A Taula de Sant Miquel (séc.XIII)
Do Mestre de Soriguerola (Baixa Cerdanha-Catalunha)
Ricardo da COSTA
Carolina BIANCHI
In: CAVALCANTI, Carlos M. H. (dir.). História, imagem e narrativas.
Rio de Janeiro: Revista Eletrônica, n. 2, ano 1, abril/2006, p. 1-28
(ISSN 1808-9895).
Imagens 1 e 2
Representação da Santa Ceia (uma das 13 cenas da Taula de Sant Miquel – 93 x 234,5 cm, aquisição da Col·lecció Plandiura, 1932, MNAC/MAC 3901). Repare que são onze apóstolos, não doze – o apóstolo ausente deve ser Judas: um traidor não pode se sentar na mesa celestial. Nesse rico banquete, festim místico anunciado por Isaías (25, 6) e descrito por Lucas (22, 30) e Mateus (5, 3-6), Cristo, ao centro, de manto vermelho, capa azul e com a mão direita solenemente erguida, se distingue dos outros por sua auréola com as três pontas da cruz, símbolo sagrado de seu martírio. Ao seu lado direito, Pedro esconde um peixe com suas mãos. Repare que todos estão unidos pelos pés, delicadamente suspensos no ar. Ademais, a intensa gesticulação das mãos dos apóstolos sugere uma rica variedade de diálogos: nas imagens da Idade Média, o ato de falar era expresso com as mãos e os braços. E aqui, quanto mais fecundo é o diálogo, mais intenso é o brilho das imensas estrelas douradas ao fundo, que representam a luz transbordante da ceia. A mesa, assim, parece estar suspensa na eternidade, inscrita nos céus, como um signo zodiacal a marcar e iluminar a noite dos crentes.
I. A arte imersa no espaço: a montanha e a planície
Os homens se maravilham com as altitudes das montanhas, as ondas imensas do mar,
a vasta extensão dos rios, o circuito do oceano e a revolução dos astros,
mas não atentam em si mesmos.
Confissões, Santo Agostinho.
Antes de se debruçar sobre o retábulo, criação do desconhecido artista de Soriguerola, é preciso ampliar o foco, tomando a própria obra como ponto de partida, e visualizar a criação da natureza, livro escrito pelo dedo de Deus (GREGORY, 2002: 263). Esse espaço físico, essa beleza ideal na qual o homem do passado estava imerso, era o meio que rodeava aquelas sociedades. Assim, a natureza servia como uma espécie de moldura perfeita da pequena igreja que acolhia o retábulo que analisaremos e, portanto, era a moldura sagrada natural da Taula de Sant Miquel.
Dessa forma, tendo essa perspectiva ampliada pela noção de arte integrada na moldura do ambiente, encontraremos a montanha e a planície envolvendo a obra e a igreja. Montanha e planície, ou, como disse Fernand Braudel, a contradição de tempo histórico que ambas estabeleceram para as culturas de então (BRAUDEL, 1995: 63). A montanha, lugar e refúgio das credulidades, espaço das comunidades dispersas; a planície, lugar por excelência do senhor, das relações feudais, das grandes propriedades dominiais (BRAUDEL, op. cit.: 90).
No caso em questão – a Taula de Sant Miquel – sua inserção no mundo montanhês dos Pireneus também se explica alegoricamente: para os religiosos, o espaço elevado era considerado um lugar de autopurificação. Região fronteiriça, “coroada de nuvens, entre os universos físico e espiritual”, sua escalada era uma parábola da transcendência da alma sobre o corpo: no topo da colina, a inocência perdida poderia ser restaurada (SCHAMA, 1996: 418-420). E era nesse espaço místico que se encontrava a obra do artista de Soriguerola.
Imagem 3
A impressionante e serena beleza dos Pireneus.
E como (ainda) é esse espaço que circunda a arte do frontal? Um tapete verde se esparrama no primeiro plano; seus vales são majestaticamente serenos. Ao fundo, suas montanhas, imponentes e soberbas, criam um maravilhoso contraste na paisagem. O escritor catalão Josep Pla (1897-1981) disse certa vez que esse ambiente lhe causava as sensações de amplidão, de elevação, de luz e liberdade. E como se chama esse espaço? Pireneus de Girona, região ao norte da Catalunha, palco na Idade Média de grandes movimentos humanos, de trocas, de afirmações e, principalmente, de criações artísticas. Ao andar pelos Pireneus, Louis-François Ramond de Carbonnières (1755-1827) sentiu uma “imensa convulsão primordial”, e teve a sensação de “viajar da vida para a morte” (SCHAMA, 1996, op. cit.: 486-487), sentimento muito similar ao dos medievais. De qualquer modo, guerra, religião e arte moldaram essa que foi chamada em sua origem de a Marca Hispânica, espaço que mais tarde deu origem à Catalunha.
Ali, em meio à silenciosa imensidão da natureza, em sua extremidade noroeste, já próxima à fronteira com Andorra, há uma região outrora conhecida como Baixa Cerdanha (em oposição à Cerdanha Alta, na parte francesa, do outro lado dos Pireneus). Atualmente se chama Fontanals de Cerdanya, município de Girona.
Imagem 4
Localização geográfica da Baixa Cerdanha na Catalunha.
No coração dessa região, há uma pequena e singela igreja paroquial, convertida mais tarde em capela. Chama-se Soriguerola. Localizada em uma planície no cruzamento dos rios Alp e Segre (Pla de Soriguerola), a capela foi construída para oferecer ao crente cristão o espaço dos Pireneus de Girona para a contemplação e meditação.
O topônimo Soriguera tem sua origem na palavra latina soricaria, literalmente “toca de ratos”. A terminação “ola” seria um diminutivo (algo como “esconderijo de ratos”), o que nos dá uma idéia da solidão e isolamento que a comunidade deveria viver na Idade Média.
Sua igreja é românica, datada do século XI. Simples e humilde, possui uma só nave, com abside semicircular, arcos e laterais de estilo lombardo. A igreja “surge” na história pela primeira vez no testamento de Wilfredo II (988-1035), nono conde de Cerdanha nomeado pelos reis francos. E foi nesse pequeno espaço dedicado a Deus e envolto pela atmosfera natural do vale que, na segunda metade do século XIII, o mestre de Soriguerola esculpiu na madeira o frontal do altar, denominado pelos especialistas de Taula de Sant Miquel. Mas antes de passarmos à obra em si, faz-se necessária uma brevíssima contextualização histórica da região.
Imagem 5
Capela de Soriguerola.
II. A arte imersa no tempo: o condado de Cerdanha
Imagem 6
A Marca da Espanha - séc. IX (originalmente publicada em Jean FAVIER. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 234). O condado de Cerdanha localizava-se ao norte da sé de Urgel.
As lutas intestinas que aconteciam na Espanha muçulmana facilitaram as coisas para as tropas francas da Septimânia: em 785 elas ocuparam Urgel, Gerona e Vich. Quatro anos depois os cristãos de Cerdanha e de Urgel abriram as portas de suas cidades para os francos. No entanto, entre vitórias e reveses, a guerra duraria até 812, quando uma paz foi assinada e constituiu-se a Marca da Espanha, com seu novo epicentro político no condado de Barcelona. Esse território dos godos, a Gothalania, viria mais tarde a ser a Catalunha (FAVIER, 2004: 235).
A região foi então governada por condes de Urgel e de Cerdanha, até que, em 870 e 878, os reis francos Carlos, o Calvo (823-877) e Luís, o Gago (846-879), respectivamente, concederam esses condados e os de Barcelona e Girona a Guifredo (Guifre ou Wilfredo), o Peludo (†897). Seus súditos o consideravam “príncipe nobilíssimo e patrício bem-amado de seus súditos” (VALLS I TABERNER, 2002: 86). Guifredo foi o último conde de Barcelona designado pela monarquia franca.
Imagem 7
As Espanhas cristãs do ano mil. In: MENJOT, Denis. Les Espagnes médiévales - 409-1474. Paris: Hachette, 1996, p. 62. Da esquerda para a direita, Castela, Navarra e os fracionados condados catalães – Ribagorza, Pallars, Urgel, Cerdanha, Bergueda (B.), Ausone, Barcelona, Girona, Besalú, Vallespir, Conflent, Rossillon, Castell-Rossillon (C. R.), San Pere de Rodes (S.P.) e Ampúries (A.). Quanto aos símbolos, † = principais mosteiros (e os quadrados com um círculo interno marcam a capital do condado).
A partir de então – e com o fracionamento do império carolíngio e o surgimento da feudalidade na Europa – a região esteve sob o comando de condes, homens muito violentos, mas profundamente religiosos. Em busca de prestígio, esses guerreiros alternaram-se no poder, entre anexações e separações territoriais decorrentes de casamentos, guerras privadas e abandono do mundo em busca da contemplação monástica. E assim a futura Catalunha foi forjada: de um lado, um forte sentimento de propriedade, de lutar pelo que é seu; de outro, uma notável religiosidade, espírito que impulsionou o surgimento de um grande número de mosteiros e de catedrais (de 800 a 1300 foram fundadas mais de 300 abadias, metade antes do ano mil [ZIMMERMANN, s/d: 115]).
Nessa Catalunha que se encontrava nos limites do Islã, o conhecimento do quadrivium estava muito mais desenvolvido que em qualquer outro lugar. Um dos homens mais sábios de seu tempo, Gerberto de Aurillac, futuro papa Silvestre II (999-1003) para lá havia se dirigido a fim de estudar e aprofundar seus conhecimentos (DUBY, 1986: 51-53). Pois era lá que se encontrava Ripoll, o mosteiro de Santa Maria de Ripoll, com sua imensa biblioteca, considerada a maior de sua época. Seu scriptorium irradiou um importante renascimento cultural para toda a Europa, e muitos estudantes e religiosos, ávidos em busca de conhecimento, dirigiam-se para aquelas terras distantes, nos confins do mundo cristão.
Esse afã religioso que se mesclava com o desejo de conhecimento remontava ao próprio conde Guifredo, o Peludo. Esse importante personagem fundou o mosteiro de Sant Joan de les Abadesses (875), além de mandar reconstruir o de Ripoll (879), destruído pelos muçulmanos. Assim, essa estreita relação guerra-religião esteve sempre presente no coração da Catalunha. E mais: há inúmeros casos de condes da região que abandonaram o poder para ingressar em um mosteiro. O primeiro deles foi Oliva Cabreta que, em um momento de expansão do condado, decidiu se retirar para o mosteiro de Monte Cassino (988); um de seus filhos, Oliva, fez-se monge em Ripoll (1002), e o conde Guifredo II (988-1035) também abdicou e se fez monge no claustro de Sant Martí de Canigó (nos Pireneus Orientais, França).
Envolvida nessa atmosfera de colonização monástica, entre o estudo e a religiosidade mescladas com o ferrenho combate ao islamismo e a luta dos nobres por seus interesses, estava a pequena igreja de Soriguerola, templo que abrigava o retábulo de seu mestre e que, por sua vez, estava abrigado pela paisagem-moldura mística dos Pireneus de Girona.
III. A arte em si: conceitos preliminares
A arte medieval é uma arte de interiorização, reflexão e meditação: os medievais deram a ela um caráter singular e espiritual que atribuía uma grande sensibilidade a seus espectadores. Elevar a alma e conduzi-la rumo à luz era sua função principal (DUBY, 1997: 60).
Contudo, melhor seria designar essas criações não como “arte”, mas “imagem”. Imagens. Pois a idéia de “arte” ou “obra de arte” não existia na Idade Média. Essas imagens inseriam-se na antropologia cristã como um todo, pois a Bíblia qualifica o homem como imagem (SCHMITT, 2002: 593): “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança (...) Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou...” (Gênesis 1, 26-27).
O termo “imagem” implica uma semelhança física, a relação com Deus que separou o homem dos animais e supôs uma similitude geral de natureza (inteligência, vontade, etc.). Dessa forma, a complexa noção de imago restaura todos os significados medievais e conserva juntos os três domínios da imagem medieval: 1) o das imagens materiais (imagine), 2) o do imaginário (imaginatio, feito de imagens mentais, oníricas e poéticas) e, por fim, 3) o da antropologia e da teologia cristãs (que permitiram à cultura medieval se constituir) (SCHMITT, 1997: 79-102).
A cultura medieval era, sobretudo, uma cultura de imagens com características muito originais; uma delas era a relação entre imagem e texto. A imagem não era autônoma em relação ao texto, ela aludia à letra. Porém, é preciso evitar classificá-la como uma simples ilustração de um texto, pois este exibe seus significados através das palavras, e a imagem ordena no espaço uma manifestação de um “pensamento figurativo” totalmente diferente (SCHMITT, 1997: 79). É interessante notar que nem todas as imagens representam ou significam algo. Algumas não representam nada: a ornamentação é muito freqüente e tem uma grande importância nas imagens medievais (SCHMITT, 2002: 598). As imagens estavam assim unidas aos seus usos. Cada uma se distinguia de acordo com os materiais, as dimensões e os valores. Elas também nunca eram neutras, pois manifestavam e criavam conceitos, hierarquias e um imaginário social.
Baschet propõe o uso da noção de imagem-objeto. Esse termo deve ser utilizado quando o objeto de estudo é, ao mesmo tempo, objeto e imagem. Por isso, ao falarmos de imagem na Idade Média, não tratamos apenas de uma representação, mas também de um objeto (BASCHET, 1996: 9). Baschet ainda destaca a importância de se estudar a imagem “saindo dos limites que a margeiam materialmente”, ou seja, investigar não só o que ela representa, mas para que ela servia.
A obra que analisaremos é a Taula de Sant Miquel, um retábulo procedente da Igreja de São Miguel de Soriguerola e datado do final do século XIII (LOPERA E ANDRADE, 1996: 21). Sua autoria é atribuída ao mestre de Soriguerola, considerado o Giotto catalão (AINAUD DE LASARTE, 1955).
Para a análise dessa fonte primária imagética, servimo-nos do sempre clássico estudo de Erwin Panofsky (2002: 47-87). Em sua apreciação, Panofsky distingue três níveis do significado de uma obra: 1) o tema primário ou natural: a descrição pré-iconográfica que identifica as formas, as linhas e as cores e suas relações mútuas, 2) o tema secundário ou convencional: que consiste na análise iconográfica, isto é, na busca do entendimento das representações simbólicas ligadas aos motivos artísticos e às combinações desses motivos e 3) o significado intrínseco ou conteúdo: que trata da interpretação iconológica.
Neste último nível, é revelado o comportamento cultural de um período, de uma nação ou de uma crença. Ressalte-se a necessidade da passagem de cada nível de análise para se chegar à compreensão do imaginário no período medieval.
IV. A arte em si: o Retábulo
Imagem 8
A Taula de Sant Miquel (reconstituição, especialmente das cenas 4 e 13).
Para facilitar a análise e compreender melhor a estrutura da Taula de Sant Miquel, vejamos abaixo o quadro explicativo, inspirado em um método de Carlo Ginzburg (1989: 67):
1 | 2 | 3 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 |
10 | 11 | 12 | |||||
4 | 13 | 14 |
Seguindo a numeração proposta acima, a obra ficou assim dividida:
São Miguel e o mundo dos vivos:
1- O Milagre do Monte Gargano
2- O bispo de Siponto com três personagens (dois ajoelhados diante dele)
3- Cena desgastada (provavelmente a construção da Igreja de São Miguel) (SUREDA, 1995: 347)
4- A Santa Ceia
5- Linha vertical divisória dos dois mundos, com motivos geométricos e vegetais
São Miguel e o mundo dos mortos:
6- A psicostasia (pesagem das almas)
7, 8, 9, 10, 11 e 12- Visão do juízo dos bem-aventurados
13- O Inferno
14- São Miguel combatendo o Dragão
Há uma barra vertical ricamente preenchida com linhas curvas dividindo as treze cenas em duas partes iguais. Ela se desenvolve formando um sinuoso e delicado bordado com detalhes em forma de folhas. Essa estilização vegetal era uma das formas encontradas pelos iluministas medievais para preencher um determinado espaço deixado na imagem – já foi dito que a Idade Média não gostava de espaços vazios. Ela ocupa todo o espaço interno da barra de fundo negro.
Assim, o retábulo está dividido em duas grandes partes temáticas. A primeira, à esquerda, nos parece fazer alusão ao mundo dos vivos, ou melhor, aos acontecimentos relacionados às aparições de São Miguel e a um fato crucial da presença de Cristo na Terra: A Santa Ceia. Por isso, a denominamos “São Miguel e o mundo dos vivos”. Ela possui quatro cenas.
Por sua vez, a segunda parte (à direita), diz respeito ao além, ao mundo dos mortos. Iniciando com a pesagem das almas, ela prossegue com a visão dos bem-aventurados, desce ao Inferno, com uma cena impressionante, e conclui com a vitória de São Miguel sobre o dragão. “São Miguel e o mundo dos mortos”, é como a definimos. Caso consideremos a visão dos seis bem-aventurados como uma única cena, essa segunda parte do retábulo terá então igualmente quatro cenas.
Para abordar o retábulo, seguiremos o percurso linear da esquerda para a direita: 1, 2, 6, 7-12, 13, 14 (observando que a cena 3 está destruída e a 4 serviu de abertura ao nosso texto), do espaço das cenas terrenas para o das cenas do além.
IV.1. A arte em si: o milagre do Monte Gargano
A santa solenidade da festa do arcanjo Miguel é chamada Aparição, Vitória, Consagração e Memória. As aparições desse anjo são numerosas. A primeira aconteceu no monte Gargano, na Apúlia, montanha situada perto da cidade de Siponto. No ano do Senhor de 390 havia na cidade de Siponto um homem que segundo alguns autores chamava-se Gargano, nome tirado da montanha ou que dera o nome à montanha.
Ele possuía um imenso rebanho de ovelhas e de bois, e um dia em que esses animais pastavam na encosta do monte um touro afastou-se dos outros para subir ao cume e não retornou com o rebanho. O proprietário reuniu grande número de serviçais a fim de procurá-lo e por fim encontrou-o no alto da montanha, na entrada de uma caverna. Irritado porque o touro vagava assim sozinho, ao acaso, lançou imediatamente contra ele uma flecha envenenada, mas no mesmo instante a flecha, como se tivesse sido empurrada pelo vento, voltou-se e atingiu que a arremessara.
Os habitantes da cidade, perturbados, foram procurar o bispo e pediram seu conselho sobre uma coisa tão estranha. Ele ordenou três dias de jejum e disse que se devia pedir a explicação daquilo a Deus. Depois disso São Miguel apareceu ao bispo, dizendo: “Saiba que aquele homem foi atingido por seu dardo por minha vontade. Eu sou o arcanjo Miguel, e quis mostrar que na Terra habito este lugar e sou inspetor e guardião dele”. Então o bispo e todos os cidadãos foram em procissão àquele local, e sem ousarem entrar ficaram rezando diante da entrada.
(JACOPO DE VARAZZE, 2003: 813-814)
Imagem 9
Cena 1 da Taula: a representação do milagre do Monte Gargano.
Ao iniciarmos a leitura do retábulo (da esquerda para a direita), observamos que ele principia com a primeira aparição de São Miguel, como conta o texto da Legenda Áurea (c. 1252-1270) – muitas cenas medievais retratadas em retábulos, afrescos e esculturas, tiveram como base as estórias reunidas na Legenda Áurea (GINZBURG, 1989: 65-69) e conhecidas tanto pela elite quanto pelo vulgo, uma intercessão cultural definida pelo Prof. Hilário Franco Jr. como “cultura intermediária”, elo de união que criou a identidade profunda da sociedade medieval (FRANCO JR., 2003: 14-15).
Na cena, emoldurada por duas pilastras e encimada por tendas, Gargano, à esquerda, o rico proprietário da estória, é representado em suntuosos trajes dourados e meias negras. Devido à sua importância, ele é muito maior que seu criado (à direita, abaixo), de negro, que coloca o indicador da mão esquerda em seu olho e aponta com a mão direita o lugar do milagre que acabou de presenciar. Na cena, a flecha já foi lançada de uma besta nas mãos de Gargano e, certeira, retornou para seu olho esquerdo. O forte e bem delineado touro está postado na entrada da caverna, localizada no centro do monte. Sua cor rubra se mescla e intensifica o fundo vermelho da cena. O milagre parece estar indicado uma vez mais pelo brilho e pelo tamanho das estrelas ao fundo.
A Legenda Áurea prossegue na descrição do milagre das aparições de São Miguel, e nos conta que o bispo de Siponto – cidade próxima ao monte Gargano – durante uma guerra contra os napolitanos recebeu a visita de São Miguel, que prometeu a vitória dos sipontinos contra os (ainda) pagãos napolitanos. Após a batalha e a vitória de Siponto, todos os napolitanos sobreviventes se converteram ao cristianismo, impressionados com o terremoto e o nevoeiro protetor criados pelo santo para defender o exército de Siponto. Depois disso, São Miguel apareceu novamente ao bispo, e ordenou que ele fosse com o povo ao monte Gargano, para a consagração de sua igreja.
Portanto, a cena 2 do retábulo pode estar fazendo alusão a qualquer um desses acontecimentos milagrosos relacionados ao bispo de Siponto e narrados na Legenda Áurea. Na cena, o bispo recebe dois personagens. Um deles está de joelhos, e parece pedir-lhe algo, pois suas mãos estão em forma de oração. O bispo, sentado, porta um livro. Seja qual for a referência, a imagem diz respeito ao importante papel do bispo de Siponto nas primeiras aparições de São Miguel na Terra.
IV.2. A arte em si: a pesagem das almas
A segunda parte do retábulo inicia com a cena da pesagem das almas, o primeiro julgamento realizado na presença do diabo e de São Miguel diante dos portões celestes. Nela há cinco personagens. Dessa vez, nossa leitura iniciará da direita para a esquerda, pois o sentido da cena parece fluir dessa forma, já que seu clímax é o combate entre Miguel e o diabo.
Portanto, à direita, encontra-se São Pedro, portador da chave do Paraíso e fundador da Igreja Católica. Tonsurado e aureolado, ele veste uma toga preta com as bordas brancas. Sua mão direita, desmedidamente maior (para destacar a importância do que carrega), porta as duas chaves azuis do céu; sua mão esquerda alça carinhosamente uma alma merecedora do Paraíso. Essa alma bendita está representada como uma criança. Por quê? Cristo disse: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus”. (Mt 18, 1-4). O mestre de Soriguerola mantém assim a bela e revolucionária tradição medieval de valorizar social e espiritualmente a criança (COSTA, 2002).
Imagem 10
Cena 6 da Taula: a pesagem das almas.
Descalço, São Pedro tem barba. Suas feições são serenas e seu olhar parece doce, pois olha para a alma na balança. Terminado o seu julgamento, a alma de natureza infantil entrará no céu. A entrada do Paraíso é representada pelo mestre de Soriguerola por uma torre dourada de um castelo medieval.
Aos pés do santo há um anjo descalço e ajoelhado em sua perna direita. Sua postura é profundamente reverente. Com uma delicada auréola azul demarcada por uma tênue linha branca, ele olha diretamente para São Pedro, intercedendo e suplicando pela sorte da alma. Trajando uma elegante toga dourada, suas asas são de bronze e possuem detalhes semelhantes às asas do arcanjo Miguel, como se fossem parte de uma armadura.
Entrementes, no centro da cena, São Miguel e o Diabo são certamente os dois personagens mais importantes. Eles estão pesando uma alma em seu respectivo julgamento individual. Imponente, Miguel veste uma brilhante toga azul, que se destaca muito em relação ao fundo vermelho, que também tem grandes estrelas brilhantes que realçam o belo e decisivo espetáculo do combate entre o bem e o mal. Seus pés estão igualmente descalços: os servos do Senhor são sempre humildes. Suas longas asas douradas possuem muitos detalhes e também lembram uma armadura, pois têm uma espécie de couraça em sua parte superior (como as do anjo com São Pedro). Abertas e imponentes, elas sugerem que Miguel acabou de chegar justamente para defender a alma que está sendo pesada na balança.
Sua mão esquerda aponta para a alma que está sendo pesada, e a direita está estendida na direção do diabo: ele fala com o sinistro. Em volta de sua cabeça há uma majestática auréola azul escura decorada com pérolas na extremidade. Seus cabelos são castanhos e suas feições serenas. Ele está tranqüilo porque não precisa disputar com o diabo; ele é justo e sua decisão prevalecerá!
Com uma soturna túnica negra com uma linha branca, o Diabo é marrom. Suas feições são metade humanas, metade animalescas; ele tem uma barbicha e orelhas de bode, longos e pontudos chifres, e seu cabelo é encaracolado. Suas múltiplas e brancas garras saem das unhas das mãos e dos pés, do cotovelo, do joelho, do calcanhar e dos ombros. Seus pés são monstruosos: têm quatro dedos. Na cabeça do pequeno diabo azul dentro da balança – que representa a medida das más ações da alma – sua mão direita trapaceia, pois força o peso para baixo. Até o fim dos tempos, ele sempre será um ludibriador. Sua mão esquerda erguida, com as garras à mostra, oferece uma inútil resistência a Miguel: no fim, o bem sempre triunfa.
O último personagem é um diabo azul. Com uma túnica amarela, ele é um servo do diabo marrom. Como o diabo anterior, suas garras saem de várias partes de seu corpo. Suas orelhas de bode só aumentam a sensação da monstruosidade de seu ser. Bem menor e mais magro, seu rosto parece o de uma criança maldosa – o exato oposto da bem-aventurada alma infantil que entra no Paraíso – pois tem a língua para fora, símbolo de seu esforço igualmente inútil de ludibriar o peso da balança a favor do mal. Pois apesar de projetar todo o peso de seu corpo para fraudar o julgamento, a força do mal não pode derrotar o humilde de pés descalços.
Do lado direito da balança há uma alma representada por um homem pequeno e nu. Ele está de pé, com as mãos unidas em um gesto de súplica, esperando Miguel tirá-lo da balança. De certa forma, sua fisionomia se parece com a de São Miguel, talvez pela padronização fisionômica típica da Idade Média. No outro lado, há um pequeno diabo azul, que representa as más ações da alma; ele é maior que ela e tem feições um pouco mais humanas. Com as mãos na borda da balança, ele olha para a alma e aguarda o fim do embate.
IV.3. A arte em si: a contemplação dos seis bem-aventurados
Imagem 11
Cenas 7 a 12: os seis bem-aventurados.
Como afirmamos anteriormente, os seis bem-aventurados que figuram ao lado da imagem da pesagem das almas podem ser enquadrados em uma única cena: de certa forma, eles representam o triunfo do bem. São seis personagens reais, coroados, de cabelos dourados e sentados em seus tronos. O elemento que define a geometria da bem-aventurança é o trinitarismo da cor. Reparem que o azul, o vermelho e o dourado se alternam em cada quadro. Da esquerda para a direita, o ritmo visual é sempre o mesmo: fundo azul, capa dourada e veste vermelha, fundo vermelho, capa azul e veste dourada.
Imagens 12 e 13
Cenas 7 e 10: dois dos bem-aventurados.
Além disso, eles parecem estar em diálogo, pois seus braços e suas mãos estão se referindo ao personagem ao lado, talvez comentando o momento da pesagem das almas à esquerda. Por fim, os bem-aventurados exibem um círculo em uma das mãos, símbolo de suas vitórias, sinal que o esforço de praticar o bem e se afastar do mal em vida foi recompensado após a morte. Por isso, as estrelas estão mais brilhantes que nunca na Taula: o sereno estado contemplativo dos bem-aventurados é a plena felicidade do Paraíso (DELUMEAU, 2003: 196).
IV.4. A arte em si: os horrores do Inferno e seus suplícios
Imagem 14
Cena 13 da Taula: o Inferno da Taula de Sant Miquel.
De todas as cenas da Taula de Sant Miquel, a mais impressionante para os espíritos medievais certamente deveria ser a que retrata o Inferno. Como certa vez afirmou Peter Burke, é necessário um certo esforço para perceber que as pessoas da época acreditavam que poderiam um dia ver lugares desse tipo (BURKE, 2004: 67). Mas sem essa tentativa de compreensão da consciência dos homens de uma determinada época, sem essa hermenêutica imaginativa (COSTA, 2004), o que seria da História?
No espaço do retábulo, ela só é menor que a da Santa Ceia. Nela, oito danados agonizam dentro de um imenso caldeirão, enquanto seis satisfeitos diabos trabalham constantemente para o seu sofrimento. Da mesma forma que a cena da pesagem das almas, faremos a leitura visual do Inferno do artista de Soriguerola da direita para a esquerda.
Animalescos, os diabos têm uma silhueta antropomórfica. O primeiro – e senhor de todos, porque está sentado em um trono amarelo – é marrom, tem garras negras que saem dos dedos de suas mãos e de seus pés, mas também de seu calcanhar, de seus joelhos e de seus cotovelos. Com rabo, orelha e barbicha de bode, ele possui longos chifres, símbolo de seu poder. Como o diabo da cena da pesagem das almas, seu cabelo é encaracolado. Está vestido com uma túnica vermelha; suas pernas estão cruzadas, sua mão esquerda está apoiada na perna direita e a mão direita se ergue na direção de outro diabo, como se estivesse dando ordens para aumentar o sofrimento das almas penadas. Está claro que há uma hierarquia: o Inferno é organizado!
De frente para seu senhor, o segundo diabo também é marrom. Sentado na alça do caldeirão onde os danados estão sendo cozidos, seus pés estão juntos, sua mão esquerda aponta para seu senhor e a direita mostra o que acontece no alto – a cena da pesagem (cena 6). Essa posição de seus braços nos sugere um diálogo: ele parece mostrar que logo chegarão mais pecadores para receberem o que merecem. Certamente seu cargo tem alguma importância, pois ele também não trabalha, apenas conversa com seu senhor.
O terceiro, ao centro, está bem no meio da alça do caldeirão. Ao contrário dos outros, ele é azul. Podemos somente vislumbrar seus imensos pés, mas um detalhe resistiu ao tempo: ele acaba de receber um novo torturado, pois uma de suas mãos o está segurando. Assim, ao centro e segurando um novo danado, ele e o quarto diabo parecem ser os elos entre as duas cenas. Esse é bastante semelhante ao segundo, porém tem chifres e seus pés têm quatro garras. Trajando uma túnica vermelha e com a língua para fora, ele parece ser o responsável por trazer para o Inferno aqueles que foram condenados no julgamento, pois sua mão esquerda ultrapassa os limites infernais e sua outra mão entrega o culpado ao terceiro diabo. Aparentemente ele ascendeu, pois seu pé direito ainda está no ar e o pé esquerdo apóia-se no caldeirão.
O quinto é marrom, tem as garras pretas como o anterior, mas sua túnica é amarela, o que nos sugere que a hierarquia infernal é também delimitada pela cor das túnicas dos diabos. Ele também possui chifres, e suas feições são ainda mais animalescas que as dos demais. O joelho de sua perna direita se apóia no chão e sua perna esquerda está flexionada; em suas mãos ele segura um forcado (instrumento de tortura) para revolver o carvão e assim aumentar o fogo intenso que suplicia os pecadores no caldeirão.
Completando o grupo de diabos, o sexto e último é azul claro (como o terceiro). Suas garras, imensas, saem dos dedos das mãos e dos pés, que também tem quatro dedos, mas elas não são negras como as dos outros e sim vermelhas. Ele também possui chifres e rabo, além de uma monstruosa e bifurcada língua vermelha para fora. Sua feição é a mais monstruosa de todos os diabos. Agachado em frente ao fogo e com a perna direita apoiada, ele abre e fecha um imenso fole dourado para aumentar o ardor das chamas. Sua mão esquerda lhe serve de apoio para segurar melhor o fole e extrair dele todo o ar necessário para aumentar o fogo. Sinistramente ele parece ter uma grande satisfação com seu trabalho: repare os seus imensos olhos esbugalhados e o leve sorriso esboçado em seu rosto. Como os medievais tinham imaginação para representar os suplícios do Inferno!
Imagem 15
Cena 13 da Taula (detalhe): o caldeirão dos supliciados.
Dentro do imenso caldeirão preto estão enfileirados os oito torturados com seus pescoços amarrados por correntes interligadas; suas mãos tocam o ombro do danado seguinte, e entre eles há rubras labaredas de fogo para mostrar o calor insuportável que reina ali. Cadavéricos, suas expressões são mais que de desolação, eles estão como que conformados com seu destino. Quase se percebe uma triste indiferença neles. O que poderiam mais sentir além da dor?
A cor de fundo do Inferno é negra, o que faz com que o ambiente pareça ainda mais assustador. Ao redor do cenário há pequenos círculos rubros envoltos em pontos brancos. O que seriam? Talvez as brasas revoltas do carvão que eternamente queima abaixo dos pobres condenados. Seja como for, é certo que essas brasas são um interessante e triste contraponto às estrelas das outras cenas da Taula de Sant Miquel.
Por sua vez, como afirmamos anteriormente, iniciamos nossa leitura visual da cena do Inferno no sentido inverso (isto é, da direita para a esquerda), com o diabo que está no trono – à direita. Ademais, nesse caso específico isso parece ter um sentido implícito, pois na concepção cristã e medieval do Inferno, embora haja uma ordem, como na monarquia da cristandade medieval, ela é invertida, pois perversa, como deve ser um espaço imaginário demoníaco. Assim, cada um tem sua função (por exemplo, pegar os condenados e trazê-los para o Inferno), e a executa com prazer. Contudo, apesar de ter um cargo elevado, o primeiro diabo (sentado no trono) não é Lúcifer, pois quando este é representado em seu reino, é costumeiramente retratado como um animal negro e gordo, nu e disforme, sem asas, chifres, cascos ou rabo (LINK, 1998: 86).
Na Idade Média o diabo tinha uma iconografia bastante irregular. Sua imagem dependia da utilização que o artista fazia das fontes clássicas, como o deus Pã ou o deus egípcio Bes. Seus chifres indicam seu poder. Além disso, eles colocam a língua para fora, zombando de suas vítimas e ridicularizando o sagrado (LINK, 1998: 63).
O Inferno do mestre de Soriguerola deveria ser muito assustador para os espectadores medievais. Primeiro, pelo fato de haver diabos coloridos e com expressões risonhas, debochadas e de escárnio para com a situação eternamente degradante dos condenados. Os castigos são explícitos na cena, e os diabos contribuem efetivamente para aumentar ainda mais o sofrimento das almas danadas. O mestre de Soriguerola representou o diabo com a devida importância que o mundo medieval o concebeu: o príncipe deste mundo era sorrateiro, trapaceiro e sinistramente assegurava o sofrimento das almas em seu reino invertido. Presente em todos os momentos da vida humana, especialmente no dia do Juízo Final, os diabos asseguravam a possibilidade de o julgamento divino ser justo: sem o mal não existe o bem!
Ademais, o fato de o Inferno e seus monstros estarem ao lado de imagens que expressam a profunda verdade e a beleza da fé cristã, só realça sua importância: o feio nos repugna, mas é aceitável e agradável na arte que expressa e denuncia belamente sua feiúra, física e moral! (ECO, 2004: 133).
Essa representação do mestre de Soriguerola confirma a construção do imaginário diabólico na arte do ocidente medieval: suas cores, seus símbolos e suas características asseguraram sua permanência no imaginário coletivo da cultura ocidental até hoje.
IV.5. A arte em si: a vitória final de São Miguel sobre o dragão
Imagem 15
Cena 14 da Taula: São Miguel combatendo o dragão.
Mas a leitura visual da Taula não seria perfeita nem completa do ponto de vista pedagógico se em seu final não estivesse a vitória, a vitória final do bem! Por isso, em sua última cena, a de número 14 de acordo com nossa proposta de demarcação da fonte, o mestre de Soriguerola representou o arcanjo Miguel lutando contra o dragão infernal – Lúcifer, que muitas vezes era simbolizado como um dragão ou uma serpente.
Naturalmente, o que mais se destaca à primeira vista é a figura de São Miguel. Ele veste uma brilhante toga dourada coberta por uma capa azul-escura demarcada por uma linha dourada. Suas longas e opulentas asas também são da cor ouro, com pequenos bordados na parte superior. Elas não são delicadas como a de um anjo celeste, pois, como dissemos anteriormente, sugerem uma espécie de armadura, já que o arcanjo é o guerreiro de Deus. Em sua mão esquerda há um pequeno escudo redondo e dourado; suas bordas são levemente pontiagudas. Na mão direita, o arcanjo porta uma longa e fina lança dourada. Seus pés estão descalços sobre o dragão, cada um aberto em uma direção. Em volta de sua cabeça, há uma auréola azul escura (da mesma cor que sua capa), seus cabelos são de um dourado escuro e suas feições estão muito serenas, já que o guerreiro de Deus sabe – e confia – que a vitória será sua.
O dragão é azul-claro. A textura de seu delineado corpo também sugere uma armadura. Ele possui asas, mas elas estão presas pelos pés de Miguel; suas patas com pontiagudas garras estão abertas e têm o formato das de uma águia, adaptadas para capturar suas presas. Sua cauda espinhosa é bem comprida e ramificada, e chega à altura dos ombros do arcanjo; a base da cauda tem escamas circulares e semelhantes à de algumas cobras – repare que em suas quatro pontas há uma cabeça de cobra. Seus olhos e suas orelhas se assemelham às de um bode. Suas feições demonstram uma grande preocupação, pois seus olhos estão arregalados e miram atentamente o arcanjo, pois foi gravemente ferido por Miguel (percebe-se que a lança atravessa seu palato), enquanto morde seu escudo e sua lança. É importante ressaltar esse último ponto: são raras as imagens que mostram Miguel ferindo gravemente o dragão: é notável, portanto, a impetuosidade do arcanjo na Taula!
Por fim, como todas as outras cenas, Miguel e o dragão estão emoldurados dentro de uma arcatura de duas pilastras, encimadas por várias tendas vermelhas em um belo céu azul. Abaixo, o fundo do combate é vermelho, o que anuncia a encarniçada luta entre os dois adversários. No interior da arcatura, também como nas outras cenas, há várias estrelas de diversos tamanhos, ornamentações freqüentemente utilizadas pelos artistas medievais e que aqui, como ressaltamos, sugerem o brilho deslumbrante da sabedoria cristã.
V. Conclusão
A Taula de Sant Miquel, imagem-objeto criada no alvorecer da Catalunha em honra de São Miguel, adornava a pequena igreja de Soriguerola, nos confins da Baixa Cerdanha, ao sopé dos Pireneus. Ao admirá-la, seus fiéis deveriam sempre recordar os ensinamentos de Cristo, a força do arcanjo e suas aparições nesse mundo, a vitória final do bem sobre o mal, a intercessão de Miguel quando de nossa morte, a recompensa dos justos no Paraíso e, sobretudo, os castigos que aguardavam os pecadores no Inferno. Todas essas imagens fortes, criadas pelo mestre de Soriguerola, compunham o retábulo. Imaginá-lo em seu lugar de origem, provavelmente, é reconstruir mentalmente um impressionante efeito de contraste: naqueles confins dos Pireneus catalães, dentro daquela singela capela, o retábulo, suas cores vivas e seus personagens sob as palavras do clérigo, deveriam se sobressair ainda mais no imaginário de seus espectadores.
Ao refazer esse percurso em nossa análise iconográfica, tivemos esse desejo em mente: imaginar como deveriam ser maravilhosamente deslumbrantes – e também assustadoras – essas cenas para os homens de sua época. Mesmo hoje, para o visitante do Museu Nacional d’Art de Catalunya, os vivos contrastes da Taula de Sant Miquel ainda arrebatam. Como deveria ser uma missa rezada nele? Como um cristão deveria sentir e interiorizar sua fé tendo diante de si a brilhante Santa Ceia e o tenebroso Inferno, o alado Miguel e o sinuoso dragão? O quanto eles projetavam de seus anseios íntimos no vislumbre da cena da pesagem das almas? Imaginariam eles como seriam suas almas na balança ao rezarem o mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa?
Os valores cristãos projetados nas imagens do retábulo e a forma com que o mestre de Soriguerola os recriou e arranjou naquele espaço são uma importante pista para se entender a recepção daquelas cenas na sociedade feudal catalã. Seu testemunho é o de um tempo em que as imagens sagradas reforçavam a palavra do púlpito e certamente criavam um tipo de religiosidade devocional que emergia do fundo das consciências de seu público.
*
– Este trabalho é dedicado aos queridos amigos catalães Gabriel Borsot e Eladi Llop (ambos da Universitat Internacional de Catalunya) que, em 2005, me proporcionaram um inesquecível passeio histórico pelo interior da Catalunha – Ricardo da Costa
– Dedico este trabalho à minha mãe Eliete, ao meu irmão Léo e a meus anjos da guarda – Carolina Bianchi.
***
Fontes
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
AGOSTINHO. Confissões. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1990.
JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. Vidas de Santos (trad. do latim, apres., notas e seleção iconográfica: Hilário Franco Júnior). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Bibliografia
AINAUD DE LASARTE, J. “El maestro de Soriguerola y los inicios de la pintura gótica catalana”. In: Goya, 1954, p. 75-81.
BASCHET, Jérôme. “Introdução: a imagem objeto”. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident medieval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996.
BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru/SP: Edusc, 2004.
CARBONELL, Eduard, i SUREDA, Joan. Tresors Medievals del Museu Nacional d’Art de Catalunya. Barcelona: Lunwerg Editores, 1997.
COSTA, Ricardo da. “A Educação Infantil na Idade Média”. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista VIDETUR 17. Porto: Editora Mandruvá/Faculdade de Educação da USP – Departamento de Filosofia e Ciências da Educação/Projeto Universidades Renovadas e Universidade do Porto – Faculdade de Direito – Instituto Jurídico Interdisciplinar, 2002, p. 13-20.
COSTA, Ricardo da. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista em Foco – Série Outros Tempos. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso? São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
DUBY, Georges. O ano mil. Lisboa: Edições 70, 1986.
DUBY, Georges. “1160-1320”. In: DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel (coord.). História Artística da Europa. A Idade Média. Tomo I. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997.
ECO, Umberto. Historia de la belleza a cargo de Umberto Eco. Madrid: Lumen, 2004.
FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
FRANCO JR., Hilário. “Apresentação”. In: JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 11-25.
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero. O Batismo – O Ciclo de Arezzo – A Flagelação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GREGORY, Tullio. “Natureza”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, São Paulo: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 263-277.
LINK, Luther. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LOPERA, José Alvarez, e ANDRADE, José Manuel Pita. História Geral da Arte: Pintura III – A pintura espanhola: da época romana ao século da Ilustração. Rio de Janeiro: Ediciones del Prado, 1996.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SCHMITT, Jean-Claude. “L’historien et les Images: Historiographie, Analyse et Méthode”. In: Humanas. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Atas do II Encontro Internacional de Estudos Medievais. Porto Alegre: IFCH, vol. I, n. 1, 1998, p.79-102.
SCHMITT, Jean-Claude. “Imagens”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval I. Bauru. São Paulo: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 591-606.
SUREDA, Joan. La pintura románica en Cataluña. Madrid, Alianza Editorial, 1995.
VALLS I TABERNER, Ferran, i SOLDEVILA, Ferran. Història de Catalunya. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat, 2002.
ZIMMERMANN, Michel. “As abadias da Catalunha”. In: BERLIOZ, Jacques (apres.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, s/d.