Maomé foi um enganador que fez um livro chamado Alcorão
A imagem do Profeta na filosofia de Ramon Llull (1232-1316)
In: Revista NOTANDUM, n. 27, Ano XIV, set-dez 2011, p. 19-35
Editora Mandruvá - Univ. do Porto
(ISSN 1516-5477).
Trabalho apresentado no IX EIEM
Encontro Internacional dos Estudos Medievais
O Ofício do Medievalista, evento organizado pela ABREM
e ocorrido em Cuiabá entre os dias 04 e 08 de julho de 2011.
Texto em espanhol
Conferência proferida na Universidad Autònoma de Madrid (UAM)
no dia 17 de novembro de 2011 no Grupo de Pesquisa “Iglesia y legitimación del poder político.
Guerra santa y cruzada en la Edad Media del occidente peninsular (1050-1250)”
do Prof. Dr. Carlos de Ayala Martínez.
In: Revista NOTANDUM, n. 27, Ano XIV, set-dez 2011, p. 19-35
Editora Mandruvá - Univ. do Porto
(ISSN 1516-5477).
Trabalho apresentado no IX EIEM
Encontro Internacional dos Estudos Medievais
O Ofício do Medievalista, evento organizado pela ABREM
e ocorrido em Cuiabá entre os dias 04 e 08 de julho de 2011.
Texto em espanhol
Conferência proferida na Universidad Autònoma de Madrid (UAM)
no dia 17 de novembro de 2011 no Grupo de Pesquisa “Iglesia y legitimación del poder político.
Guerra santa y cruzada en la Edad Media del occidente peninsular (1050-1250)”
do Prof. Dr. Carlos de Ayala Martínez.
Imagem 1
Nessa iluminura de um manuscrito italiano do séc. XIV (possivelmente de Gênova), Virgílio (70-19 a. C.) e Dante (c. 1265-1321) (à esquerda, com uma veste azul) encontram-se no nono abismo do Inferno. Horrorizado, o poeta abre os braços e vê os “semeadores de escândalo e cismáticos”, percorrendo eternamente a vala, onde, a cada volta, são cortados ao meio por um diabo com uma enorme espada (à direita). Antes de fecharem suas feridas, na volta seguinte, eles são novamente cortados. Por toda a eternidade. No centro da cena, Maomé, o principal semeador de escândalos, mostra a Dante as suas entranhas, seu “ascoso saco no qual fezes se torna o que é tragado”. À sua esquerda (direita da cena), está Ali, com o corpo roxo, fendido, caminhando em direção do diabo (Inferno, Canto XXVIII, 22-63). MS. Holkham misc. 48 (Norfolk, Holkham Hall, MS. 514), p. 42.
El dia del judici m’escusaré davant del jutge suprem, dient i assenyalant am el dit: Senyor, jutge just: vet ací aquells a qui personalment i por escrit vaig mostrar, com millor vaig saber, la manera per la qual, si volien podien convertir els infeels i conduir-los a la unitat de la nostra fe catòlica, recobrant el vostre sepulcre vertat amb la ciutat de Jerusalem i la Terra Santa.
Qui judici vindrà sobre ells, no m’és lícit de saber-ho; només pertany a qui ho sap tot des de sempre (...) la justícia de Déu serà gran en aquell judici.
No Dia do Juízo, me escusarei diante do Juiz Supremo, dizendo e assinalando com o dito: “Senhor, Juiz Justo: vede aqui aqueles a quem pessoalmente e por escrito mostrei, como melhor sabia, a maneira pela qual, se desejassem, poderiam converter os infiéis e conduzi-los à unidade da nossa fé católica, recuperando o Vosso verdadeiro Sepulcro, a Cidade de Jerusalém e a Terra Santa”.
Que julgamento virá sobre eles não me é lícito saber, isso somente pertence a quem tudo sabe, desde sempre (...) a justiça de Deus será grande naquele julgamento.
RAMON LLULL, O Livro Derradeiro, Prólogo.
I. Introdução: a imagem medieval cristã do Islã
Esquartejado continuamente por toda a eternidade no nono abismo infernal, Maomé padece por seu pecado: para a Cristandade medieval, Maomé ardia para sempre no Inferno. Mas para que o leitor não pense que essa terrível imagem que Dante (c. 1265-1321) construiu em sua Divina Comédia (c. 1304-1321) tenha sido uma novidade, uma geração antes, Tomás de Aquino (c.1224-1274) foi igualmente taxativo: Maomé criou uma seita errônea – a seita dos sarracenos – e seduziu os ignorantes povos do deserto com promessas de desejos carnais; ensinou fábulas e doutrinas falsas, além de ter demonstrado que foi enviado pelo poder das armas, sinal dos ladrões e dos tiranos (Suma contra os gentios, Livro I, VI, 3).
Ramon Llull (1232-1316) não se manifestou de modo distinto em relação ao tema. Já em uma de suas primeiras obras – dedicada ao seu filho Domingos – o Livro da Intenção (Llibre d’intenció, c. 1274-1283), o filósofo alertou o menino:
No es un hom sol qui haja fet tant de mal com cell que ha fet Mafumet, qui tant home ha mès en error; emperò, més de mal se segueix con hom no ha a Deu la primera intenció, que no es tot lo mal que ha fet Mafumet; cor major be es en .j. home qui fortment am Deu per la primera intenció, que no es mal en tots los homens qui son dampnats.
On, com açò sia enaxí, obri, fill, los uylls de ta pensa, e entén con gran cosa es be qui es per la primera intenció, contre mal qui es per la segona.
Não existe um homem que tenha feito tanto mal quanto Maomé, que tantos homens colocou no erro. Contudo, segue-se um bem maior quando o homem tem a primeira intenção em Deus, que não é todo o mal que fez Maomé, pois maior bem está em um só homem que fortemente ama a Deus pela primeira intenção que o mal em todos os homens que estão danados.
Logo, abre, filho, os olhos de teu pensamento e entende quão grande coisa é o bem que existe pela primeira intenção contra o mal que existe pela segunda (II, 7) (os grifos são nossos – e também a maior parte das traduções dos extratos das obras lulianas citadas).
Como se percebe nessa contundente passagem do Livro da Intenção, para Llull, todos os homens convertidos ao Islamismo estão em princípio danados, isto é, condenados no Inferno caso, obviamente, não se arrependam de seus erros e mudem de vida. O filósofo aprofundou essa imagem do Islã em outra obra pedagógica dedicada ao filho, a Doutrina para crianças (Doctrina pueril, c. 1274-1276), um dos mais importantes documentos pedagógicos redigidos na Idade Média.
II. Maomé na Doutrina para crianças (c. 1274-1276)
O texto está dividido em três partes. Na primeira, Ramon expõe o catecismo católico ao filho (caps. 1-67); na segunda, há uma exposição crítica do Judaísmo, uma refutação do Islamismo e uma condenação dos gentios (caps. 68-72). Por fim, a terceira parte discorre sobre as sete Artes Liberais, a Teologia, o Direito, a Natureza, além de conter reflexões sobre temas diversos (caps. 73-100). Ou seja, na obra, Ramon apresentou ao seu filho tudo o que considerava pertinente à sua educação, particularmente para a salvação de sua alma.
É de nosso especial interesse o capítulo da Doutrina para crianças dedicado ao Islã, pois nele o filósofo apresenta e ensina ao filho uma imagem bastante dura de Maomé e do Islamismo, aquilo que realmente pensava – muito diferente do que outras obras suas poderiam sugerir, como, por exemplo, o Livro do Gentio e dos Três Sábios (Llibre del gentil e dels tres savis, c. 1274-1283), texto composto por volta da mesma época, mas com uma proposta bastante diferente, qual seja, a de simplesmente apresentar a doutrina das três religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo).
Há apenas quatro manuscritos da Doutrina para crianças, um em catalão, língua em que ele redigiu a obra, e três em latim. Eles são um pouco distintos textualmente – inclusive em seu conteúdo – e, por isso, sempre que necessário, apresentaremos suas diferenças em relação ao tema escolhido.
O capítulo 71 (De Maomé) inicia com uma contundente declaração: Maomé foi um embusteiro, um enganador, um sedutor que fez um livro chamado Alcorão. O povo que vivia em Meca e Medina era “de pouco entendimento”, isto é, ignorante, pois adorava o Sol, a Lua e as aves e os animais.
Llull conta que, após Maomé ficar quarenta dias em um monte, foi a Medina e pregou ao povo. Disse a eles que, no Paraíso, todos teriam mulheres, manteiga, mel, vinho, água e leite, morariam em palácios de ouro, com prata e pedras preciosas e ricas vestimentas. Então, ele jogou-se na terra,
...i torcia ses mans i los ulls quaix endimoniat, i puis deia que sant Gabriel li venia, que li aportava paraules de Déu, les quals són en lo llibre qui és apellat Alcorà, i que ell por la gran santedat de sant Gabriel i de les paraules no es podia sostenir, i per açò gitava’s en terra...
...retorcendo as mãos e os olhos quase como um endemoniado, dizendo depois que São Gabriel veio até ele e lhe mostrou as palavras de Deus que estão em seu livro chamado Alcorão, e que ele, pela grande santidade de São Gabriel e de suas palavras, não podia se conter, e por isso se jogava na terra (Doutrina para crianças, 71, 6) (o grifo é nosso).
Essa imagem de Maomé em transe, possuído, circulava no Ocidente no século XIII. Isso pode ser facilmente comprovado. Por exemplo, na obra Legenda Áurea (c. 1253-1270), do dominicano e arcebispo de Gênova Jacopo de Varazze (1228-1298): “Mais tarde Maomé teve frequentes ataques de epilepsia e Khadidja ficava muito triste por ter desposado um homem tão impuro e epiléptico” (cap. 175, p. 1008).
Do mesmo modo, na Legenda Áurea também se repete a versão da Doutrina para crianças que Maomé teria sido instruído por um monge, aqui chamado Sérgio (na Doutrina, chamado de Nicolau), além das virgens no paraíso muçulmano (ibid., p. 1009-1010).
Em relação a esse último ponto – a luxúria masculina no paraíso islâmico – há outra convergência da Legenda Áurea com o pensamento do filósofo maiorquino. No Livro do Gentio e dos Três Sábios há uma passagem em que o prazer carnal masculino paradisíaco com as “eternas virgens” é descrito:
...en paraís haurà hom glòria palpant, sintent, tocant draps blans e lises, e jaer en cóceres e en blans lits e en lençols e cobertors de seda.
A donar gran plaer corporal, Déus a home en paraís ha creades moltes belles donzelles vèrgens, que estoja als benauirats qui.s salvaran, en les quals haurà hom molt gran plaer de jaer ab elles, e les quals null temps no envelliran, e totes les vegades que hom jaurà ab elles les trobarà puncelles.
No Paraíso o homem terá glória apalpando, sentindo e tocando tecidos finos e lisos, deitando em colchas e leitos macios e em lençóis e cobertores de seda.
Para proporcionar um imenso prazer corporal, Deus criou no paraíso muitas belas donzelas virgens reservadas aos bem-aventurados que se salvarão, e com as quais eles terão imensos prazeres ao se deitar, porque elas nunca envelhecerão. Além disso, todas as vezes que eles se deitarem com elas as encontrarão virgens (Livro do Gentio e dos Três Sábios, Livro IV, art. 12, “Do sentir”) (os grifos são nossos).
Para os cristãos medievais, definitivamente, o Islã era uma “seita” luxuriosa. Llull afirma que o Islamismo cresceu graças à luxúria desenfreada de Maomé: “Maomé foi um homem muito luxurioso e teve nove mulheres. Como copulava com muitas outras mulheres, tornou sua seita muito ampla” (Doutrina para crianças, 71, 8). Simultaneamente, para ele, a devoção cristã arrefeceu no mundo, e essa conjunção de coisas explica a rápida expansão do Islamismo.
No entanto, para o filósofo, é impossível que Maomé tenha sido um profeta, pois fez coisas tão torpes e sujas que são inconvenientes à vida santa – Jordi Pardo Pastor chegou inclusive a afirmar que a imagem de Maomé na Doutrina para crianças tem as mesmas características do Anticristo em outra obra de Ramon Llull, o Livro contra o Anticristo (Llibre contra Anticrist, c.1274-1276). Nele, nosso autor afirma que os sarracenos têm o entendimento falso e fantástico – isto é, são mentirosos e loucos – quando dizem que, por razão da perfeição que existe no poder divino, o homem não pode pecar sem a vontade de Deus (“...los sarrayns han enteniment fals e fantastich, em quant dien que per rahó de perfecció en poder divinal homo no pot peccar sens volentat de Deu.”, II, i).
De qualquer modo, o filósofo crê que muitos sarracenos que são mais esclarecidos não acreditam intimamente que Maomé seja um profeta, e, também por esse motivo, há tantas normas no mundo muçulmano que proíbem o estudo da Lógica e da Natureza, pois caso eles estudassem Lógica, entenderiam racionalmente essa impossibilidade (Doutrina para crianças, 71, 10).
Aqui se encontra o ponto nevrálgico da tática luliana de conversão dos muçulmanos ao cristianismo: ela se daria socialmente de cima para baixo, isto é, a pregação deveria ser direcionada às elites cultas que, facilmente convertidas por serem incrédulas em relação a Maomé, ajudariam a difundir o cristianismo junto ao povo. Óscar de la Cruz Palma já destacou a importância desse procedimento para Llull, que repetidamente insiste nesse aspecto em várias obras suas (Árvore da Ciência, XIII, 5, 4-5; Livro do Fim, I, 2, e também, indiretamente, no Livro do Gentio e dos Três Sábios, IV, 12).
Quanto ao Alcorão, no “Prólogo” de outra obra sua, Os Cem Nomes de Deus (Cent noms de Déu, 1288), Llull afirma que podia perfeitamente superar o estilo do livro sagrado do Islã, e assim demonstrar que não se tratava de uma obra revelada, mas só belamente escrita. E ela tem essa beleza textual não graças a Maomé! Segundo o filósofo, Abu Bakr (c. 570-634), primeiro califa do Islã, mandou que o Alcorão fosse ditado a sete trovadores para ser redigido em “belas palavras” (Doutrina para crianças, 71, 9). Por isso, sua beleza é gramatical e estilística, não de conteúdo.
E para que toda essa catilinária “contra” o Islã? Qual a finalidade da filosofia de ação do filósofo maiorquino? A resposta é simples: seu filho Domingos deveria, tão logo aprendesse a ler, compreender qual era a verdade – a fé cristã – e que só a conversão dos “errados” – isto é, aqueles que não crêem em Jesus Cristo – impediria que eles fossem “lançados ao Inferno”. Só assim “eles” poderiam ter a glória na qual Deus é “amado, conhecido, servido e obedecido” (Doutrina para crianças, 71, 13).
O suposto diálogo luliano com o Islã – o que hoje se denomina “diálogo inter-religioso” (e que é algo bem distinto dos encontros e debates públicos medievais entre as diferentes religiões monoteístas) – portanto, tinha um único e principal objetivo: converter os muçulmanos ao cristianismo, para ele, a única fé verdadeira que salvaria a humanidade.
III. Maomé nos tratados cruzadísticos lulianos
Ramon Llull sabia que o que estava em jogo dizia respeito ao destino das almas por toda a eternidade. Talvez por esse motivo, ele seja um compositor de uma só sinfonia. Em seus textos sobre a cruzada, Llull mantêm sua posição doutrinal a respeito de Maomé e do Alcorão. E não poderia ser diferente. Extra Ecclesiam nulla salus (“Fora da Igreja não há salvação”), determinou o IV Concílio de Latrão (1213-1215); o papa Bonifácio VIII (c. 1235-1303) na bula Unam Sanctam (1302), afirmou que “Para a salvação de toda criatura humana, é absolutamente necessário estar sujeito ao Pontífice Romano”, e nessa Bula somente reiterou o que já havia afirmado o papa Inocêncio III (1198-1216): “Com nossos corações cremos e com nossos lábios confessamos que existe só uma Igreja, não a dos hereges, mas a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, fora da qual cremos que não há salvação”.
Em outras palavras, para ser salvo das penas infernais, dever-se-ia estar na Igreja e sob a autoridade do papa. Como Llull era católico, indiscutivelmente, colocava-se sob esse espectro salvífico.
Três escritos seus sobre a cruzada – Como a Terra Santa pode ser recuperada, Tratado do modo de converter os infiéis (ambos denominados O Livro da Passagem [Liber de Passagio, 1292]), O Livro Derradeiro (Liber de fine, 1305) e o Livro sobre a aquisição da Terra Santa (Liber de acquisitione Terrae sanctae, 1309), recentemente reunidos em uma obra publicada no Brasil (Raimundo Lúlio e as cruzadas), confirmam isso. Llull reitera o que já afirmara ao filho, quase quarenta anos antes. Senão vejamos.
Na primeira parte de O Livro da Passagem, Llull afirma que Maomé destruiu quase metade dos cristãos – a mesma acusação da obra A disputa entre a Fé e o Entendimento (Disputa entre la Fe I l’Enteniment, 1303).1 Portanto, deve-se ter cuidado para que mais povos não sejam convertidos ao Islã. Ademais, como muitos mestres em ciência do Islã não crêem na fé de Maomé, já que conhecem bem seus erros, é aconselhável que conheçam o modo cristão de crer, pois facilmente se converteriam (Como a Terra Santa pode ser recuperada).
A seguir, em O Livro da Passagem, o filósofo afirma que Maomé fingiu que era profeta – a mesma acusação da Doutrina para crianças, como vimos – e que a seita dos sarracenos é muito fácil de crer e agradável, pois promete na outra vida mulheres e bebidas (Tratado do modo de converter os infiéis, Quarta parte).
Em O Livro Derradeiro, por sua vez, Llull prossegue sua catilinária contra o Islã:
Així anomenen l’Alcorà paraula de Déu. El discurs, però, es molt envitricollat; jo el vaig veure. El seu argument, o matèria, és enganyós i fals, farcit de falsedats, ornat de cançons luxurioses. Per això amb facilitat es pot desmuntar i esbucar allò que diuen que és un miracle.
Assim denominam o Alcorão “palavra de Deus”. Contudo, o discurso é muito confuso; vou comentá-lo. Seu argumento, ou matéria, é enganoso e falso, recheado de falsidades, ornado de canções luxuriosas. Por isso, com facilidade pode-se desmontá-lo e destruir aquilo que dizem que é um milagre (I.2) (o grifo é nosso).
Já no Livro sobre a aquisição da Terra Santa, além de novamente afirmar que os sarracenos bem letrados não acreditam que Maomé seja profeta, Llull afirma que o Alcorão é proveniente do diabo:
Sarraceni dicunt quod Alcoranum etiam est factum per miraculum (...) Unde ad hoc respondendum est quod dictamen Alcorani est valde pulcrum, veruntamen materia sive subiectum est pessimum quia est de rebus vitiosis, obscenis, furtivis et luxuriosis, et sapientia, potestas et caritas clamant quod non est ab ipsis sed a diabolis est processum.
Os sarracenos dizem que o Alcorão também foi feito por milagre (...) Deve-se responder a isso que o ditame do Alcorão é muito bonito. Todavia, a matéria a que está sujeito é péssima, pois trata de coisas viciadas, obscenas, furtivas e luxuriosas, e a sabedoria, o poder e a caridade clamam que não é delas, mas proveniente do diabo (Da Segunda Parte da Segunda Distinção) (trad.: Waldemiro Altoé) (o grifo é nosso).
Conclusão: a concepção luliana de Maomé materializada na arte de Giovanni da Modena
Não há margem para dúvida: o filósofo Ramon Llull considerava o Islã uma seita perigosa, que tinha um livro – o Alcorão – belamente escrito, mas mentiroso, e seu líder, uma pessoa falsa que fingiu estar possuído pelo espírito divino e que, na verdade, era o maior responsável pela desgraça da Humanidade, pois levou milhares de almas para o Inferno.
Como costumeiramente trabalho, quero aqui uma vez mais fazer uma associação direta entre texto e imagem. O coroamento iconográfico dessa concepção religiosa (e ortodoxa) luliana encontra-se na Basílica de São Petrônio (séc. XIV-XV), em Bolonha, edifício que é uma das grandes manifestações artísticas do Ocidente Medieval.
Em seu interior, à esquerda do altar encontra-se um afresco do Juízo Final pintado por Giovanni da Modena (c. 1409-1455), horizontalmente dividido em duas partes (imagem 2). Acima, o Paraíso, abaixo, o Inferno. Na divisão dos dois espaços, o arcanjo Miguel ao centro.
Imagem 2
O Juízo Final (1410), de Giovanni da Modena (c. 1409-1455).
Em seu afresco, assim como a iluminura italiana do século XIV apresentada no início desse trabalho (imagem 1), Giovanni da Modena foi certamente inspirado nas passagens dantescas do Inferno, pois o lugar do tormento eterno das almas está dividido em valas, cada uma com um diabo a infernizar os condenados.
No centro do Inferno, Satã, imenso, está mastigando Judas Iscariotes, que tem apenas as pernas à mostra (exatamente como na Divina Comédia, “...che’l capo ha dentro e fuor le gambe mena”, XXXIV, 63), enquanto defeca outro pelo seu ânus. Acima da cabeça do demônio, à sua esquerda, Maomé está estendido em uma pedra, com os braços amarrados, se contorcendo, com sua cabeça repuxada por um diabo com chifres, asas e patas. Para não haver dúvida quanto ao personagem, seu nome foi escrito na pedra. O destino do Maomé de Ramon Llull – embusteiro, quase um endemoniado – é sofrer no Inferno, com todos os homens que condenou.
A filosofia de Ramon Llull, filosofia de ação, tinha como objetivo provar, com “razões necessárias”, a existência da Santíssima Trindade no mundo, e assim convencer racionalmente todos os “infiéis” – judeus e muçulmanos, especialmente – que estavam vivendo no erro e, por isso, seriam condenados à danação eterna. Seu objetivo: converter o mundo ao catolicismo romano. Seu “diálogo inter-religioso” tem essa finalidade intrínseca. Sua imagem do Islã – uma seita – como vimos, é a pior possível, e está em sintonia com o pensamento da Igreja medieval, de sua Igreja, e de seus intelectuais (como Tomás de Aquino).2
Imagem 3
O Juízo Final (1410), de Giovanni da Modena (detalhe).
Apresentar Ramon Llull como o precursor medieval do diálogo ecumênico inter-religioso moderno é um erro crasso, pois, além de desfigurar completamente a intenção de sua filosofia – sua primeira intenção – adultera anacronicamente seu pensamento para adaptá-lo à realidade teológica da Igreja nascida após o Concílio Vaticano II (1961-1965).3
Assim como Giovanni da Modena coloca Maomé no Inferno (seguindo Dante), Llull classifica o Alcorão de satânico, como vimos. Hoje o filósofo catalão seria condenado à morte pelos muçulmanos, como Salman Rushdie (1947- ).4 O passado é o passado, simplesmente aconteceu. Ele não tem culpa do presente, nem o presente necessariamente do passado.
Dom eremita, os sarracenos estão em tal estamento que aqueles que são sábios, por força do argumento, não crêem em Maomé, antes desprezam o Corão, porque ele não viveu honestamente. Assim, eles viriam à conversão rapidamente se estivessem com eles em grande disputa, e lhes mostrassem a fé por força do argumento, e aqueles, convertidos, converteriam as gentes. Não precisa muito tempo para aprender sua linguagem, nem é preciso blasfemar Maomé imediatamente. E quem faz o que pode, o Espírito Santo faz o que a ele convém, dando o cumprimento.
Ramon Llull, Desconsolo, XXVIII.5
Fontes
DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. Inferno (trad. e notas de Italo Eugenio Mauro). São Paulo, Ed. 34, 1998.
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia. Barcelona: Editorial. Herder, 1963.
JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. Vidas de Santos (trad. do latim, apres., notas e seleção iconográfica: Hilário Franco Júnior). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Poemas de Ramon Llull. Desconsolo (1295) – Canto de Ramon (1300) – O Concílio (1311) (apres. e trad. de Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos. Prefácio de Alexander Fidora). Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009.
RAMON LLULL. Obres de Ramon Llull. Libre d'intenció. Arbre de filosofia d'amor. Oracions e contemplacions del enteniment. Flors d'amors e flors d'entelligència. Oracions de Ramon, ed. Salvador Galmés, XVIII. Palma de Mallorca, 1935, p. 307-380.
RAMON LLULL. Obres selectes de Ramon Llull (1232-1316), ed. Anthony Bonner, 2 vols. Palma de Mallorca: Editorial Moll, 1989.
RAMON LLULL. Llibre dels articles de la fe. Llibre què deu hom creure de Déu. Llibre contra anticrist (ed. Antoni Joan Pons i Pons, Jordi Gayà Estelrich, Gret Schib Torra i Anthony Bonner). Nova Edició de les Obres de Ramon Llull III. Palma de Mallorca: Patronat Ramon Llull, 1996.
RAMON LLULL. Raimundi Lulli Opera Latina, Tomus XXXIII, 7-9. Annis 1274-1276 composta, ed. Jaume Medina, Corpus Christianorum, Continuatio Mediaevalis CCXV. Turnhout: Brepols, 2009, p. 9-561.
RAMON LLULL. Raimundo Lúlio e as Cruzadas. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2009.
RAMON LLULL. O Livro da Intenção (c. 1283). Alicante, Espanha: Marfil/IVITRA, 2009.
RAMON LLULL. Doutrina para crianças (c. 1274-1276). Alicante, Espanha: Marfil/IVITRA, 2009.
RAMON LLULL. Disputa entre la Fe i l’Enteniment (introd., trad. i notes a cura de Josep Batalla i Alexander Fidora). Santa Coloma de Queralt: Obrador Edèndum, 2011.
SANTA CATARINA DE SIENA. Cartas completas (trad. de João Alves Basílio). São Paulo: Paulus, 2005.
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes: Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1990.
Bibliografia
COSTA, Ricardo da. “Muçulmanos e Cristãos no diálogo luliano”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofía (UCM), vol. 19 (2002) p. 67-96.
DE LA CRUZ PALMA, Óscar. “La información sobre Mahoma en la Doctrina pueril de Ramon Llull”. In: Taula 37 (2002), p. 37-49.
MARCHI, Cesare. Grandes pecadores, grandes catedrais. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
PARDO PASTOR, Jordi. “Mahoma y el Anticristo en la obra de Ramon Llull”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofía, Vol. 22 (2005), p. 159-175.
Ramon Llulli l’Islam. L’inici del diàleg. Barcelona: La Magrana, 2008.
Notas
- 1. “Após a vinda de Maomé, os sarracenos fizeram com que os cristãos fossem destruídos de quase todas aquelas terras [África, Europa e Ásia]”. RAMON LLULL. Disputa entre la Fe i l’Enteniment (introd., trad. i notes a cura de Josep Batalla i Alexander Fidora). Santa Coloma de Queralt: Obrador Edèndum, 2011, p. 90-91.
- 2. Para que o leitor não pense que essa animosidade contra o Islã existia apenas por parte dos intelectuais cristãos do século XIII, Santa Catarina de Siena (1347-1380) tem pelo menos quinze cartas em seu epistolário em que defende abertamente a cruzada aos líderes políticos e religiosos de seu tempo – e em um tom bastante belicista. Por exemplo, na Carta 133, para Joana I, rainha de Nápoles (1326-1382), Santa Catarina se refere aos muçulmanos como demônios: “Em nome de Cristo crucificado vos peço e obrigo a que colaboreis e inflameis vosso desejo, quando chegar a hora de dar toda ajuda necessária, para que os lugares santos do Salvador sejam libertados dos demônios e os infiéis participem do sangue do Filho de Deus, como nós” (os grifos são nossos) – SANTA CATARINA DE SIENA. Cartas completas (trad. de João Alves Basílio). São Paulo: Paulus, 2005, p. 448.
- 3. Naturalmente estou a pensar na publicação Ramon Llull i l’Islam. L’inici del diàleg. Barcelona: La Magrana, 2008. Por exemplo, em seus artigos há um quase inacreditável, de Gabriel Ensenyat, cujo título é “Pacifismo e cruzada em Ramon Llull” (“Pacifisme i croada em Ramon Llull”)!
- 4. Como, aliás, o foi, quando de suas viagens ao norte da África (1293 e 1307). Para isso, ver COSTA, Ricardo da. “Muçulmanos e Cristãos no diálogo luliano”. In: Anales del Seminario de Historia de la Filosofía (UCM), vol. 19 (2002) p. 67-96.
- 5. “N’ermita, els sarrains son en tal / estament, / que cells qui son savis, per força / d’argument / no creen en Mafumet; ans tenen a nient / l’Alcorà, per ço car no visc honestament. / Per que aquells venrien tost a / convertiment, / si hom ab ells estava en gran / disputament, / e la fe los mostrava per força / d’argument, / e aquells convertits, convertrien la gent. / E en pendre llur llenguatge hom no està / llongament, / ne no cal que hom blastom Mafumet / mantinent. / E qui fa ço que pot, lo Sant Espirament / fa ço que a ell cové, / donant lo / compliment.”