José Enrique Ruiz-Domènec (1948-)

Artesão do verbo

Ricardo da COSTA

In: RICO CAMPS, Daniel; BLASCO VALLÉS, Almudena (orgs.).
José Enrique Ruiz-Domènec o la narración de la Historia.
Barcelona: Institut d'Estudis Medievals, 2021, p. 89-95.

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Foto: David Bustamante (El País, Opinión: Los intelectuales y España).

Meu encantamento nasceu com suas palavras. Aliás, todo encantamento principia com o verbo: Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος (João 1, 1). Pois José Enrique Ruiz-Domènec (1948-) é um artista: tem o dom da palavra. Palavra escrita, sobretudo. Assim por ele me encantei. Por seu verbo, sua fluência, seu ritmo, seu encadeamento encantatório.

Já não me recordo qual a primeira obra de sua lavra que li. Provavelmente El laberinto cortesano de la caballería, de 1981. Logo reconheci nele a influência de Georges Duby (1919-1996), logo, em meu íntimo, o renomeei Georges Duby espanhol. Não creio estar sendo injusto a Domènec, muito menos a Duby, pai de todos nós, historiadores amantes da bela escrita. Por isso estou aqui. Como leal súdito, para prestar minha vassalagem a essa nobre árvore genealógica acadêmica, franco-espanhola, medievalística, para recriar um sentido especular, espetacular, para renovar o meu sentido de pertencimento a uma tradição que remonta a Marc Bloch (1886-1944).

Nessa esteira, dois trabalhos de Ruiz-Domènec – Amor y Moral Matrimonial: el testimonio de Guilhem de Peitieu (1983) e Raoul de Cambrai. Reflexión sobre el desamor en la época feudal (1984) – aprofundam ainda mais o ambiente do surgimento do amor feudal medieval. Do amor cortês. São mais sintéticos, porém mais densos em algumas questões, especialmente o universo feminino.

Destaco o capítulo “Bondad maternal”, do segundo texto, de fina sensibilidade pois, além de abordar a história do gênero, temática quase inédita na época, o fez com poesia medieval, tipo de fonte primária que exige finíssima percepção – em “Amor y Moral Matrimonial..., Domènec analisa quase que estrofe por estrofe a poesia do conde, “...personagem crucial para o devir da história literária do ocidente europeu”.

Nesse início de década de 80, Domènec beirava os 35 anos. Jovem historiador, mas já com todas as qualidades que o tornariam notável: multidisciplinar, especialmente atento à Filosofia e à Literatura, aberto aos novos temas e abordagens e, sobretudo, atento à fina linguagem.

Com essa tríade fui “apresentado” a esse gentil-homem medievalista. Foi quando então me debrucei sobre España, una nueva historia (2009). E minha paixão historiográfica por ele tornou-se avassaladora. Que livro! Li-o quase de um só fôlego. Pude conhecer, em uma só narrativa, da presença romana à Reconquista, do Século de Ouro à Guerra Civil Espanhola, a riquíssima, densa e dramática história desse país, que não deixa ninguém que o conheça passar incólume.

Trata-se, de fato, de obra de um historiador maduro, com pleno domínio de seu métier, da melhor narrativa, cheia de interpretações seguras. Pode-se discordar aqui e ali – algo muito natural nas ciências ditas Humanas – mas deve-se reconhecer o soberbo ápice de um intelectual na plenitude de suas capacidades analíticas.

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. España, una nueva historia (2009).

Nesses vinte anos (1984-2004), Ruiz-Domènec aprofundou suas investigações acerca da Idade Média e ampliou seu leque histórico de observação. Uma obra como España, una nueva historia não nasce por acaso. É fruto de laboriosas e constantes investigações, de cruzamento de áreas – em seu caso, sobretudo Filosofia e Literatura – de reflexões típicas de um historiador já na casa dos sessenta anos, tempo de considerações, de meditações, de avaliações de quem já olha para a popa da embarcação da existência (ou, em suas palavras, “el tiempo es uma cura de humildad”).

Mas antes de considerar o alcance de seu binóculo, devo recordar uma belíssima obra ainda sobre a Idade Média: Entre Historias de la Edad Media. Veintiún ensayos (edición de Almudena Blasco, de 2011). Dos Pireneus à Coroa de Aragão, da guerra às viagens militares, da cavalaria “último idílio”) aos dramas familiares. Do Tirant ao Quixote. Das mulheres – sempre elas em suas preocupações históricas! Trata-se de um livro que sempre releio. Sempre retorno. Para pescar temas, ideias, perspectivas metodológicas. Sim, em suas deslindações, Ruiz-Domènec é mestre em propor novos horizontes (nesse sentido, é puro Duby).

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. Entre Historias de la Edad Media. Veintiún ensayos (edición de Almudena Blasco, de 2011).

Para a minha surpresa – não deveria, por já ter sopesado sua agudez perceptiva – o âmbito de suas divagações históricas foi ampliado com Personajes intempestivos de la Historia (2011). Nesse fértil ano de início da segunda década do séx. XXI, vislumbrei seu horizonte: de Ricard Guillem a Mozart, meu amado Mozart.

Ainda com a Idade Média como pilastra formadora do Ocidente europeu, Ruiz-Domènec avançou: após considerar a tríade Trabalho-Guerra-Amor (Ricard Guillem, El Cid e Guilherme IX) e o binômio Filosofia-Poesia, nosso historiador avançou modernidade adentro.

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. Personajes intempestivos de la Historia (2011).

O primeiro passo ainda foi no universo testosterônico da Guerra – Gonzalo Fernández de Córdoba (1453-1515) – mas logo alcançou a Estética: Leonardo da Vinci, Cervantes e Rembrandt. Para finalizar com Mozart e o feitiço da Música. Pois quem alcança a sonoridade das formas chega ao fim do medo da ideologia: o descompromisso da beleza. Foi quando entendi que o historiador havia chegado ao cume de sua literatura histórica – sim, pois não considero mais possível uma ciência histórica, ainda que me mantenha no âmbito do rigor das fontes como base para as narrativas.

Nesse momento de minha própria peregrinação pelo tempo, dei-me conta que havia me tornado seu vassalo. Utilizei-o declaradamente em um trabalho – Os novos desafios do Fim da História (2014)1 – quando analisei a crise das Ciências Humanas com o declínio da consciência histórica na pós-modernidade e a influência do relativismo neste processo. Para isso, ofereci, nos mesmos moldes que ele, uma narrativa imagética com quadros (Turner, Corot, Goya, Friedrich Caspar David e Salomão Delane) e propus o resgate da bela escrita, da verdade e da erudição como fundamentos da investigação humanística. Como ele fora puro Duby, passei a ser puro Domènec.

Estupefato com Escuchar el passado. Ocho siglos de música europea (2012), decidi sintetizar minha veia domequiana em um trabalho: “Música, uma das chaves para a compreensão do Tempo”.2 Dei um passo e apresentei sua metodologia para o estudo do Passado: a valorização da Música – tradicionalmente, uma das sete artes liberais – nos estudos históricos como elemento chave para a compreensão da história das culturas no tempo. Para isso, tomei como base quatro obras suas: España, una nueva historiaPersonajes intempestivos de la HistoriaEuropa. Las claves de su historia e Escuchar el passado...

Apresentei três personagens que simbolizam a necessidade imperativa dos estudos sobre a Música para se encontrar a chave do passado: o papa Gregório Magno (540-604) – com a criação do universo sonoro europeu com seu canto gregoriano – meu amado Mozart (1756-1791) e seu sentido racional da civilização do Ancien Régime – e Joaquín Rodrigo (1901-1999) e sua incurável nostalgia do espanhol no Concerto de Aranjuez (1939). Em suma, abracei a visão total de Ruiz-Domènec, pois ela se imbricava na minha própria vida (antes de medievalista, fui músico, e por vinte anos!).

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. Escuchar el passado. Ocho siglos de música europea (2012).

Daquelas quatro obras supracitadas, ainda devoro Europa. Las claves de su história (de 2012), pois me detive (e ainda me detenho) em sua parte a respeito da Idade Média. Mal consigo sair dela, tamanho encanto que sinto pelos capítulos “Con los ojos desnudos”, “Un lugar creíble” e, especialmente, “Horizontes abiertos” – ainda que não seja tão simpático assim ao seu olhar aquiescente do Islã (embora tenha metade de minhas raízes familiares no Líbano).

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. Europa. Las claves de su história (de 2012).

No entanto, pensando melhor, também me vali de outra obra sua para formalizar meu casamento com seu pensamento: El reto del historiador (2006). Especialmente nos temas do historiador como um artesão e da dignidade da retórica para combater a escola do ressentimento que não cessa de renascer das cinzas, por sua comodidade de pensar a História em termos simplistas – no momento, com o sempre marxismo acrescido do feminismo.

De fato, como afirma, o ser humano anseia pela amplidão do mundo, por não reduzi-lo aos estreitíssimos limites de sua casa, de sua aldeia, de sua cidade, de sua região. De seu país.

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RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique.  El reto del historiador (2006).

Com Bloch, Duby e Domènec, aprendi a considerar a História como casa do ser humano em toda a sua amplitude, em todos os seus paradoxos e dilemas, em toda a sua diversidade. Especialmente contigo, historiador granadino, aprendi a vislumbrar o tempo dos homens em todas as suas possibilidades, no sentido de, ainda que limitadas pelas exigências das provas documentais, considerá-las na completude de suas lacunas, na multiplicidade de seus questionamentos, na musicalidade de seus silêncios.

Trouxe amorosamente Ruiz-Domènec para a América Latina para, muito mais do que repensar minhas sólidas raízes ibéricas, reconsiderar a História como o drama do teatro da vida. Muito obrigado, José Enrique! Agora, falta-me apenas conhecer sua terra natal, Granada, caminhar prazerosamente pelo Pátio de los leones na Alhambra, mas sem deixar de refincar minhas raízes na Santa Iglesia Catedral Metropolitana de la Encarnación de Granada e agradecer por pertencer à mais rica tradição intelectual, histórica, filosófica, musical e literária que é a do Ocidente medieval, tempo que você musicou.

 

Notas

  • 1. COSTA, Ricardo da. “Os novos desafios do Fim da História”. InRevista Farol n. 13 (2015), p. 157-166.
  • 2. Recentemente publicado em COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 43-61.), p. 157-166.

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Palavras-chave: História, Ruiz-Domènec.