O Espelho de Reis (1341-1344), do galego Álvaro Pais
Ricardo da COSTA
In: MALEVAL, Maria do Amparo Tavares (org.). Estudos galegos 4.
Niterói: EdUFF, 2004, p. 185-198
(ISBN 85-228-0385-4).
*
Um dos aspectos mais notáveis dos pensadores políticos medievais era a sua constante preocupação com a ética na política. Até o advento de Maquiavel, os intelectuais que se aventuraram a pensar a coisa pública tinham a noção de bem e de virtude como formas conceituais ideais tanto para provocar um sentimento de realização pessoal naquele agente — no caso o governante — quanto o conseqüente benefício que isso resultaria para a sua sociedade. Infelizmente, a partir de Maquiavel — e parece que até nossos dias — o que importaria seria apenas o fim da coisa, os meios, nem tanto.
O galego Álvaro Pais se insere perfeitamente no primeiro caso. Como aristotélico e escolástico, tinha a idéia das virtudes cardeais como um perfeito anteparo moral contra o mau governante, o tirano, anti-modelo por excelência do melhor regime político, a monarquia. Pretendo neste artigo tratar do tema das virtudes necessárias ao bom governante tal como se encontra exposto na obra mais famosa do alvarino, o Espelho de Reis. Para isso, farei inicialmente uma breve exposição da vida de Álvaro Pais, o conceito metafórico de espelho como alicerce estruturador da obra, sua noção de tirania e finalmente a forma com que desenvolve o tema das virtudes como escudo perfeito dos vícios do mau governo.
Álvaro Pais (ou Pelágio) nasceu em Salnés, na Galiza, diocese de Santiago de Compostela, entre os anos 1275 e 1280. Como tantos de sua época, sua formação intelectual foi a de um acadêmico: tendo como mestre Guido de Baisio, doutorou-se em Cânones na Universidade de Bolonha, onde lecionou posteriormente. Ingressou na Ordem dos Frades Menores através de Frei Gonçalo — ministro-geral da Ordem em 1304 — doando então todos os seus bens aos pobres (BARBOSA, 1992). Como franciscano pertenceu inicialmente à corrente dos espirituais — que defendiam uma interpretação bastante rigorista da ordem (FALBEL, 1995). Por fidelidade ao papa João XXII, afastou-se depois desta corrente. Apesar disso, continuou a demonstrar grande simpatia pela tese da pobreza.
Sua ação política foi sempre a de um papista. Na questão da luta entre João XXII e Pedro de Corbara, tomou o partido do primeiro. Após a coroação de Luís da Baviera em Roma e a eleição de Pedro de Corbara como papa (Nicolau V), Álvaro Pais — que residia no Convento de Araceli, em Roma — refugiou-se em Monte Compatri (próximo de Roma). Em 1328, com a entrada de Luís da Baviera em Roma, Pais teve que abandonar a cidade. Colocou-se, portanto, sempre do lado do papa na questão da disputa com o imperador.
Antes de 1330, Frei Álvaro exerceu o ofício de penitenciário do papa em Avignon, o que demonstra seu grau de intimidade com a corte. Provavelmente por esse motivo, João XXII dispensou Álvaro Pais em 1332 do chamado “impedimento de ilegitimidade paterna”, o que possibilitou-lhe a obtenção das dignidades eclesiásticas. No mesmo ano Frei Álvaro foi sagrado bispo de Corona — cargo que nunca chegou a exercer. No dia 09 de junho de 1332, foi transferido para a diocese de Silves (atualmente Faro, ou Algarve). Lá Frei Álvaro teve graves discórdias com Afonso IV de Portugal, pois colocava-se contra a guerra movida pelo rei de Portugal contra Afonso XI de Castela e os impostos cobrados sobre os bens eclesiásticos para mantê-la. Chegou mesmo a sofrer ataques físicos quando celebrava uma missa. Fugiu para Sevilha e lá veio a falecer, em meados de dezembro de 1349.
Álvaro Pais escreveu três obras, consideradas seu tríptico principal:
1) De statu et planctu Ecclesiae (Sobre o Estado e Pranto da Igreja) — nos anos 1332-1335. No Livro I, defende a legitimidade do papa João XXII como chefe da Igreja e combate Pedro de Corbara e o imperador Luís da Baviera. No Livro II repreende os vícios da Igreja de seu tempo;
2) Speculum regum (Espelho dos Reis) — 1341-1344. É considerado uma espécie de resumo das teses políticas expostas no De statu et planctu Ecclesiae, além de instruir o rei sobre as virtudes que deve cultivar em grau elevado;
3) Collyrium fidei adversus haereses (Colírio da Fé contra as Heresias).
Além disso, manteve uma correspondência com Afonso IV de Portugal escrita nos anos 1336-1337, e, provavelmente, também escreveu as seguintes obras:
1) Comentário ao Evangelho de São Mateus,
2) Comentário aos Quatro Livros de Sentenças,
3) Sermão sobre a Visão Beatífica,
4) Pequeno tratado intitulado De potestate Ecclesiae (Sobre o Poder da Igreja) (COSTA, 1966; BARBOSA, 1992).
Para entender o Espelho de Reis analisarei brevemente o sentido medieval do conceito de espelho, tentarei responder a esta pergunta antes de passar à análise do conceito de tirania na obra Espelho dos Reis, fundamental na construção de sua imagem ideal de rei.
Espelho, do latim, speculu: reprodução fiel da imagem, representação, reflexo. Em seu sentido figurado, um modelo, exemplo a ser seguido, imitado. Deriva do verbo depoente latino speculor, cuja primeira acepção é observar. Essas palavras, por sua vez, derivam da raiz indo-européia scop. Por exemplo, o termo episcopos significa "aquele que olha sobre, vela" (SOUZA, 1999). Mas como os pensadores da Idade Média entendiam esta alegoria? A tradição veterotestamentária traz a idéia do Espelho como um lugar que o homem, ou melhor, os reis, podem vislumbrar a ação de Deus. NoLivro da Sabedoria, obra que se insere na tradição literária parenética que este artigo trata, encontra-se uma passagem em que o autor se vale desta metáfora reino terrestre-reino celeste:
A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento (...) Ela é um aflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da gloria do Onipotente, pelo que nada de impuro nela se introduz. Pois ela é um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua bondade (Sb, 7, 24-26)
Assim, desde a tradição deuterocanônica, o Espelho é o lugar da contemplação, a porta por onde os soberanos podem receber a iluminação que reflete a luz divina da Sabedoria. Com ela, através doEspelho, os reis podem exercer sabiamente o ofício da Justiça à maneira de Salomão. O Espelho representa a Sabedoria e faz parte da simbologia do poder monárquico e da educação do príncipe.
Por sua vez, na tradição filosófica ocidental, o Espelho também representa, desde Platão (c.429-347 a.C.) até Plotino (204/205 - 270 d. C.), a alma. Segundo este último, a imagem de uma pessoa está sujeita a receber a influência de seu modelo, como um Espelho (PLOTINO, Ennéades, Paris, IV, 3); a alma possui duas faces: um lado inferior, voltado para o corpo, e um lado superior, voltado para a inteligência (PLOTINO, Ennéades, III, 43; IV, 88). O cerne da filosofia de Plotino era a prática do retorno da alma através da contemplação interior. Neste sentido, o Espelho é uma metáfora do “olhar para dentro”, um reflexo, uma materialização da alma.
Este tema foi desenvolvido por Santo Atanásio (328-373, bispo de Alexandria) e São Gregório de Nissa (371-395, bispo de Nissa - Capadócia). São Gregório afirmava que “...como um espelho quando é bem feito, recebe em sua superfície polida os traços daquele que lhe é apresentado, assim também a alma, purificada de todas as manchas terrestres, recebe em sua pureza a imagem da beleza incorruptível.” (BERNARD, 1952: 75)
Platonista da escola de Orígenes, Gregório acreditava que para qualquer método ser eficaz deveria ser como um Espelho. Assim como uma virgem, espécie de corpo-espelho onde as pessoas poderiam ter um vislumbre da pureza, da imagem de Deus. Segundo ele, uma virgem era um Espelho da pureza da alma e uma imagem física do Jardim do Éden, também terra virgem (BROWN, 1990: 249). A imagem refletida é então uma participação, interação: quando a alma se torna um Espelho perfeito, participa da imagem (CHEVALIER, 1995: 393). Momento de integração cristã, o rei que contempla é contemplado pela imagem que vê. Pode então refletir sobre as marcas do pecado e expiá-los com a educação ética. Purificando a si, purifica também o reino que dirige, pois rei e reino são como um só. O rei é o elo de salvação dos súditos e elevação do reino terrestre à categoria de reino celeste.
Estas noções neoplatônicas estão fortemente presentes na mensagem de Álvaro Pais. A idéia de Espelho como um lugar de contemplação de virtudes é cara ao franciscanismo quatrocentista: data de 1318 a confecção da obra Espelho da Perfeição, obra de um franciscano desconhecido e influenciada pelos escritos de Frei Leão, companheiro íntimo de São Francisco de Assis (O Espelho da Perfeição, 1997: 847-986). Nela, espécie de “nova regra franciscana”, a idéia principal é a do Espelho como o lugar do reflexo da perfeição da vocação do estado de Frade Menor. Da pobreza perfeita, a perfeita maneira de obedecer, a perfeita obediência a um cadáver, a perfeita humildade partindo de si mesmo, a perfeição evangélica, a descrição do frade perfeito, a imagem do bom religioso, a obra é um manual das perfeitas virtudes cristãs. Um perfeito Espelho de contemplação e guia ético. A respeito da função do saber, este autor desconhecido afirma que o “dom da ciência” deverá ser um guia para o modo de agir. Através de seus atos, o cristão que possui a educação científica deve ser um “...modelo de piedade, simplicidade, paciência e humildade. Cultivará a virtude tanto em si mesmo como nos outros; exercitar-se-á praticando-a continuamente e estimulará os outros, mais com exemplos do que com palavras, a praticá-la.” (O Espelho da Perfeição, cap. 80: p. 933)
Não é este o paradigma pelagiano para educar seu rei cristão? Também para Álvaro Pais, ver-se no Espelho é um ato de contemplação da alma, do eu interior. Álvaro Pais reporta o sentido do Espelho ao universo semântico que dá origem à palavra speculum (Espelho): spectare (olhar, contemplar, observar), specto (olhar, estar voltado para), specula (lugar de observação, lugar elevado), specularia (vidro),speculatione (especulação). Assim, liga-se à tradição filosófica medieval que interpretou a especulação (speculatione) como “modo de refletir”, isto é, refletir contemplativamente, fielmente, como umEspelho.
Speculum, speculeris, Espelho, contemplação. O Espelho alvarino é instrumento contemplativo. Exalta a figura do sábio e oferece ao governante o que de melhor existe no mundo terreno: a possibilidade de contemplação. O rei alvarino deveria ser um Espelho de virtudes cristãs. Somente através deste exercício de consciência o monarca poderia conduzir seus súditos à salvação, ao reino celeste — finalidade última de sua função régia. Para isso, os súditos deveriam contemplar aquele modelo real perfeito de virtudes. A partir de seu corpo, o rei propagava a boa nova: de sua corte irradiaria-se a salvação para todo o restante do corpo social. Portanto, objetivo pedagógico é o rei, a alma régia, a perfeita monarquia. A educação parenética é um ato de unção régia, colírio que limpa e purifica a alma do rei e do reino. Feitas estas considerações preliminares, passemos à análise de suas idéias sobre a tirania no Espelho dos Reis.
*
Neste livrinho por dedicatória te envio o colírio com que possas ungir teus reais olhos interiores (...) e o espelho em que assìduamente te contemples, confessando que a ti, meu Senhor natural e afectuosìssimo dilecto, nada de mais precioso e mais durável posso oferecer. (Espelho dos reis, vol. I: 05)
Com esta dedicatória a Afonso XI de Castela (1312-1350) Álvaro Pais inicia o Espelho dos Reis. A obra foi escrita para comemorar a vitória cristã na batalha do Salado. A vitória do rei de Castela no Salado foi a confirmação da superioridade cristã contra os “filhos espúrios de Maomé, pseudo-profeta, mago e condutor de camelos” (Espelho dos reis, vol. I: 07). Para comprovar a força das armas cristãs vencedoras, o autor criou uma simbolização cristã das armas do cavaleiro:
A simbologia de Álvaro Pais das armas do cavaleiro
Arma | Simbologia pelagiana |
Escudo | O triângulo da fé em Cristo |
Elmo | A esperança |
Espada | O amor de Cristo |
A vitória confirma a eficácia da fé em Cristo. O rei que vence é não só o rei-guerreiro, mas também o rei re-ungido pela virtude. Mas qual a importância daquilo que Álvaro Pais chama de unção interior (e que nós chamaremos de educação cristã virtuosa). No século XII, João de Salisbury já tinha ressaltado a importância da educação dos príncipes na boa condução do reino por ele governado. A respeito do rei de Roma, Conrado III João afirmava: quia rex illiteratus esta quasi asinus coronatus (porque o rei inculto é como um asno coroado) (CURTIUS, 1996: 235). O ideal do imperator literatus que se desenvolveu no Ocidente desde o período de Augusto metamorfoseou-se na forma do soberano erudito (el sabio, le sage, der Weise). Consideramos o Espelho de Príncipes um prolongamento desta extensão, um registro escrito em forma de tratado ético-político sistematizado.
A tradição ibérica em relação ao tema da tirania remonta, pelo menos, ao código de leis intitulado Las Siete Partidas, de Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Castela e Leão (Las Siete Partidas, 1974). A obra assinala dois tipos de tirania: 1) O tirano que usurpa o trono por traição e 2) O tirano que utiliza seu poder indevidamente (SORIA, 1988: 184).
Outro documento ibérico onde se encontra o conceito de tirano é a obra intitulada Castigos e documentos del rey don Sancho (SORIA, Ibid.). Nela a distinção entre o rei e o tirano é que o verdadeiro rei ama o bem comum; o tirano coloca seu próprio bem acima de qualquer outro. O bem do reino só interessa ao tirano na medida que convém ao seu próprio interesse.
No Espelho dos Reis, Álvaro Pais segue pari passu o desenvolvimento do tema por Santo Tomás na obra De Regimine principum. Seria mesmo um tomismo político com ligeiros acréscimos. É interessante notar que esta adesão não é explícita: nas dezenas de passagens das auctoritas que respaldam o texto pelagiano, não há nenhuma referência à obra de Santo Tomás, muito menos ao autor.
Para Álvaro Pais, todo poder emana de Deus. Como Santo Tomás, o autor afirma que o homem é um animal social e comunicativo. No entanto, o poder procedeu da corrupta intenção (corrupta intentione): no princípio do mundo, as pessoas que assumiram o domínio (dominium) assim o conseguiram através da soberba e da tirania. A ambição de dominar é odiosa a Deus; no entanto Ele permitiu o domínio para refrear o governo dos senhores ambiciosos e a malícia dos homens desordenados, para a concórdia dos bons e a punição dos maus (Espelho dos reis, vol. I: 51). Assim, não há poder que não venha de Deus: ou mandado, ou consentido.
Convém que alguns governem outros para:
1) Dirigirem os ignorantes
2) Coibirem e punirem os pecadores
3) Defenderem os inocentes
4) Cuidarem do bem comum
5) Conservarem a sociedade.
Alguns governantes conseguiram o governo por reto caminho; outros por perverso caminho:
A forma de obtenção do governo segundo Álvaro Pais
Por reto caminho | Por perverso caminho |
Por comum consenso da multidão | Usurpação por paixão de dominar |
Por especial mandado de Deus | Usurpação pela força |
Por instituição daqueles que fazem às vezes de Deus | Usurpação por dolo ou suborno |
É de fundamental importância compreender estes pontos para a análise do posterior desenvolvimento pelagiano do conceito de tirano e suas conseqüências. A causa da tirania é o excesso de poder concedido ao rei. A perfeita precaução contra a tirania é incutir a perfeita virtude naquele a quem tamanho poder é concedido, espaço aberto para a educação parenética.
Quanto ao juízo, os príncipes tiranos devem ser julgados somente pelo papa, “vigário superior de Deus na Igreja”. Mas porque alguns reis são tiranos se todo poder vem de Deus? Para o autor, nem o mal se faz sem a Sua permissão: como no tomismo, tolerar o tirano é um exemplo de provação. A dialética rei-bom, rei-mau é assim desenvolvida:
A dualidade rei/tirano segundo Álvaro Pais
Rei bom | Rei mau (tirano) |
Deus ordena | Deus ordena |
Deus ordena de boa vontade | Deus ordena irado |
O rei-bom é uma dádiva de Deus | O rei-mau é o castigo pelos crimes do povo |
O reino é reto ou perverso quanto ao modo de aquisição e uso do poder. Também como Santo Tomás, em Álvaro Pais o governo injusto acontece quando o rei governa para seu bem privado. O tirano possui asseclas (leõezinhos, leunculos suos) que “...chupam o sangue dos pobres e o vomitam no seio de seus senhores” (Espelho dos reis, vol. I: 157-159).
Mas qual a definição de tirano dada por Álvaro Pais? O tirano é:
1) Dono da força
2) O que oprime
3) O que não rege pela justiça
4) Aquele que não possui justamente o poder, mas o usurpa
5) Aquele que quer ser temido e busca os interesses pessoais
6) Aquele que domina com a paixão da ambição
7) Aquele que rouba os bens dos súditos.
O rei representa a unidade e sua conservação, isto é, a paz. Aquele que pode realizar mais plenamente a unidade é o uno em si. Portanto, deve-se trabalhar para que o rei não se transforme em tirano. Como? Temperando seu poder.
Ora, este é o desenvolvimento ipse litteris de Santo Tomás em sua obra De Regimine principum. Como o Aquinense, Frei Álvaro também defende a graça de suportar o tirano, com os mesmos exemplos históricos de Tarqüínio Soberbo e Domiciano. Procurando forças humanas para recorrer do tirano, Frei Álvaro acrescenta uma importante instância temporal: a Igreja. Somente após recorrer a ela o homem deve pedir a Deus que “...humilhe o coração do tirano” (Espelho dos reis, vol. I: 177).
Em outra obra, Álvaro Pais retorna à definição de tirano, em relação direta com Deus. Tirano, aquele que é:
1) Fugitivo da face do Senhor
2) Não governou segundo a vontade do Senhor
3) Edificou uma torre que o Senhor também detestou
4) Transgrediu a lei da natureza
5) Fez aos outros opressões e mortes
6) Um apóstata daquilo que devia fazer a seus irmãos (Estado e Pranto da Igreja, vol. I, § 36: 407-409).
Por isso, os homens fogem e se escondem do tirano como das feras cruéis (Espelho dos reis, vol. I: 169). Mas o povo merece o tirano, pois peca: deve então abster-se de culpa, “...para se libertar da praga dos tiranos” (BARBOSA, 1992: 30).
Assim, a imagem do rei é edificada e reforçada conceitualmente a partir da oposição filosófica ao tirano. Trata-se de uma apologia do sistema monárquico através da execração de sua degeneração: como o rei é o representante mais perfeito dos anseios do povo, o tirano é sua corrupção mais lamentável. Mas, para Álvaro Pais, isto só possui real valor se o governante tiver em conta a suprema finalidade de sua missão: a espiritualização da monarquia, a elevação do reino e dos súditos ao reino celeste. Isto só será possível se o rei for virtuoso e ético, se consagrar seu reinado à comunidade que representa. Para isso, deve ter em mente o perigo da tirania, refutá-la através de suas ações cristãs.
As virtudes cristãs
As virtudes cristãs devem servir politicamente como um anteparo ao exercício do governante. Além de utilizar a clássica divisão das quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), Álvaro Pais oferece um quadro muito mais detalhado para suprir o governante das qualidades necessárias ao seu ofício, com subdivisões, gêneros e graus para as virtudes. Uma classificação rica e cheia de nuanças. Percebendo a distinção do cargo de rei e sua importância para o “ajuste do corpo social”, o autor inclui uma série de qualidades potenciais para a perfeita consecução do cargo. A autênticapolitia christiana se baseia nas virtudes teologais e na caridade. Deveria ser uma sociedade político-religiosa, seu príncipe católico e, portanto, seu povo também (CARVALHO, 1994: 261).
As virtudes são cardeais porque provocam estabilidade em quem delas se vale, mantendo o espírito na unidade do próximo (a Justiça), na verdade (a Prudência), na firme necessidade e na igualdade (aTemperança) e numa certa firmeza (a Fortaleza). Numa espécie de simbolismo maravilhoso, o autor compara estes pontos cardeais com quatro pedras preciosas que formam a coroa de Cristo e combatem os defeitos originais:
As oposições perfeitas entre vícios e virtudes segundo Álvaro Pais
Os vícios | As virtudes |
Ignorância | Prudência |
Fraqueza | Fortaleza |
Concupiscência | Temperança |
Malícia | Justiça |
Para montar este sistema de oposições entre virtudes e vícios, Álvaro Pais diz ter se baseado em Beda, o Venerável (672-735, padre de Wearmouth e Jarrow), sem, no entanto, citar a obra (Espelho dos reis, vol. I: 433). De qualquer modo, o simbolismo das quatro virtudes prossegue: o número das quatro virtudes se encontra na Sagrada Escritura: os quatro rios do Paraíso (“Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços. O primeiro chamava-se Fison [...] O segundo rio chama-se Geon [...] O terceiro rio se chama Tigre [...] o quarto rio é o Eufrates...”, Gn, 2, 10).
No entanto, não encontrei a passagem bíblica que Frei Álvaro Pais cita (“Quatro rios regam o Paraíso, porque, sendo o coração banhado por estas quatro virtudes, é temperado de toda a paixão dos desejos carnais”, Espelho dos reis, vol. I: 435).
O rei deve adotar estas virtudes para conduzir seus súditos ao reino perfeito, tão perfeito quanto o Paraíso do Gênese. Estas virtudes são como os rios paradisíacos: suas águas conduzem à Jerusalém terrestre.
As quatro virtudes cardeais são como as quatro cores que decoram as cortinas do tabernáculo: jacinto, escarlate, púrpura e linho, e as quatro espécies de que se confeccionava o ungüento que servia para ungir o tabernáculo e seus vasos.
A Justiça
A primeira delas, a mais notável de todas, a Justiça. Os reis medievais, desde Carlos Magno (742-814), eram representados iconograficamente com o cetro da justiça em uma das mãos (ROUCHE, 1991: 412) — especialmente os reis da França, que, desde Carlos o Calvo (840-877, n. 823), Filho de Luís, o Piedoso, portanto, neto de Carlos Magno, atribuíam grande importância à “mão de justiça” (bastão curto com uma mão de marfim na extremidade).
A justiça era considerada a principal função real medieval. Alicerçada no sagrado, ela se fazia presente especialmente nesta ideologia monárquica cristã medieval. Para Álvaro Pais, ela mantém o espírito na utilidade do próximo (Espelho dos reis, vol. I: 431). A justiça é a virtude que dá a cada um o que é seu; ao superior, ao igual, e ao inferior (Espelho dos reis, vol. I: 323):
As virtudes reais segundo Álvaro Pais (1)
A Justiça
Se divide em 02 partes
I.1. A Severidade
I.2. Liberalidade
As definições são as seguintes: a Justiça dá a cada um o que é seu; A Severidade é uma virtude que coíbe a injúria com o devido suplício; a Liberalidade distribui os benefícios e que chamamos beneficência. Mas Álvaro Pais ainda oferece outra divisão para a virtude da Justiça, em espécies:
As virtudes reais segundo Álvaro Pais (2)
A Justiça (dividida em espécies)
I.1.Concórdia / Discórdia
I.2. Inocência
I.3. Amizade
I.4. Piedade
I.5. Religião
I.6. Afeto
I.7. Humildade
O rei deve ter em conta todas estas virtudes associadas à justiça para que suas decisões sejam acertadas e seu governo justo. Destacamos o terceiro grau da inocência, a correção dos que erram. É papel do príncipe guiar os súditos à bem-aventurança, como vimos. Trazer seu povo de volta ao caminho certo é uma das obrigações do verdadeiro rei-inocente. Álvaro Pais prossegue em suas categorizações. A seguir, a Prudência.
A Prudência
As virtudes reais segundo Álvaro Pais (3)
A Prudência (a ciência das coisas boas e más)
Divide-se em 03 partes:
I.1. Memória (repete aquilo que já foi)
I.2. Inteligência (o espírito analisa aquilo que é)
I.3. Previdência (vê aquilo que há de ser)
Álvaro Pais serve-se de Vegécio (A Arte Militar), Valério (Feitos e palavras memoráveis) e Túlio. Ninguém deve saber mais e melhor do que o príncipe. O príncipe é um instrumento cultural: todos os súditos devem se aproveitar de sua cultura (Espelho dos reis, vol. I: 341). Para possuir essa prudência, o príncipe deve ser um estudioso; os reis antigos e seus filósofos já o haviam comprovado: “...nenhuma idade é serôdia para aprender” (Espelho dos reis, vol. I: 345).
O governante virtuoso deveria possuir também as três partes da prudência: a memória, para sempre se lembrar das coisas e meditasse sobre sua condição; a inteligência, para perceber os perigos dos aduladores e se defender contra a vaidade, saber que seu cargo e os poderes inerentes a ele possuía a brevidade do tempo; e ter previdência, para que seu regime fosse ordenado e soubesse da morte futura (Espelho dos reis, vol. I: 347-355), chegando a comentar a divisão da prudência feita por Macróbio.
A Temperança
A Temperança: nada desejar que possa causar arrependimento, não ultrapassar a lei da moderação, domar o desejo sob o jugo da paixão. Divide-se, segundo o alvarino, em três partes: continência, clemência e modéstia.
As virtudes reais segundo Álvaro Pais (4)
A Temperança
Divide-se em três partes
1) Continência
2) Clemência
3) Modéstia
A Continência se divide em 4 modos de coibição: 1) Da gula 2) Da luxúria 3) Da cobiça e/ou avareza e 4) Da ambição e soberba.
A Clemência se pratica de 4 modos: 1) Sofrendo com afeto os males alheios 2) Perdoando os que obram liberalmente 3) Dando aos ingratos e 4) Condescendendo com os seus.
A Modéstia é a virtude da medida exata, e se pratica com a humildade.
Para dar o exemplo perfeito da continência, Álvaro Pais cita o rei Sancho, “verdadeiro devoto de Deus, que fez expulsar, no meu tempo, mais de 5.000 prostitutas que seguiam a sua comitiva, e mandou cortar as mamilas às que voltassem, o que se fez a muitas.” (Espelho dos reis, vol. I, p. 369).
A Clemência é a moderação do ânimo no poder de exercer a vingança, ou brandura do superior para com o inferior, ou ainda, a inclinação do ânimo para a bondade na aplicação do castigo (Espelho dos reis, vol. I, p. 381), Pais afirma incisivamente que a clemência é mais completa e mais nobre que o perdão, pois este é a remissão da pena devida.
Da Modéstia, Pais coloca que se trata de saber colocar em seu lugar quanto se faz ou se diz, e deriva da palavra modo (medida), na qual não há de mais nem de menos, conforme afirma Agostinho (Da vida feliz, IV, 32). Trata-se de uma das virtudes mais perfeitas, pois está no meio exatamente como a própria virtude, que evita os extremos, e indica que “nada de mais” (Espelho dos reis, vol. I: 387), e uma das mais difíceis de se obter, pois a verdadeira discrição dificilmente se adquire. Mas ela pode ser obtida com a humildade, nada se fazendo segundo o próprio senso. Assim, quem tem virtude, tem modéstia (Espelho dos reis, vol. I: 393).
A Fortaleza
Por fim, a Fortaleza, o apetite das coisas grandes, o desprezo das coisas baixas e a realização dos trabalhos com espírito de humildade. Baseando-se em Túlio, Pais afirma que a Fortaleza é a consciente aceitação dos perigos, e divide esta virtude régia quatro partes:
As virtudes reais segundo Álvaro Pais (5)
A Fortaleza
1) Magnificência 2) Confiança 3) Paciência 4) Perseverança
O objetivo da Magnificência é a realização de projetos grandes com amplo e esplêndido propósito de espírito: ela deve ser uma virtude não só dos reis, mas de todos os homens; a confiança é a virtude pela qual o espírito põe em si mesmo firmeza e sólida esperança de êxito, e a paciência é o sofrimento voluntário e duradouro das coisas árduas e difíceis, movido por um propósito honroso e útil. Ela existe de quatro modos: na sustentação de impropérios, no sofrimento corporal, no perdão de ofensas dos que nos fazem mal e na moderação das disciplinas e correções (Espelho dos reis, vol. I: 401).
A Perseverança é a permanência estável e perpétua numa razão bem constituída, virtude muito praticada pelos antigos. A Perseverança torna o homem de tal modo firme que nem a adversidade o quebra, nem a prosperidade o envaidece, nem as ameaças o esmagam, nem as promessas o vergam (Espelho dos reis, vol. I: 417).
Para cada virtude, Álvaro Pais enumera dezenas de exemplos, a maioria retirado de textos da Antigüidade. Pais destaca que ordenar as virtudes é desordená-las e abusar delas, por isso a virtude é o caminho para a glória, ou a arte de bem viver. Pois o desejo dos justos é todo o bem, e o poder deve ser justo.
Ao dedicar o Espelho dos reis a Afonso XI, Álvaro Pais pensava estar cumprindo sua missão cristã: ordenar o governante no reto caminho, fazer com que se lembrasse de seus deveres e não se desviasse da boa intenção de sua atribuição por parte de maus conselheiros, ou mesmo das vaidades decorrentes do ofício monárquico. Em sinal de clemência os reis eram ungidos; portanto, eles deveriam ser clementes e não se comportar como tiranos. Essa linha de pensamento ordenava-se de acordo com o projeto papal de plenitudo potestatis: o papado seria a instância suprema de governo da sociedade cristã. O Espelho dos reis trata, portanto, de uma espiritualização do poder real, pois as realidades inferiores deveriam ser regidas pelas realidades superiores (BARBOSA, 1992: 51).
Ao ler o texto alvarino, neste início de século XXI, percebo a beleza dos conceitos virtuosos e ao mesmo tempo sua impossibilidade de concretização. Talvez — e infelizmente — Maquiavel esteja mais próximo das realidades mundanas que o projeto de uma christianitas do galego Álvaro Pais. De qualquer modo, visto em retrospecto, a ética política cristã alvarina permanece como um dos mais perfeitos e belos exemplos de conduta criados pelo ocidente medieval em seu entardecer, no século XIV.
*
Fontes
Bibliografia
BARBOSA, João Morais. Álvaro Pais. Lisboa: Editorial Verbo, 1992.
BERNARD, Régis. L’image de Dieu d’après saint Athanase. Paris: 1952.
BROWN, Peter. Corpo e Sociedade — o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
CARVALHO, Mário A. Santiago de. “Da abominação do monstro. Igreja e Poder em Álvaro Pais”. In: Separata da Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas — U.N.L., vol. 7, Lisboa, 1994.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos — mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1995.
COSTA, António Domingues de Sousa. Estudos sobre Álvaro Pais. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1966.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: Editora HUCITEC, 1996.
FALBEL, Nachman. Os espirituais franciscanos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.
ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média Ocidental”. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da Vida Privada 1. Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 398-529.
SORIA, José Manuel Nieto. Fundamentos ideológicos del poder real en Castilla. Madrid: Eudema, 1988.
SOUZA, José Antônio de C. R. de. Entrevista concedida no dia 02.07.1999 (via INTERNET).