substituir a Lei Natural e escravizar pessoas. Basicamente um escravo era: 1. alguém cuja mãe era escrava, 2. qualquer pessoa capturada em batalha, 3. qualquer um que se vendeu para pagar uma dívida (fato comum nos primeiros séculos medievais).
Com a ascensão e expansão do Cristianismo, o Direito também se cristianizou. Os advogados medievais, a partir do século XI, chegaram (finalmente) à conclusão que a escravidão era contrária ao espírito cristão. Isso para cristãos (e que não me venha nenhum fariseu acusar a Igreja de não legislar para não cristãos). Em contrapartida, por exemplo, foi o Islã quem difundiu largamente a escravidão. Vejamos isso com mais pormenor.
Começo com uma citação do grande historiador Fernand Braudel (1902-1985): “O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra através dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da África Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o tráfico negreiro (...). O comércio de homens foi um fato geral e conhecido de todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de escravos”.9
Aqui chegamos à escravidão negra. Muitos séculos ANTES da chegada dos brancos europeus à África, tribos, reinos e impérios negros africanos praticavam largamente o escravismo, exatamente como os berberes (e demais etnias muçulmanas). Os europeus do século XVI tinham verdadeiro pavor de deixar o litoral ou mesmo desembarcar de seus navios e avançar para longe da costa e capturar escravos. Estes eram trazidos pelos próprios africanos, que tinham grandes mercados espalhados pelo interior do continente, abastecidos por guerras entre as tribos, ou mesmo puro sequestro.
Isso pode ser facilmente comprovado, por exemplo, com a descrição do império de Mali feita pelo cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores viajantes da Idade Média, e o depoimento de al-Hasan (1483-1554) sobre Tumbuctu, capital do império de Songai. Ademais, havia tribos africanas que praticavam sacrifícios humanos, naturalmente de escravos. Às vezes, para interromper a chuva, mulheres negras (e escravas) eram crucificadas.10
Entrementes, a Igreja Católica reiteradamente condenava a escravidão. Há inúmeras bulas papais a respeito: Sicut Dudum (1435) – Eugênio IV (1383-1447) manda libertar os escravos das ilhas Canárias; em 1462, Pio II (1405-1464) instrui os bispos a pregarem contra o tratamento de escravos negros etíopes, e condena a escravidão como um “crime tremendo”; Paulo III (1468-1549), na bula Sublimus Dei (1537) recorda aos cristãos que os índios são livres por natureza (isto é, ao contrário dos negros, eles não praticavam a escravidão); em 1571 o dominicano Tomás de Mercado (1525-1575) declarou desumana e ilícita a escravidão; Gregório XIV (1535-1591) – Cum Sicuti, de 1591 – e Urbano VIII (1568-1644) – Commissum nobis, de 1639 – condenaram a escravidão. 11
Paro no século XVII. Há muito mais.12 Mas qual é o resumo da ópera? Devemos estudar o passado, não inventá-lo.
Notas
- 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. “Embora tenha caído em desuso o artigo da primitiva lei sobre a escravidão, que prescrevia aos brasileiros mandarem batizar seus negros novos dentro de um determinado prazo, deixou, entretanto, vestígios de seu objetivo moral no coração dos proprietários indígenas. É raro, com efeito, encontrar-se hoje em dia um negro que não seja cristão; por outro lado, do ponto de vista político, esse freio de uma religião tão tolerante torna-se também uma garantia para os senhores obrigados a dirigir uma centena de escravos reunidos. A observância desse costume é tanto mais fácil para o citadino quanto circulam nas ruas alguns velhos negros livres, corretores de profissão, professores dos princípios da religião católica e que são principalmente apreciados porque têm a vantagem de falar várias línguas africanas, o que facilita os progressos dos novos catecúmenos (...) É em geral o escravo mais antigo que serve de padrinho e nas casas ricas concede-se essa honra aos mais virtuoso. Entretanto, isso não acarreta nenhuma obrigação em relação ao escravo e o senhor se desobriga de seus escrúpulos mediante uma simples esmola oferecida à Igreja.” – Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Jean Baptiste Debret. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978, Tomo II, Volume III, Prancha 8, p. 166.
- 2. “Eu diria que 60% da população masculina do Congresso Nacional faz uso dos serviços das prostitutas, então acho que esses caras vão querer fazer uso desse serviço em ambientes mais seguros”. Internet.
- 3. Folha de São Paulo, sexta, 18 de janeiro de 2013. Internet.
- 4. Tweeter.
- 5. “Não entregarás a seu senhor o servo que, tendo fugido dele, se acolher a ti” – Deuteronômio 23:15.
- 6. “Porque são meus servos, que tirei da terra do Egito; não serão vendidos como se vendem os escravos. Não te assenhorearás dele com rigor, mas do teu Deus terás temor.” – Levítico 25:42-43.
- 7. “Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR teu Deus; não farás nenhum trabalho nele, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de tuas portas; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu.” – Deuteronômio 5:14.
- 8. “Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” – Gálatas 3:22-28.
- 9. BRAUDEL, Fernand. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 138.
- 10. COSTA, Ricardo da. “A expansão árabe na África e os Impérios Negros de Gana, Mali e Songai (sécs. VII-XVI)”. In: NISHIKAWA, Taise Ferreira da Conceição. História Medieval: História II. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009, p. 34-53.
- 11. Documentos oficiais da Igreja contra a escravidão.
- 12. Indico, como um excelente resumo da posição da Igreja, a leitura da Carta Apostólica In Supremo, de 03 de dezembro de 1839, sobre a condenação da escravidão dos indígenas e do comércio dos negros. Site. Há também uma obra com fontes primárias sobre o tema: BALMES, Jaime. A Igreja Católica em face da escravidão. São Paulo: Centro Brasileiro de Fomento Cultural, 1988 (agradeço ao Prof. Samuel Cardoso Santana pela indicação).