Um tributo à arte de ouvir

O amor cortês nas cançons de Berenguer de Palou
(c.1160-1209) 

Ricardo da COSTA
André GABY
Ernesto HARTMANN
Antonio Celso RIBEIRO
Matheus Corassa da SILVA

Palestra proferida no dia 11 de abril de 2019
no Seminário Formação em Extensão e Gestão Cultural da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Organização: Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Esporte.

In: eHumanista/IVITRA 15 (2019), p. 396-455.

In: COSTA, Ricardo da. Delírios da Idade Média.
Santo André, SP: Armada, 2023, p. 145-209
(ISBN 978-65-87628-26-4).
 

Resumo: Análise tanto do conceito de amor cortês presente nas letras das oito cançons do trovador catalão Berenguer de Palou (c. 1160-1209) quanto de suas estruturas melódicas formais. Além disso, utilizamos as transcrições modernas das partituras, disponíveis no site Troubadour Melodies Database, e traduzimos suas oito cançons (do Provençal antigo) e um extrato do Livro da Contemplação (c. 1271-1273) (do Catalão antigo) em que o filósofo Ramon Llull (1232-1316) descreve criticamente o ambiente social dos jograis, ambas traduções inéditas em nossa língua.

Abstract: An analysis of both the concept of courtly love present in the eight cançons (songs) of the Catalan troubadour Berenguer de Palou (c. 1160-1209) as of their formal melodic structure. In addition, we also translated the cançons from Old Provençal to Portuguese and an extract form the Book of Contemplation in ancient Catalan (1271-1273) where the Philosopher Ramon Lull (1232-1316) critically describes the social environment of the Jograis (the art of juggling). Along with that, we analyzed Palou’s melodies from their transcription to modern notation from the Troubadour Melodies Database. These texts are yet neither translated or published in Portuguese.

Resumée: Analyse conceptuelle d’amour courtois présent dans les paroles des huit chansons du troubadour catalan Berenguer de Palou (v. 1160-1209) et de leurs structures mélodiques formelles. Pour cela, nous avons utilisé les transcriptions modernes des feuille de musique, disponibles sur le site Troubadour Melodies Database. D’autre part, nous traduisons également les huit chansons (de l’ancien provençal) ainsi qu’un extrait du Llibre de Contemplaciò (v. 1271-1273) (de l’ancien catalan) dans lequel le philosophe Ramon Llull (1232-1316) décrit de manière critique l’environnement social des jongleurs. Tout les deux groupes de documents que nous avons traduits en portugais son inédites dans le monde lusophone.

Palavras-chave: Amor cortês – Trovadorismo – Música medieval – Cançó – Berenguer de Palou.

Keywords: Courtly love – Troubadors – Medieval Music – Cançó (Song) – Berenguer de Palou.

Mots-clés: Amour courtois – Troubadours – Musique médiévale – Chanson – Berenguer de Palou.

Preâmbulo: a Música, protagonista do universo mental e onírico do Ocidente

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The power of music (1847), de William Sidney Mount (American, 1807-1868). Óleo sobre tela, 43,4 x 53,5 cm, Cleveland Museum of Art, EUA (Leonard C. Hanna, Jr. Fund 1991.110). Mount é a síntese do artista multifacetado: transitou entre os quadros históricos, as paisagens e as cenas de gênero (representações de eventos cotidianos, muito comuns no Barroco holandês). Foi um respeitado compositor e violinista. E é o violino o centro dessa composição. Seu toque proporciona aos ouvintes, sem distinções, um instante de maviosidade. Ainda que sejamos tentados a enxergar neste quadro a clivagem social da escravidão negra (só abolida no território norte-americano em 1863), Mount nos apresenta a Música como um elemento civilizacional aglutinador, pois encanta brancos e negros, abastados e pobres, livres e cativos. A sonoridade do violino não escolhe condição, etnia. Apenas ressoa. Livre. Como contemporâneo da Escola do Rio Hudson (c. 1820-1880) – corrente artística de pintores de paisagens – Mount foi influenciado pelo Romantismo, norte estético dessa tradição. Por isso, não é forçoso conjecturar uma relação da Música com o Sublime, coup de force que a faz transcender o Belo. Pois o que são as diferenças ante o incomensurável e mágico encanto da Música?1

Peter Gay (1923-2015) apresentou um singelo e expressivo quadro de William Sidney Mount (1807-1868) em sua bela obra O coração desvelado, de 1995 (imagem 1).2 Principia assim, magnificamente, sua narrativa sobre a vida interior da burguesia vitoriana (1837-1901) com essa imagem, que ele define como um tributo à arte de ouvir.3 Esse encantamento com que a Música envolve os espíritos sensíveis é sintetizado na doce e serena expressão do homem negro do lado de fora do celeiro, que faz uma pausa em seu trabalho, extasiado que está com o som do violino.

A Música foi alçada, no séc. XIX, à condição de protagonista do universo mental e onírico do Ocidente. A partir de então, não vivemos sem ela. E essa é uma característica própria de nossa tradição histórica.4

Nas meditações especulativas que enalteceram os sons das harmoniosas melodias criadas pelos compositores de sua época, o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) criou uma metafísica da Música e, com isso, ajudou definitivamente a fixá-la no centro das artes:

Do mesmo modo que a música não exibe as ideias ou graus de objetivação da vontade, como todas as outras artes fazem, mas sim exibe diretamente a própria Vontade, podemos também entender que ela age diretamente sobre a vontade, ou seja, age sobre os sentimentos, as paixões e as emoções do ouvinte, de maneira que ela rapidamente os aumenta ou, senão, altera-os.

Longe de ser uma mera ajudante da poesia, a música é certamente uma arte independente, na verdade, é a mais poderosa de todas as artes, por isso atinge seus fins inteiramente a partir de seus próprios recursos (os grifos são nossos).5

Esse engrandecimento estético sonoro tem raízes profundas. Como sempre, medievais. Remonta ao Renascimento do século XII a ascensão da Música aos ambientes sociais mais refinados.6 A intenção desse trabalho é prestar um tributo à Música em forma de um estudo histórico. Sobre os trovadores medievais (sécs. XII-XIV) e seu tema, o amor cortês7; as canções de um trovador catalão medieval: Berenguer de Palou (c. 1160-1209).

I. O trovadorismo medieval

Imagem 2

Mapa da Occitânia (País d’Oc), com suas principais cidades (e regiões) em occitano (ou língua d’oc). Fonte: Jiròni Boulestelx, for Arril. Essa língua românica, o Occitano, se estende atualmente por quatro estados: ao sul do rio Loire (França), Vales occitanos (Piemonte e Ligúria, noroeste da Itália), Principado de Mônaco, Vale de Arão (noroeste da Catalunha, Espanha). Nessa região floresceu o trovadorismo e o amor cortês na Idade Média (sécs. X-XIII), com o Occitano como expressão linguística e poética.8

Occitânia (País d’Oc). Sul da atual França, âmbito geográfico do topos (τόπος) de um dos “heróis” medievais que alimentou os sonhos e o imaginário do Ocidente: o trovador.9 Essa região foi a mais romanizada do território gaulês – desde e a partir da anexação romana de sua franja litorânea em 123 a. C. por Cneu Domício Enobarbo (m. 104 a. C.) e, posteriormente, com as conquistas de Júlio César (c. 12-44 a. C.), denominada Gália Transalpina e, depois, Gália Narbonense.10

A Gália Aquitânia, mais ao norte, juntamente com a Gália Narbonense, passou a fazer parte da Diocese de Vienne, subordinada à Prefeitura Pretoriana da Gália em 337 após a morte de Constantino I (272-337). Foram mais de três séculos de romanização do espaço. Com a decadência e posterior queda do Império Romano do Ocidente, a região foi entregue aos visigodos na qualidade de confederados e depois por eles conquistada – criaram ali um vasto reino (com capital em Toulouse) que se estendia da Aquitânia à maior parte da Península Ibérica (418-507).11

A História dos Francos (c. 591) escrita por Gregório de Tours (c. 530-594) se ocupou de todo o séc. VI e nos informa que a região foi dominada pelos francos (convertidos ao catolicismo) que, por sua vez, expulsaram os visigodos (arianos).12 Após o interregno muçulmano na primeira metade do séc. VIII, todo aquele espaço mediterrâneo foi definitivamente conquistado por Pepino, o Breve (714-768). Mas apesar da conquista de Barcelona em 801 por Carlos Magno (742-814)13 e a criação do Reino da Aquitânia em 781, as costas occitanas ainda sofreriam ataques islâmicos por terra e por mar até o início do séc. XI.14

Posteriormente, com a dissolução do Império Carolíngio (888), a região foi dividida em uma série de condados autônomos, nominalmente sob a autoridade franca.15 Surgiram dinastias poderosas – reis (de Aragão), duques (da Aquitânia, da Gasconha), condes (de Foix, de Toulouse, da Provença, de Barcelona) e viscondes (de Carcassonne). Do final do séc. IX à segunda metade do XI, em meio a uma profusa e rica miríade de cortes principescas, surgiu uma cultura comum, independente, valorosa, aguerrida, voltada aos prazeres mundanos. Devotada ao desejo. Ao amor.16

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Divisão territorial do espaço occitano por volta de 1030, quarenta anos antes do nascimento do primeiro trovador que se tem notícia, Guilherme da Aquitânia (c. 1071-1126, duque da Aquitânia e da Gasconha e conde de Poitiers).17

Recuamos brevemente até a conquista romana para indicar que as raízes culturais da região, riquíssimas, ofereceram terreno fértil para o desenvolvimento de uma cultura (de raiz romana) herdeira de várias tradições, talvez mais complexa que a do mundo do Norte – terras da língua d’Oil (França setentrional, parte da Bélgica, Suíça e as ilhas anglo-normandas do Canal da Mancha).

A tradição mais perene da civilidade romana (mesmo com o longo interregno bárbaro-cristão da Alta Idade Média) é um dos possíveis motivos pelos quais tanto o amor cortês quanto a lenta, porém constante, elevação da condição feminina18 desabrocharam nas terras mediterrâneas da civilização ocidental, e só posteriormente no norte europeu – como se pode observar nas duas imagens selecionadas (4 e 5) e que servem de contraponto posterior, pois pertencem ao manuscrito germânico conhecido como Codex Manesse, confeccionado na primeira metade do século XIV.19

Imagem 4

Meister Heinrich von Meißen (Frauenlob [“Louvor da mulher”], c. 1250-1318). Große Heidelberger Liederhandschrift (Codex Manesse). Cod. Pal. germ. 848, Bl. 399r (c. 1305-1340), Pergaminho, 35 x 25 cm. Talvez seja a iluminura mais representativa do movimento trovadoresco medieval, síntese imagética do mundo dos trovadores e do amor cortês. Von Meissen recebeu refinada educação na escola catedralícia de Meißen, além de treinamento poético. Após peregrinar como menestrel, fundou a primeira escola de mestres cantores (Meistersinger) em Mainz. É possível que seu apelido (Frauenlob) se deva ao fato de ter vencido uma disputatio musical contra Regenbogen (†c. 1320), com a definição “senhora, mulher de elevada fama” contra “mulher, fêmea adulta” de seu oponente. Graças à sua cavalheiresca consideração pelo sexo feminino, as mulheres de Mainz conduziram seu caixão à catedral como forma de agradecimento. Sua tumba foi restaurada em 1783 (por mulheres!) e, em 1842, as senhoras de Mainz ergueram um monumento em sua memória. Em 1892, Reinhold Becker (1842-1924) escreveu uma ópera sobre um episódio de sua vida. Na cena, ele está sentado no trono, acima, à esquerda. Com uma enorme batuta, ele rege a “orquestra” de nove trovadores enquanto aponta, com sua mão direita, para seu brasão e elmo (acima, à direita), ambos com a imagem da Virgem.

II. O amor cortês (fin’amor)

Provavelmente nunca saberemos ao certo os motivos pelos quais o amor cortês irrompeu na cena europeia feudal occitânica. Muitas foram as especulações a respeito, desde o séc. XIX com a popularização do tema com Gaston Paris (1839-1903): heranças romanas, influências islâmicas, etc. O fato é que, para chegar à dimensão total da vida do Ocidente no séc. XIX, mesmo antes do surgimento dos trovadores, a Música passou ao protagonismo das artes já na Alta Idade Média, pelas mãos da Igreja.

Cassiodoro (485-580), fundador do Mosteiro de Vivarium (c. 544)  centro de estudos bíblicos e importante biblioteca transmissora dos conhecimentos clássicos20 – ao tratar da Música em sua obra Instituições (c. 530-550) relacionou-a diretamente à harmonia do corpo humano:

A Música se difunde por todos os atos de nossa vida, sobretudo à medida que praticamos os mandamentos do Criador e obedecemos Suas regras com pureza no coração. O que quer que digamos, o que quer que nos mova intrinsecamente pelo pulsar das veias, está associado à força da harmonia pelos ritmos musicais. Como se vê, a Música é a ciência da correta modulação. A ela nos ligamos quando fazemos uso do bom convívio em nossas relações. Mas quando praticamos iniquidades, não possuímos mais a Música.21

A seguir, o papa Gregório Magno (c. 540-604) decidiu criar sua escola de cantores e direcionar sua religião para o mundo dos sons.22 Assim, nesse período turbulento, pelas mãos dos religiosos, a Música sofreu uma transferência da esfera das matemáticas para a das sensibilidades, das ciências para os afetos. Podemos observar essa transição também na definição do bispo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), que seguiu a tradição platônica da harmonia das esferas, da sonoridade do universo23, mas uniu (assim como Cassiodoro) a harmonia musical ao corpo humano, corpo-caixa de ressonância das sonoridades do mundo:

1. Nenhuma disciplina pode ser perfeita sem a Música. Aliás, sem ela, nada existe realmente. Afirma-se que o próprio mundo foi composto de acordo com uma certa harmonia de sons, e que inclusive o Céu gira sob a influência modal da harmonia. A Música move os afetos e provoca distintas sensações na alma.

2. Nas batalhas, os acordes das trombetas excitam os soldados e, quanto mais exaltado é seu som, maior é o ardor no combate. O canto também anima os remadores, pois a Música faz com que o espírito se entregue ao trabalho – é por isso que as melodias das vozes atenuam o cansaço que qualquer tipo de ocupação provoca.

3. A Música aplaca os ânimos exaltados, como se lê em David, quem, pela arte musical, libertou Saul de um espírito imundo. Os próprios animais (como as serpentes, as aves ou os golfinhos) se sentem atraídos pela Música e escutam sua harmonia. Até mesmo quando falamos, ou quando nossas veias intimamente pulsam, mostram, com seus ritmos cadenciados, que estamos vinculados às virtudes da harmonia (os grifos são nossos). SANTO ISIDORO DE SEVILHA (c. 560-636), Etimologias, III, 17, 1-3.24

Com o terreno preparado e as sementes lançadas nesses séculos turbulentos porém fecundos da Alta Idade Média, esse processo de valorização da Música ganhou o mundo profano justamente com a explosão do trovadorismo e do amor cortês no séc. XI. Fruto da civilização feudal, da multifacetação dos poderes e do surgimento de cortes senhoriais, o amor cortês foi uma “invenção” da Idade Média central do sul francês, do Midi.25 O primeiro registro que dele se tem notícia é o dos poemas de Guilherme da Aquitânia (c. 1071-1126, duque da Aquitânia e da Gasconha e conde de Poitiers).

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Konrad von Altstetten. Große Heidelberger Liederhandschrift (Codex Manesse). Cod. Pal. germ. 848, Bl. 249v (c. 1305-1340), Pergaminho, 35 x 25 cm. A linhagem dos von Altstetten, documentada desde 1166, tinha sua residência em Oberrheintal, no Vale do Alto Reno. Estavam a serviço do abade de Saint Gallen. Com sua singela expressão corporal, o apaixonado casal dessa delicada iluminura sintetiza imageticamente o amor cortês e a nova condição feminina medieval, de assenhoreamento feminino e a consequente submissão masculina aos desejos da dama.26

Com o amor cortês como tema, para as mulheres Guilherme escreveu peças deselegantes, grosseiras, cruas27, mas também outras, delicadas, líricas, suaves. Como seus poemas não têm datação, a interpretação de que ele teria evoluído de modos rudes para corteses à medida que compunha é inverossímil. Mais provável é que os dois tipos de discurso (e de postura) não fossem excludentes, mas partes de um todo conceitual, ambíguo, paradoxal.28

No entanto, qualquer que seja a interpretação para a dualidade formal dos poemas de Guilherme da Aquitânia, uma coisa é incontestável: foi ele o primeiro trovador, o primeiro a cantar o amor. A partir de então, o mundo não seria mais o mesmo. Os homens descobriram as mulheres, na Poesia e na Música.29

III. Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

Berenguer de Palou foi da Catalunha, do condado de Rossilhão. Pobre cavaleiro foi, mas galhardo, instruído e bom em armas. Trovou bem canções, e cantou para Ermessena de Avinhão, esposa de Arnau de Avinhão, filho de Maria de Perelada.30

Imagem 6

Bérengier de Palazol. BnF, Ms. 12473, folio 126r. “Berengiers de palazol si fo de cataloigna, del comtat de rossillon, paubres cavallier fo...”. A imagem de Berenguer está um pouco manchada pelo tempo, mas pode-se perceber a altivez de seu porte cavaleiresco, a forma aguda com que estica a perna esquerda no estribo. Ao fundo, em forma de “S”, um réptil vermelho contrasta com o azul brilhante de suas vestes. Após a breve descrição de sua Vida, o manuscrito continua com as letras de suas cançons.

Infelizmente, devido à brevidade da Vida de nosso trovador (acima), sabemos pouquíssimo a respeito de Berenguer de Palou. Seu nome consta em cinco documentos de Rossilhão (entre 1196 e 1209).31 Foi vassalo de Gausfredo (Jaufré) III, conde de Rossilhão (†1164), mencionado em algumas de suas letras. Não parece ter tido contato com outros trovadores, como era comum naquele universo cultural. Sua temática foi a do amor cortês – uma de suas cançons serviu de modelo para o sirventês de um contemporâneo, Raimbaut de Vaqueiras (c. 1180-1207).32

A principal destinatária de seu amor foi Ermessena de Avinhão, esposa de Arnaut de Avinhão (do condado de Besalú). Suas melodias dirigidas a ela são, de modo geral, silábicas, com algumas finalizações melismáticas.33 Tradicionais, quase sempre permanecem em uma oitava (de dó a dó), e são estruturadas em motivos, forma comum também às melodias de Bernardo de Ventadorn (c. 1130-1200).34 De sua produção, doze canções chegaram até nós, apenas oito com melodias.

III.1. Características das canções medievais

Enquanto não há consenso entre musicólogos e especialistas em canções medievais trovadorescas sobre o uso e a notação rítmica, uma vez que as canções, com raras exceções do final do séc. XIII e início do XIV (com notação musical definida), eram notadas com neumas – isto é, sem qualquer indicação rítmica –, as cançons seguiam certos padrões repetitivos (motivo, diretividade, cadência, contorno melódico e estrutura do texto35). Isso porque muitas composições apresentavam uma estrutura e um estilo tão convincentes que é difícil crer que o esquema rítmico e a estrutura do verso não recebessem alguma forma de articulação rítmica.

Alguns teóricos da época (como Jofre de Foixà, †c. 1300) escreveram a respeito da arte da acentuação na performance dos trovadores, e apontaram que “o acento é quando se eleva a voz e a sustenta em mais uma sílaba do que em outra”.36 Assim, a acentuação era muito importante tanto na elaboração quanto na execução de uma linha melódica.

É possível supor que os trovadores desejassem ter liberdade para usar um ritmo que se enquadrasse nas circunstâncias de cada performance, ao invés de terem que se conformar a alguma estética pré-definida. Cada apresentação ficaria assim diretamente ligada ao contexto e ao estado de espírito do jogral.37 Essa forma de atuar pode ser demonstrada nas diversas versões de canções que chegaram até nós como, por exemplo, na famosa cançó Can vei la lauzeta mover (Quando vejo a cotovia mover) do trovador provençal Bernart de Ventadorn (1135-1194).

III.2. O contorno melódico e seus elementos: a metodologia

Dentre os elementos que destacamos como padrões repetitivos da música trovadoresca, gostaríamos de ressaltar o contorno melódico.38 Vários fatores contribuíram para formá-lo. Distinguimos uma melodia de outra conforme tais fatores estejam balanceados e modificados, e como essas mudanças são cronometradas à medida que cada melodia se desdobra no tempo.39 A singularidade melódica pode ser causada por um único padrão de contorno. As variáveis que o definem incluem a forma40, a mudança de direção (movimento ascendente ou descendente, frequência das mudanças de direção e a duração dessas mudanças) e a tessitura.41

Há também a continuidade, que trata do fluxo geral de efeitos causados pelos intervalos melódicos, por seus valores rítmicos, suas articulações e a duração e conexão das ideias (figuras).42 As diferenças entre as melodias dependem de como esses fatores estão coordenados com o contorno e como eles estão balanceados, sequenciados e variados enquanto elas se desdobram no tempo.

As variáveis de continuidade incluem os intervalos (tamanho relativo), a atividade (lentidão ou rapidez dos ritmos), a articulação (combinação de sons e silêncios, ou o grau dos sons e figuras separados por silêncios) e a duração (comprimento relativo das ideias e sua sequência).

Por fim, há o esqueleto (estrutura melódica). Ele fornece as informações básicas sobre a harmonia e o fluxo rítmico de uma melodia.43 As notas ouvidas são parte de uma estrutura melódica porque têm qualidades que atraem a atenção do ouvinte, além de ficarem gravadas na memória e se tornarem notas de referência à medida que a música se desdobra no tempo. Essas notas de referência são chamadas de notas acentuadas (conforme sua duração relativa, posição na métrica ou no padrão rítmico) e notas repetidas.

Esses serão alguns dos parâmetros metodológicos a serem levados em conta em nossas análises de contorno das cançons de Berenguer de Palou.44

IV. As cançons

Como dissemos, foram preservadas integralmente oito cançons de Berenguer de Palou. Traduzimos (pela primeira vez para a língua portuguesa) seus poemas e procedemos a uma breve análise musical de suas melodias. 

IV.1. Bona dona, cuy ricx pretz fai valer (Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus)

I. Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus
Bona dona, cuy ricx pretz fai valer
45

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

 

I

Bona dona, cuy ricx pretz fai valer

Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus

01

Sobre las plus valens, al mieu vejaire,

acima das mais valorosas, a meu ver.

 

Avetz razo per que·m dejatz estraire

Tereis razão em me privar

 

Lo belh solatz ni l’amoros parer,

de sua bela companhia e de sua amorosa visão

 

Si non quar vos auziey anc far saber

por não a ter feito saber

05

Qu’ie·us amava mil aitans mais que me?

que a amei mil vezes mais que a mim?

 

En aquest tort me trobaretz jasse,

Neste erro sempre me encontrarás,

 

Quar non es tortz que ja·us pogues desfaire.

pois não é algo que eu possa desfazer.

 

 

 

 

 

 

 

II

Si·l belh semblant que·m soliatz aver

O belo semblante que costumáveis ter,

 

De clar que fo, dona, tornatz en vaire,

claro que foi, senhora, vão,

10

Quar connoissetz qu’ieu no m’en puesc estraire,

pois deveis saber que não posso renunciar-vos.

 

Mielhs me fora ja no·us pogues vezer;

Melhor seria que nunca a tivésseis visto,

 

Quar ges pauzar no·us puesc a non chaler:

pois não posso vos ser indiferente,

 

Tals es l’envey’ e·l dezir que m’en ve

tantos são o desgosto e o desejo que me assaltam

 

Manhtas sazos que de vos me sove

todas as vezes que me lembro de vós

15

E vir mos huelhs envas vostre repaire.

e volto meus olhos para a vossa habitação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

III

E si de vos dizetz que·m dezesper,

Se disserdes que devo me desesperar

 

Dona, no sai de qui·m sia esperaire;

senhora, não sei qual será minha esperança.46

 

Si m’avetz fait d’autras amar estraire

Como me haveis feito renunciar a qualquer outro amor,

 

Q’una non vey ab cui dezir jazer:

não vejo ninguém com quem deseje me deitar.

20

Sens totz covens vuelh ab vos remaner,

Mesmo sem qualquer promessa, convosco quero permanecer

 

E sia en vos que·m fassatz mal o be;

e só depende de vós me fazer mal ou bem.

 

Pero guaratz qual mielhs vos en cove,

Considereis o que melhor vos convém,

 

Que no·us deman oltra grat pauc ni guaire.

pois não perguntar-vos-ei nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

De bon talan, ab cor leyal e ver

Assim, de boa vontade e com o coração leal e sincero

25

M’autrey a vos per vostres comans faire,

eu me entrego a vós, para vossas ordens obedecer.

 

Sol no·m mandetz de vos amar estraire,

Só não ordenais de vosso amor renunciar,

 

Quar ja, dona, no·n auria lezer;

porque nunca, senhora, poderia fazê-lo.

 

E no m’en cal per messongier tener,

E que não me tenhais por mentiroso,

 

Aissi m’en pren, dona, per bona fe;

porque faço isso, senhora, de boa-fé.

30

Ja dezamar no·us poiria per re,

Nunca poderia desamar-vos, por nada,

 

Ni fi non vuelh, s’aman no la·n puesc traire.

nem outro fim vislumbro se não puder vos ter.

 

 

 

 

 

 

 

V

Trop mi podetz lonjamen mal voler,

Por muito tempo podeis me desejar mal,

 

Si·m dezamatz quar hieu vos suy amaire,

caso me odiais porque vos amo.

 

E volgues m’en mon essien estraire,

E mesmo que eu quisesse tirar-vos de meus pensamentos,

35

Ja de mon cor no n’auria poder;

meu coração não teria esse poder.

 

E doncs, dona, pus no m’en puesc mover,

Assim, senhora, estou incapacitado,

 

Ni m’abelhis autre joys ni·m soste,

já que nenhuma outra alegria me mantém.

 

S’ab vos no truep chauzimen e merce,

Saibais que se em vós não encontrar perdão e mercê,

 

Vostre belh cors n’er vas Amor peccaire.

vosso belo corpo pecará contra o Amor.

40

 

 

 

VI

Amors n’a tort quar enveyos me te

O Amor errou quando me inspirou o desejo

 

Del vostre cors graile, gras, blanc e le,

de vosso corpo gracioso, apetitoso, branco e delicado.

 

S’inquer no·m faitz mielhs que no·m soletz faire.

Sequer precisa fazer o que não estais acostumada.

 

Partitura 1
Bona dona, cuy ricx pretz fai valer (Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus)

 

Bona Dona cui ricxs Pretz fai valer tem oito frases melódicas, com uma tessitura escalar de décima. Seu perfil melódico contém direcionamentos ascendentes e descendentes, organizados de forma contrastante.47 De um modo geral, à uma linha sinuosa imediatamente opõe-se uma sequência linear. A primeira, terceira e quinta frase contém mais saltos e disjunções que suas companheiras pares. Nessa relação invertida entra as duas frases finais (sétima e oitava) – a sétima é mais linear e a oitava mais sinuosa.

As tensões e resoluções (e, em particular, os pontos culminantes) são bem claros.48 O ponto culminante inferior é atingido na quinta frase, ao passo que o superior, por quatro vezes se faz presente (nas frases B, C, F e G). Saltos maiores que a terça são frequentes, e ocorrem na primeira e na quinta frases. A disposição dos pentacordesâmbitos de cada frase – revela um padrão definido e que se repete nas quatro frases finais: inferior-superior-superior-inferior.49

Abaixo, o perfil melódico da composição.

Perfil melódico 1
Bona dona, cuy ricx pretz fai valer (Boa senhora, cuja rica fama lhe faz jus)

 

IV.2. De la gensor qu’om vey, al mieu semblan (“A mais bela que se possa ver, em minha opinião”)

II. A mais bela que se possa ver, em minha opinião
De la gensor qu’om vey, al mieu semblan
50

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

I

De la gensor qu’om vey’, al mieu semblan,

A mais bela que se possa ver, em minha opinião,

01

On nueg e jorn velh e pens e cossir,

noite e dia a vejo, pensativo e ansioso.

 

Mi vuelh lunhar, si·l cor mi vol seguir,

Meu desejo quer dela se distanciar, caso meu coração deseje me seguir.

 

Ab tal acort que mais no·l torn denan,

Minha decisão é nunca mais tornar a vê-la,

 

Quar longamen m’a tengut deziron

porque por muito tempo ela manteve meus desejos

05

Ab belh semblan, mas tan dur me respon

com seu belo semblante e que tão duramente me disse

 

Qu’anc jorn no·m volc precx ni demans sofrir.

nunca querer sentir meus rogos e pedidos.

 

 

 

 

 

 

 

II

Ja mais miei huelh ab los sieus no·s veyran,

Jamais meus olhos encontrarão os teus

 

S’a lieys no plai que·m man a se venir;

a menos que deseje que eu vá até ti.51

 

Qu’on plus la vey, plus m’auci de dezir,

Quanto mais te vejo, mais aumenta meu desejo,

10

Et on mais l’am, mais y fatz de mon dan;

e quanto mais te amo, mais aumenta meu sofrimento.

 

E·l non vezer me languis e·m cofon;

Se não te vejo, definho e me consumo,

 

E pus no·m plai ren als que si’al mon,

e não há mais nada que exista no mundo que me agrade.

 

Ab pauc no·m lays de vezer e d’auzir.

Quase renuncio a viver e a ouvir.

 

 

 

 

 

 

 

III

Ai! belha dona, ab belh cors benestan,

Ah, bela senhora, de belo e gracioso corpo,

15

De bel semblan e de gent aculhir,

de belo semblante e de agradável acolhimento,

 

A penas sai de vos mo mielhs chauzir,

mal consigo decidir o que é melhor:

 

Si·us vey o no, o si·m torn, o si m’an:

ver-te ou não? Retornar a ti ou partir?

 

Non ai saber ni sen que mi aon;

Nem minha sabedoria, nem meus sentidos sabem responder.

 

Tan suy intratz en vostr’amor prion,

Tão profundamente estou em vosso amor

20

Qu’ieu non conosc per on m’en puesca essir.

que não sei como posso sair.52

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

Pero, dona, si·us vis cor ni talan

Por isso, senhora, se perceber em vosso íntimo o desejo

 

Que·m denhessetz l’amor qu’ie·us ai grazir,

de agradecer por meu amor,

 

So es us mals don no volgra guerir;

será um mal do qual não desejarei ser curado.

 

Mas, pus no·us plai, al ver Dieu vos coman;

Mas caso isso não vos agrade, ao verdadeiro Deus vos recomendo.

25

De vos mi tuelh, e non ab cor volon,

Afastar-me-ei de vós, mas não pela vontade de meu coração.

 

Quar res ses vos no·m pot far jauzion:

Porque nada, a não ser vós, pode me dar alegria.

 

Vejatz si·m puesc ab gaug de vos partir!

Vejais se com gozo posso de vós partir!

 

 

 

 

 

 

 

 

V

Quar conoissetz que no·us am ab engan,

Uma vez que sabeis que a amo sem engano,

 

E quar vos suy plus fis qu’ieu no·us aus dir

que sou mais fiel do que posso expressar,

30

E quar ab vos m'ave viur’o murir,

e que devo viver ou morrer convosco,

 

Vos afranquis merces vas me d’aitan,

que o agradecimento vos faça consentir,

 

Dona, que·l cor que·m falh e·m fug e’m fon

senhora, pois meu coração falha, me escapa e se vai.

 

Me sostenguatz, quar ieu no sai vas on

Por isso, apoie-me, pois não sei para onde devo procurar

 

Mi serc secors, se vos mi faitz falhir.

ajuda se sentir vossa falta.

35

 

 

 

VI

Senher Bernart, no·ns part ren viu del mon,

Senhor Bernardo, nada no mundo pode nos separar,53

 

Mas la belha que·m destrenh e·m cofon

mas a bela que me tortura e me consome

 

Tem que·m fassa per mort de vos partir.

temo que me separe de vós com a morte.

 

Partitura 2
De la gensor qu’om vey, al mieu semblan (“A mais bela que se possa ver, em minha opinião”)

 

De la Gensor qu’om vey contém sete frases melódicas. Apresenta uma tessitura escalar de nona. Seu perfil melódico contempla movimentos ascendentes e descendentes. Contudo, diferentemente da primeira cansó, aqui, não se percebe de imediato uma proposta de contraste. Todas as sete frases são construídas com perfil sinuoso.

Do mesmo modo, difere da primeira cançó por sua distribuição de pontos culminantes. Aqui, ao contrário de Bona Dona, o ponto culminante inferior é atingido três vezes (primeira, terceira e sétima frase). O ponto culminante superior apenas uma vez, na frase F.

Outra característica marcante é a predileção pelo uso de conjunções.54 Nessa cansó, os saltos são menos frequentes (e nunca mais amplos) que o intervalo de terça. A disposição dos pentacordes é, assim como na primeira cansó, bem organizada. Como as duas primeiras frases se repetem e são construídas sobre o pentacorde inferior, a quinta e a sexta propõem o contraste ao empregar o superior. A finalização, como o padrão musical desta época, acontece no pentacorde inferior.

perfil melódico de De la gensor qu’om vey, al mieu semblan:

Perfil melódico 2
De la gensor qu’om vey, al mieu semblan (“A mais bela que se possa ver, em minha opinião”)

IV.3. Ab la fresca clardat (“Com a suave claridade”)

III. Com a suave claridade
Ab la fresca clardat
55

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

I

Ab la fresca clardat

Com a suave claridade

01

Que mou del temps sere,

que desce do céu sereno,

 

Dona, et ab l’estat

senhora, neste tempo

 

Que renovela e ve

que novamente retorna,

 

Ai tot mon cor pauzat

coloquei todo o meu coração

05

[En la vostra merce,]

em vossa mercê.

 

E quar tant ai estat

Por isso há tempos

 

Que vezer no·us volia,

não desejo ver-vos.56

 

Si la colpa es mia,

Pois se a culpa é minha,

 

Et ieu m’o ai comprat.

já a paguei custosamente.57

10

 

 

 

 

 

II

Mas tant ai sofertat

Tanto suportei

 

Gran dezir e sai be

grandes desejos, que bem sei

 

Que si m’avetz desgrat

que se encorajei vossa má vontade,

 

A mon tort s’esdeve,

isto se deveu à minha falta,

 

Dona, e per ma foudat

senhora, e à minha loucura.

15

Quar d’amic no·s cove

Pois não convém que um amigo58

 

Qu’el truep si dons irat

irrite sua senhora

 

Per nulha fellonia,

por qualquer felonia.

 

E fols hom no·s castia

Mas o louco só se reencontra

 

Ans a trop mescabat.

quando já sofreu sua loucura.

20

 

 

 

 

 

III

Be m’avi’ acordat

Eu havia prometido

 

Qu’al cor vires lo fre,

pôr freios em meu coração.

 

Mas quan vey la beutat

Mas quando vejo esta beleza,

 

E·l belh cors blanc e le,

este belo corpo branco e moldado,

 

Graile, gras e delguat,

arredondado, esbelto e delgado,

25

E·l plus azaut qu'om ve

o mais gracioso que se pode ver,

 

E·l mielhs afaissonat,

e melhor esculpido,

 

Totz mon cor se cambia

meu coração muda tanto,

 

Que de vos no·s partria

que de vós não me separaria

 

Per nulh autr’embayssat.

por nenhuma mensagem de amor.

30

 

 

 

 

IV

Tan n’ai grant voluntat

Tenho por vós tal desejo,

 

E tant hi vey de be

vejo em vós tanto bem,

 

E tan mi ve per grat

e tanto me agrada

 

Qu’ie·us am per bona fe,

vos amar de boa-fé,

 

E tan m’avetz trobat

e encontrastes em mim

35

Ab leyal cor ancse

um coração tão leal

 

Que vos avetz comtat

que deveis saber

 

Qu’ie·us aya ad amia

que vos terei um dia por amiga

 

Per plana drudairia,

e seremos verdadeiros.

 

O·y auriatz peccat.

Do contrário, pecaríamos.

40

 

 

 

 

 

V

Per vos ai oblidat,

Por vós esqueci,

 

E non per altra re,

e por nada mais,

 

Tot quant avi’amat,

tudo o que amei,

 

Que de pauc mi sove;

que não lembro de mais nada.

 

Si ai per vos camjat,

Se mudei por vós,

45

Camjatz, dona, per me

mude, senhora, por mim

 

Vostre cors abdura[t],

vosso duro coração.

 

Vulhatz ma companhia

Desejai minha companhia,

 

Aissi cum ieu volria

assim como eu gostaria

 

Vos e vostr’amistat.

de vós e de vossa amizade.

50

 

 

VI

Me avetz, En Bernat,

Vós me tendes, Dom Bernardo,59

 

En vostra senhoria

em vossa senhoria.

 

Mielhs qu’om ja non auria

Ninguém teria melhor

 

Ren que agues comprat.

mesmo se tivesse comprado.60

 

 

 

VII

Chanso, a Na Maria

Canção, à Dona Maria

55

Diguas qu’ieu chantaria

diga que eu cantarei

 

Si·n sabi’aver grat.

se souber que me será grata.61

 

Partitura 3
Ab la fresca clardat (“Com a suave claridade”)

Ab la fresca clardat é construída em dez frases distintas. Apresenta uma tessitura escalar de décima primeira, a mais ampla entre as três primeiras cansós. Seu perfil melódico é quase que exclusivamente composto por conjunções. As exceções são as frases F, H e J, em particular a frase J que, aparentemente, apresenta uma ampla tessitura, pois atinge a nona, mas se trata de um erro (bem observado na edição da qual retiramos a transcrição), em virtude de uma mudança de clave.

As cinco últimas notas estão uma terça acima do representado. Assim, elas promovem uma quase exclusiva conjunção (exceto pelo salto de terça na antepenúltima para a penúltima nota) na frase final. Os saltos também são comedidos, pois não excedem uma terça (caso desconsideremos a mudança de pentacorde entre as frases H e I). O ponto culminante superior é atingido três vezes (A, F e I) e o inferior cinco vezes, o que faz com que as frases apresentem um perfil marcada e curiosamente mente sinuoso.

A disposição dos pentacordes é, como nas primeiras cansós, bem organizada. O pentacorde superior é poupado nas frases A, G e I. Todas as outras são articuladas no pentacorde inferior. Seu perfil melódico:

Perfil melódico 3
Ab la fresca clardat (“Com a suave claridade”)

IV.4. Totz temoros e doptans (“Inteiramente temeroso e trêmulo”)

IV. Inteiramente temeroso e trêmulo
Totz temoros e doptans
62

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

I

Totz temoros e doptans,

Inteiramente temeroso e trêmulo,

01

Quais qui·s laiss’a non chaler.

como quem se deixa ir languidamente,

 

Sol puesc’ entre·ls bos caber,

quero que apenas possa, entre os bons,

 

Vuelh que si’auzitz mos chans;

meu canto ser escutado. É meu desejo.

 

Pero no·m n’entremetria

Mas não me comprometeria

05

Si mon voler en seguia:

se meu desejo seguisse.

 

Mas francamen m’en somo

Pois livremente me chama

 

Tals cuy non aus dir de no.

a quem eu não posso dizer “não”.

 

 

 

 

 

 

II

Dompna, cuy suy fis amans.

Senhora, a quem eu amo fielmente,

 

Vos me faitz viur’e valer;

vós me fazeis viver e valer.

10

E quan pensan m’alezer

Meu pensamento se rejubila

 

E·ls guais amoros semblans

com vossos mais amorosos semblantes

 

Que m’an mes de joy en via.

que me colocaram no caminho da alegria.

 

Dic vos que no·m camjaria

Digo-vos que não mudaria

 

A la belha sospeisso

essa bela suspeita,

15

Per nulh autr’oc vostre no.

por nenhum outro “sim”, de vosso “não”.

 

 

 

 

 

III

Tant etz belha e benestans

Sois tão bela e prazerosa

 

Era mi vengr’a plazer

que teria um grande prazer

 

Qu’en pogues un oc aver;

em poder receber um “sim”.

 

Qu’ades, sitot m’es afans,

Assim, ainda que me seja um suplício

20

N’am mais la belha fadia

a mais bela recusa, eu preferiria

 

Qu’el don d'autra no faria:

ao dom que outra me fizesse.

 

De vos aurai aquelh do

De vós teria aquele dom

 

Que plus vuelh que d’autra no?

que mais desejo ao invés do “não” de outra?

 

 

 

 

 

 

IV

Francha res, conhda e prezans,

Pessoa livre, graciosa e prezada,

25

Veu mi al vostre plazer;

aqui estou, ao vosso prazer.

 

E si·us plai mi retener,

E se vos agrada me reter,

 

Suy vostres, senes enjans,

sou vosso, sem hesitar.

 

E vostres, si no·us plazia;

E vosso, mesmo que não vos agrade,

 

Et en vostra senhoria

e em vossa senhoria,

30

Remanh e serai e so,

permanecerei, e estarei, como estou,

 

Ab que·m retenguatz o no.

quer me retenhais ou não.

 

 

 

 

 

V

Pueys qu’anc no·us vi ni davans,

Pois nem antes, nem depois de vos ver

 

No pogui dels huelhs vezer

não posso dos olhos mirar

 

Re que·m pogues tan plazer,

nada que me dê tanto prazer,

35

Sia mos pros o mos dans,

seja para meu proveito ou meu dano,

 

Pus qu’ieu vos vi, belh’amia;

desde que vos veja, bela amiga.

 

E quar m’en lays per feunia,

Caso a renuncie por felonia,

 

O per un pauc d’uchaizo,

ou ainda por um pequeno tropeço,

 

Guerrey mi eys e vos no.

só a mim torturarei, não a vós.

40

 

 

VI

Dompna, no sai si·us plairia

Senhora, não sei se vos agradaria

 

Qu’ie·us vis, o si·us pezaria,

ver-me, ou se seria um fardo.

 

En tan gran doptansa so

Em tão grande dúvida estou

 

No say s’i·us vis o si no.

que não sei se devo vos ver ou não.

 

Partitura 4
Totz temoros e doptans (“Inteiramente temeroso e trêmulo”)

 
Totz temoros e doptans é composta por oito frases melódicas. Apresenta uma tessitura escalar de nona, o que compreende satisfatoriamente a faixa vocal de um adulto. Seu perfil melódico mostra direcionamentos ascendentes e descendentes não abruptos. Cada frase se comporta quase simetricamente de forma espelhada, ou seja, em direcionamentos opostos.
 
Essa disposição cria suspensões (tensões) e resoluções (repousos) em vários momentos da construção melódica, o que contribui para o fluxo contínuo da composição. A ausência de grandes saltos – o maior deles está limitado pelo intervalo de uma terça – aproxima essa melodia à de um cantus firmus63, o que faz jus à tradição medieval de fusão do sacro com o profano, em modos de empréstimos e derruba qualquer fronteira que possa existir entre os dois gêneros.64

A memória do ouvinte é estimulada pela repetição de certos ornamentos melismáticos em forma de bordaduras e floreios.65

Abaixo, o perfil melódico da composição:

Perfil melódico 4
Totz temoros e doptans (“Inteiramente temeroso e trêmulo”)

 

IV.5. Dona, si totz temps vivia (“Senhora, se eu vivesse para sempre...”)

V. Senhora, se vivesse para sempre...
Dona, si totz temps vivia
66

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

I

Dona, si totz temps vivia,

Senhora, se eu vivesse para sempre

01

Totz temps vos serai aclis:

eternamente vos seria fiel.

 

Estranhamen m’abelhis

Estranhamente sinto-me feliz

 

Qu’ie·us am, qual que dans me·n sia,

por vos amar, qualquer que seja o dano

 

Destinatz ni a venir;

destinado a mim.

05

Si tot no m’en puesc jauzir

Caso não possa disso gozar

 

Tan be cum mos cors volria,

tão bem quanto meu coração deseja,

 

Si·n val mais mos pessamens

mais valem meus pensamentos

 

E me·n sap melhor jovens

e mais valoro a juventude,

 

E deportz o guallardia.

os prazeres ou a valentia.

10

 

 

 

 

 

II

Per Dieu, belha douss’amia,

Por Deus, bela doçura minha,

 

Per cuy aflam e languis,

por quem ardo e languidesço,

 

Enaisi m’avetz conquis

haveis me conquistado de tal forma

 

Qu’altra jauzir nom plairia;

que outro gozo não me agradaria.

 

Si tot m’assagiey mentir

A todos tentei mentir

15

Per tal que pogues cobrir

para poder ocultar

 

La sobramor qu’ie·us avia,

o excesso de amor que vos tenho.

 

Anc jorn no·s camget mos sens

Mas nunca mudei meu desejo

 

De vos amar finamens,

de delicadamente vos amar

 

Ni poderos no·n seria.

nem poder para isso teria.

20

 

 

 

 

 

III

Molt vuelh vostra senhoria

Muito anseio por vossa senhoria

 

Mais que d’altra que anc vis,

mais que a de qualquer outra dama que já tenha visto.

 

E·l vostre cors francx e fis,

E vosso corpo, livre e leal,

 

Genser qu’ieu dir no sabria,

mais gracioso do que saberia dizer,

 

Fa mi d’enveya murir

causa-me inveja da morte

25

Quar plus soven no·us remir;

porque mais frequentemente não vos vejo.

 

Tan es de bella paria

Vossa companhia é tão bela

 

Qu’autre joy es dreg niens,

que outro desejo me é nada!

 

D’aitan suy ieu ben sabens,

Disso estou tão certo

 

Encontra qui vos avia.

quanto vos possuir.

30

 

 

 

 

 

 

IV

Anc no cuydiey en tal via

Nunca pensei em tal caminho

 

Intrar don ja non issis;

entrar e não conseguir mais sair.

 

Pero tan cochos m’i mis

Mas tão ardentemente me coloquei

 

Qu’anc non guardiey on iria.

que não pensei onde iria me levar.

 

E doncx, dona cuy dezir,

Assim, senhora que tanto desejo,

35

Pus a cap no puesc yssir

como não posso alcançar

 

De so que ieu tan volria

o que tanto almejo,

 

Quals er mos captenemens?

qual deve ser minha conduta?

 

Que sai on prumeiramens

Desde que inicialmente

 

Intrey me truep tota via.

entrei, nesse caminho ainda me encontro.

40

 

 

 

 

 

 

V

Ja’l sens ni la cortezia

Nunca o senso e a cortesia

 

Ni·l bel semblan [ni·l dous ris

nem o belo semblante, nem os doces sorrisos

 

Qui] m’estant [al cor assis

que estão assentados em meu coração

 

---

---

 

No·m de]gron tant [abelir,

Não devem me agradar tanto

45

Si no·m denhatz] cossentir,

caso não consintais com meu anseio.

 

[Ans que’l deziriers m'au]cia

Antes de ser morto por esses desejos

 

Que·m [sobrapoder’e·m vens];

que me derrotam e me vencem,

 

Que·l vostre [ricx cors valens

que o vosso precioso e valoroso corpo

 

Res]taur’ ab sen [ma folia].

restaure, com seu senso, minha loucura.

50

 

 

VI

Foldatz es [e leujaria

É loucura e suavidade,

 

Quar] part vostr[es mandamens

apesar de vossos mandamentos,

 

Vos] am, pero per [nuls sens

vos amar, mas por nenhum senso

 

Ma fou]dat non camjaria.

mudaria minha loucura.

 

Partitura 5
Dona, si totz temps vivia (“Senhora, se eu vivesse para sempre...”)

 

Dona, si totz temps vivia é composta por dez frases. Sua tessitura compreende uma oitava. De construção significativamente distinta da canção IV, é moldada em padrões intervalares que se repetem sistematicamente. A despeito de possuir um salto intervalar maior – uma quarta justa – o contorno melódico dessa cançó é um tanto linear, o que a aproxima ainda mais das características de um cantus firmus.

Três agrupamentos melódicos chamam a atenção na construção dessa peça:

1) o salto de quarta justa ascendente, que aparece 4 vezes, nas frases A, B, E e H respectivamente;

2) o intervalo de segunda descendente, 6 vezes nas frases A, B, E, F, H e I respectivamente (esse agrupamento aparece transposto nas frases C, F e I), e

3) o agrupamento descendente de quatro notas em graus conjuntos no âmbito de uma quarta aumentada.

O último agrupamento aparece tal como exposto nas frases B, E e H, e de forma ligeiramente modificada, na frase J. Nessa cansó, é digno de nota a repetição textual completa da frase E na frase H. Também a frase D é repetida quase que textualmente na frase G (com apenas a última nota modificada). O material temático da frase C surge, com ligeiras modificações, na frase F que, por sua vez, é “clonado”, com mutações, na frase I.

Por fim, o direcionamento melódico da frase G reaparece com muita similaridade na frase final J. Essa cançó é a que possui maior determinação motívica/melódica.

A repetição dos padrões intervalares confere à composição um caráter extremamente coeso, pois cria sensos distintos de suspensão e conclusão e aponta para as inovações que a Música viria a sofrer alguns séculos mais tarde. Abaixo, o perfil melódico da composição:

Perfil melódico 5
Dona, si totz temps vivia (“Senhora, se eu vivesse para sempre...”)

 

IV.6. Dona, la genser qu’om veya (“A mais gentil senhora já vista”)

VI. A mais gentil senhora já vista

Dona, la genser qu’om veya67

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

I

Dona, la genser qu’om veya,

É a mais gentil senhora já vista,

01

Sai, de belh aculhimen,

de bela acolhida

 

Agradiv’a tota gen,

e agradável a todas as gentes.

 

Mas trop ten en gran enveya

Mas é tão cuidadosa

 

Selhs que deziron jauzir,

que aqueles que desejam deitar-se com ela

05

Q’us non pot acosseguir

não conseguem

 

D’un an so que’n cuyd’aver

nem em um ano o que pensavam

 

Quoras que la torn vezer.

ter no momento em que a viram.

 

 

 

 

 

II

Ren no promet ni autreya

Nada promete, nada consente,

 

Ni estrai ni falh ni men,

não se retira, não falha, nem mente.

10

Mas «de no» sap dir tan gen

Mas sabe dizer “não” tão gentilmente

 

Q’ades cuydaretz que deya

que sempre pensareis dizer

 

Totz vostres precx obezir;

que a todos os vossos rogos obedece.68

 

 

Pero, quan ven al partir,

E quando chega a hora de partir

 

Sap sens colpa remaner

sabe, sem culpa, permanecer

15

Ab grat qu’en sap retener.

e a gratidão manter.

 

 

 

 

 

III

Tan gen despen e despleya

Tão gentilmente usa e exercita

 

Sa gran valor e so sem

seu grande valor e bom-senso,

 

Q’una·l sieus laus non aten,

que ninguém a iguala em glória,

 

E ja nulhs hom no·m mescreya

e ninguém mais pode duvidar

20

De lauzor que·m n’auga dir,

dos louvores que me ouvem dizer,

 

Qu’aitant hi pot hom chauzir

nem que se pode escolher melhor

 

De bon pretz fin e de ver

um bom apreço, fino e verdadeiro

 

Cum en dona pot caber.

que em uma senhora pode caber.

 

 

 

 

 

IV

Sobre totas senhoreya

Acima de todas, senhoreia

25

De pretz, mas tan car despen

sua honra. Mas tão caro gasta

 

S’amor, meravilha·m pren,

seu amor69, que me maravilho

 

 

Qui per sol sen la corteya

em como alguém pode sentir tanta cortesania!

 

Cum o pot guaire sufrir;

Como consegue sentir,

 

O·s fai ab art abelhir,

com arte desejada se fazer valer

30

O ylh a qualque saber

e ser dona de tanto saber

 

On nulhs hom no·s pot valer.

que nenhum homem a pode merecer!

 

 

 

 

 

 

V

Be vuelh que·m tenh’, on qu’ieu seya,

Muito desejo que me tenha, onde quer que esteja,

 

Per son leyal be volen;

como seu pretendente leal.

 

Si tot joy non hi aten,

Ainda que não espere gozo,

35

Mos cors l’aclina e·l sopleya

meu corpo se submete e suplica.

 

E·m platz tots sos bes auzir

Tanto me agrada todas as suas qualidades ouvir

 

Et ajut ad enantir

que ajudo a enaltecer

 

Sos laus ades, jorn e ser,

seus louvores, dia e noite,

 

En totz locs, a mon poder.

em todos os lugares, com meu poder.

40

 

VI

Dieus me don l’ora vezer

Que Deus me mostre a hora

 

Qu’ie·lh puesca far son plazer.

que eu possa lhe dar prazer!

 

Partitura 6
Dona, la genser qu’om veya (“A mais gentil senhora já vista”)

 

Dona, la genser qu’om veya também é composta por oito frases. Sua tessitura é de uma oitava. O ápice ocorre apenas uma vez, na frase B, assim como a nota mais grave só aparece na última frase (H).

Essa cançó prima por uma melodia especialmente construída sobre graus conjuntos. O salto maior é de uma terça e apresenta, de modo simplificado, dois agrupamentos rítmicos que funcionam à guisa de ornamento (melisma). O primeiro é formado por grupos de duas notas adjacentes ascendentes que se repetem identicamente (na mesma altura) por quatro vezes (frases C, D, F e G).

Esse agrupamento também aparece de maneira descendente, transposto para outras notas, duas vezes na frase D e uma na frase E. O segundo agrupamento consiste em uma sequência de três notas adjacentes que aparecem por três vezes de modo descendente (frases B, E e G) e uma vez de modo ascendente (frase F).

Digno de menção são três agrupamentos distintos: o primeiro, um ornamento de duas notas sobre graus disjuntos, mais especificamente num intervalo de terça (frase C); o segundo, com três notas compostas por um salto de terça seguida de uma segunda, o que confere à melodia um forte sentido de tonalidade dominante, seguido e reforçado pelo último agrupamento de quatro notas adjacentes, descendentes e ascendentes, que funciona como um grupeto que dá o sentido de conclusão para a obra.

A análise do contorno da melodia mostra um perfil linear muito próximo à linha do cantus firmus da liturgia cristã da época, o que reforça a ideia que a fronteira musical entre os gêneros sacro e profano era muito mais tênue do que pode parecer.

Perfil melódico 6
Dona, la genser qu’om veya (“A mais gentil senhora já vista”)

 

IV.7. Aital dona cum ieu sai (“Uma senhora como a que eu conheço”)

VII. Uma senhora como a que eu conheço

Aital dona cum ieu sai70

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

I

Aital dona cum ieu sai,

Uma senhora como a que eu conheço

 

 Rich'e de bellas faissos,

nobre e de amáveis feições,

 

Ab cors covinent e guay,

com um corpo conveniente e agradável,

 

Ab digz plazentiers e bos,

e uma conversa prazerosa e honesta,

 

Si volgues precs ni demanda[s] sufrir,

se consentisse em suportar os rogos e pedidos

05

Degr'om honrar, car tener e servir,

deveria ser honrada, tida em alta conta e servida,

 

Que no·y falh re que·m bona dompna sia,

pois não há nada que falte para que seja uma boa senhora

 

Mas quar Amors hi pert sa senhoria.

a não ser o Amor perder seu direito de senhoria.

 

 

 

 

 

 

 

 

II

Sobre las melhors val mai

Ela sempre está acima das melhores

 

Et es la genser qu'anc fos,

e é a mais perfeita.

10

Mas tan a ric pretz veray

Seu mérito é tão precioso e verdadeiro,

 

E tant es sos cors joyos,

seu corpo tão agradável,

 

E tan gen sap tot quan vol far e dir,

sabe tão bem o que quer fazer e dizer

 

E tan se fai als plus honratz grazir

e é tão apreciada pelos mais honrados

 

Que·n pren orguelh, qu’es contra drudaria:

que é orgulhosa contra as leis [do amor].

15

Ve·us tot lo mal que ieu dir en sabria.

Esse é todo o mal que eu poderia dela dizer.

 

 

 

 

 

 

III

Amar e temer se fay

Amada e temida ela é

 

Sovent a manht enveyos

frequentemente por muitos invejosos.

 

En cuy pauc de ben estai,

Em quão pouco bem se encontra!

 

Mas ab un semblan ginhos

Mas tem um semblante engenhoso

20

Et ab belhs digz o sap tan gen cobrir

e tão belos ditos sabe tão bem dissimular

 

Per qu’om de lieys no·s pot claman partir,

que, ao deixá-la, ninguém pode se queixar.

 

Q’us no s’en part, si son vol en seguia,

Pois quem dela se separar, se assim o desejar

 

Que no·y volgues tornar en eys lo dia.

novamente a ela retornará no mesmo dia.

 

 

 

 

 

 

IV

Anc no·s volc metr’en assai

Ela nunca consentiu se colocar

25

De nulh fait aventuros

em qualquer aventura

 

Per que pogues en folh plai

que pudesse pôr em loucura

 

Venir sos pretz cabalos;

sua honra soberana.

 

Totz sos faitz sap acabar e complir

Todos os seus feitos ela sabe terminar e cumprir.

 

Ab segur sen ses reguart de falhir

Com um seguro senso, resguarda-se de falhar.

30

E ses mal gienh, ses blasm’e sens folia,

Sem mau engenho, sem culpa, sem loucura,

 

Ses enueg dir e senes vilania.

sem palavras feias e sem vilania.

 

 

 

 

 

 

 

V

Quar denha sufrir ni·l plai

Ela consente em sentir e tem prazer

 

Qu’ieu la laus en mas chansos,

que eu a louve em minhas canções.

 

Del sobregran gaug qu’eu ai

Extremo é o gozo que sinto

35

M’es complitz lo guazardos,

que é um completo galardão.

 

Sol que·y saubes tan be esdevenir

Mas eu ficaria feliz se

 

Cum agra cor e talan e dezir,

tivesse seu coração, sua vontade e seu desejo.

 

E gran razo pus me en par n’auria,

Parece que para isso teria muitos motivos,

 

Mas no sai dir lo be que·y tanheria.

mas não sei dizer se conveniente seria esse bem.

40

 

 

 

 

VI

Dompna, no puesc de vos lauzar mentir,

Dama, não posso mentir ao vos louvar.

 

Que tot lo be hi es qu·en puesc hom dir,

Todo o bem que existe e que se pode apregoar

 

E mais n’i a que hieu dir no sabria

é tanto que dizer eu não saberia.

 

El remanens cab s’en vos tota via.

E todo o restante está em vós, todavia.

 

Partitura 7
Aital dona cum ieu sai (“Uma senhora como a que eu conheço”)

 

Aital dona cum ieu sai é composta por oito frases com a estrutura formal ABABCDEF. Seu âmbito abrange o dó central à ré, na oitava superior (um intervalo de nona). A nota mais aguda aparece uma única vez, na quinta frase (C), em uma leve bordadura ascendente, ornamento que embeleza o cume da melodia e divide quase que ao meio o percurso melódico. A nota mais grave surge logo após o clímax melódico e continua, obstinadamente, a ressoar nas frases seguintes, o que faz deslocar o centro modal para o grave na segunda metade da obra.

A cançó se assemelha ao primeiro modo do sistema medieval gregoriano (protus autenticus)71, pois se desenvolve em uma oitava e tem como nota importante a quinta (tenor72) e, como cadência final (finalis), a nota inicial. A melodia se desenvolve em graus conjuntos e intervalos de terça, com apenas um salto de quinta descendente entre o tenor e a finalis na frase D. Os intervalos de terça aparecem em sequências (nas frases C, D, E e F). A mais importante delas é a primeira, pois alcança seu ponto culminante.

Outra característica que merece atenção são os melismas. Estão presentes em todas as frases: timidamente na primeira metade da cançó (melismas com três e raramente quatro notas) e com até cinco notas após o clímax melódico. É um tipo de ornamento em forma de bordadura nas frases C (já mencionado) e D (bordadura inferior), e em três, quatro e cinco graus adjacentes, dos quais somente os agrupamentos de três notas apresentam melismas ascendentes.

A lógica melódica de Aital dona cum ieu sai tem uma intenção difusora de conhecimento semelhante às dos compositores do repertório monódico gregoriano: a construção melódica por notas de récita, cordas fortes73 e notas de contraste ou ornamentais.74 Nas frases A e B, a melodia transita entre a nota de récita e a nota final do primeiro modo, e apoia-se com frequência na corda forte (duas vezes em cada frase). As demais funcionam como notas de contraste ou de ornamentação.

Nas frases C e D é acrescentada uma nova nota de récita secundária (na oitava superior) como contraste ornamental. Nas duas frases finais, elas são mais exploradas e aparecem mais vezes (não mais somente em melismas): esse gesto do compositor cria a tensão necessária para a cadência conclusiva.

Seu perfil melódico:

Perfil melódico 7
Aital dona cum ieu sai (“Uma senhora como a que eu conheço”)

 

IV.8. Tant m’abelis joyas et amor e chans (“Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto”)

VIII. Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto
Tant m’abelis joyas et amors e chans
75

Berenguer de Palou (c. 1160-1209)

 

 

 

 

 

 

I

Tant m’abelis76 joyas et amors e chans,

Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto,

01

Et alegrier, deport e cortezia,

a alegria, a diversão e a cortesia,

 

Que·l mon non a ricor ni manentia

que não há no mundo riqueza ou senhorio

 

Don mielhs d’aisso·m tengues per benanans;

que possa contribuir para a minha felicidade.

 

Doncs, sai hieu ben que mi dons ten las claus

Assim, bem sei que é minha dama que tem as chaves

05

De totz los bes qu’ieu aten ni esper,

de todos os bens que aguardo e anseio.

 

E ren d’aiso sens lieys non puesc aver.

Sem ela, não posso tê-los.

 

 

 

 

 

 

 

II

Sa grans valors e sos humils semblans,

Seu grande valor, seu singelo semblante,

 

Son gen parlar e sa belha paria,

sua agradável fala e sua bela companhia,

 

M’an fait ancse voler sa senhoria

me fazem sempre desejar sua senhoria,

10

Plus que d’autra qu’ieu vis pueis ni dabans;

mais que qualquer outra que eu tenha visto agora ou antes.

 

E si·l sieu cors [amoros] e suaus,

E se seu corpo amoroso e suave

 

En sa merce no·m denha retener,

não me retiver em sua mercê,

 

Ja d’als Amors no·m pot far mon plazer.

do Amor não poderei ter prazer.

 

 

 

 

 

 

 

III

Tant ai volgut sos bes e sos enans,

Tanto desejo seus beijos e seus ímpetos,

15

E dezirat lieys e sa companhia

tanto a desejei, e sua companhia,

 

Que ja no cre, si lonhar m’en volia,

que não creio querer me estender.

 

Que ja partir s’en pogues mos talans;

Partir, se pudesse, seria meu desejo,

 

Et s’ieu n’ai dic honor ni be ni laus,

e se cantei sua honra e seus méritos,

 

No m’en fas ges per messongier tener,

não passo por mentiroso,

20

Qu’ab sa valor sap ben proar mon ver.

pois com seu valor, ela sabe bem provar minha verdade.

 

 

 

 

 

 

 

IV

Belha dompna, corteza, benestans,

Bela dona, cortês, agradável,

 

Ab segur sen, ses blasm’e ses folhia,

com bom senso, sem culpa, sem loucura,

 

Si tot no·us vey tan soven cum volria,

ainda que não a veja tão frequentemente como desejaria,

 

Mos pessamens aleuja mos afans,

meus pensamentos abreviam meus sofrimentos,

25

En que·m delieyt e·m sojorn e·m repaus;

e neles me deleito, descanso e repouso.

 

E quan no·us puesc estiers dels huelhs vezer,

E já que não posso vê-la com meus olhos,

 

Vey vos ades en pessan jorn e ser.

a vejo noite e dia em meus pensamentos.

 

 

 

 

 

 

 

V

Sabetz per que no·m vir ni no·m balans

Sabeis por que decidi, sem mudar,

 

De vos amar, ma belha douss’amia?

vos amar, minha bela e doce amiga?

30

Quar ja no·m cal doptar, si hie·us avia,

Porque, se a tivesse, não temeria

 

Que mesclessetz falsia ni enjans;

confundir falsidade ou engano.

 

Per qu’ieu am mais, quar sol albirar n’aus

E é porque prefiro pensar

 

Que vos puscatz a mos ops eschazer

que possa comigo em meus braços um dia estar,

 

Qu’autra baizar, embrassar ni tener.

que outra beijar, ter ou abraçar.

35

 

 

 

VI

Doncs, s’ieu ja·m vey dins vostres bratz enclaus

Assim, se em vossos braços jamais preso estiver,

 

Si qu’ambeduy nos semblem d’un voler,

e ambos não formos um só desejo

 

Meravil me on poiria·l joy caber.

Maravilhar-me-ei onde minha alegria estiver.

 

Partitura 8
Tant m’abelis joyas et amor e chans (“Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto”)

 

Tant m’abelis joyas et amor e chans é a última cançó deste estudo.77 Sua tessitura é de uma nona. Diferente da VII cansó, esta pérola medieval é bastante comedida nas ornamentações: apresenta somente dois discretos melismas nos fins da primeira e da penúltima frase, um pressus maior78 e um pes subpunctis, respectivamente.79 Porém, não menos comedida é sua tessitura: na primeira frase ela atinge quase a oitava.

Como a cançó VII, Tant m’abelis contrasta também na escolha da escala: o sétimo modo demonstra a intenção de refletir um ethos jovial80, leve, sem pretensões, de um entusiasmo natural.81 Parece extrapolar o sistema gregoriano, pois ainda que utilizando a escala modal, não lança mão da finalis na conclusão e não constrói internamente sua melodia com os critérios modais descritos na cançó anterior.

Desenrola-se de maneira silábica, por graus conjuntos e terças, em estrutura frasal de sete frases de tipo ABCDEC’D’. As frases de A a D têm terminações alternadas – a primeira descendente, a segunda ascendente, e assim sucessivamente. É possível construir um paralelo entre as frases A e C, e B e D: nota-se um contorno melódico similar entre estes pares de frase. Em D, temos uma cadência ascendente muito mais forte e clara do que a do final da obra, de tipo suspensivo. A frase E é a única com um contorno inteiramente distinto das demais: seu movimento começa no agudo, desloca-se ao grave e retorna ao agudo.

Seu perfil melódico:

Perfil melódico 8
Tant m’abelis joyas et amor e chans (“Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto”)

 

Tant m’abelis não se assemelha a monodias gregorianas típicas, nem no aspecto modal, nem nos aspectos ornamental e estrutural. É simples e bela, um rico exemplar da criatividade profana de Berenguer de Palou.

V. A Música de Berenguer de Palou

Imagem 7

 

Bérengier de Palazol. BnF, Ms. 854, folio 140r. Os distintos manuscritos medievais que recolhem as vidas dos trovadores têm praticamente a mesma estrutura: a narrativa textual da vida e uma pequena iluminura que representa fisicamente o poeta. As variações ocorrem justamente em suas iluminuras. Na do Ms. 854, em um altivo cavalo negro, de cota de malha até os joelhos e em uma sela verde (como eram coloridos os cavaleiros medievais!), Palazol porta um elmo vermelho, lança na mão esquerda e escudo vermelho com brasão (no Ms 12473, Berenguer está desarmado).

Traduzidas as letras das cançons, transcritas as melodias, com seus perfis melódicos e análises musicais, antes de abordarmos as características da musicalidade de nosso trovador, propomos sua audição. Indicamos a proposta interpretativa do grupo Capella de Ministrers (1987- )82, em seu álbum Amors e Cansó (2008). Mas alertamos: cada músico (ou grupo musical) interpreta o repertório medieval de modo distinto, devido às suas características rítmicas (evidenciadas em III.1). Isso porque é impossível dissociar inteiramente a compreensão auditiva das cançons de Bereguer de Palou da “interferência” do intérprete.

É também impossível compreender plenamente a musicalidade do repertório de um compositor de mais de oitocentos anos sem uma experiência auditiva, mesmo que em uma proposta de reconstrução sonora. Por isso, para uma vivência estética desse passado sonoro reconstruído, somos inevitável e ambíguamente postos entre uma exigência e um paradoxo anacrônico.

compreensão musical da obra de um trovador medieval passa pela comparação auditiva dos elementos constitutivos de suas cançons. Suas características comuns, específicas, distintas das características gerais dos outros compositores deste tipo de repertório, refletem uma assinatura, a personalidade musical do compositor, sua individualidade. No repertório de Berenguer de Palou (como no de todos os compositores medievais), reiteramos, é necessário considerar a ativa interferência do intérprete.

A linguagem musical de Berenguer é nova.83 Sua poesia, doce e agradável, aliada às suas melodias, de “caráter popular”, quase folclóricas, transmitem frescor e juventude84 – por exemplo, uma de suas melodias (Aital dona cum ieu sai) eternizou-se no folclore catalão quando Raimon de Miraval (1191-1229), ao utilizar o contrafactum85, aplicou-a (com intenções políticas) em um novo texto, dirigido ao monarca catalão, Pedro II de Aragão, o Católico (1178-1213).86 Este tipo de intervenção musical era comum na música trovadoresca. Entre os jograis, é provável que acontecessem grandes disputati de inventividade textual, com a mesma melodia como base (é o que conhecemos na cultura brasileira como repentes).

Trovador, do latim trovare: aquele que compõe tropos87, técnica de memorização de longos melismas que consistia em adaptar textos silábicos, nota a nota, destes melismas.88 Em alguns tipos de tropos litúrgicos, a melodia era pré-existente, assim como na fase inicial do movimento trovadoresco. A arte consistia em adaptar novos textos, com a métrica idêntica, às melodias presentes. Mas os trovadores logo dariam um passo adiante: compor melodias, algumas belas e ricas, e assim definitivamente distanciarem a música profana do repertório eclesiástico (origem de quase toda a música medieval).

Berenguer de Palou é um notável exemplo desta inventividade métrico-melódica: de suas oito cansós cujas melodias sobreviveram, apenas duas têm dez frases melódicas, outras duas, sete, e as outras quatro, apesar de terem oito frases melódicas (muitas para uma mesma medida), têm escala, ou estrutura melódico-frasal, ou métrica, completamente distintas.

O quadro abaixo resume a estrutura métrico-melódica da obra de Palou.

Cançó

Nº de frases

Estrutura melódico-frasal

De la gensor qu’om vey

7

ABABA’CD

Tant m’abelis

7

ABCDEC’D’

Bona Dona

8

ABB’CDEE’D

Totz temoros

8

ABCDEFGH

Dona, la genser qu’om veya

8

ABA’CB’A’’C’D

Aital Dona

8

ABABCDEF

Ab la fresca clardat

10

ABCDD’C’B’EC’’F

Dona, si totz temps

10

ABCDB’C’D’B’C’’E

Na coluna Estrutura melódico-frasal, as letras representam frases melódicas (quando repetem, indicam que a frase melódica repete). O apóstrofo da letra representa uma repetição melódico-frasal variada (melodia parecida, mas não idêntica). Notem que a cançó com mais repetições frasais, ainda que variadas, é Dona, la genser qu’om veya – oito frases com, pelo menos, quatro frases melódicas diferentes que se repetem, ora de maneira idêntica, ora de modo variado.
Já a cançó Totz temoros e doptans tem oito frases melódicas diferentes! O mais interessante é que uma primeira audição engana a ponto de pensarmos que existem várias frases iguais ou parecidas. Existe um elã que as vincula com pequenos motivos melódicos iguais e que funcionam como uma pergunta (tensão) seguida de frases-resposta (que resolvem a tensão).

Quanto à construção melódico-frasal, a Capella de Ministrers adaptou a cançó Ab la fresca clardat com a “interferência” na escala musical: ao invés da sonoridade jovial e leve do modo “original”, a interpretação da Capella proporcionou um caráter mais austero e solene à cançó. A intervenção foi baseada na troca da clave e das notas finais da melodia.89

Ainda a respeito da “participação” do intérprete, o ponto crucial em que todos os grupos de música antiga são obrigados a tomar uma decisão é o ritmo do texto. Como as transcrições são notadas em neumas, surgiram várias teorias que propunham soluções para o ritmo. Uma delas é teoria dos modos rítmicos: qualquer poesia trovadoresca se encaixaria, em seus versos e acentos, em modos rítmicos.90

Era possível também que esses modos se mesclassem conforme a necessidade. Musicólogos defenderam que a métrica pudesse não ser ternária (subdivisão dos tempos em três, padrão para a polifonia da época), mas binária. Com tantas possibilidades, as três publicações das transcrições das cançons de Berenguer de Palou são muito distintas.91

Ainda que não tenha sido nossa intenção propor uma nova transcrição rítmica do repertório de Berenguer, não nos furtaremos em sugerir a métrica musical e o modo rítmico de cada uma das cançons, conforme a interpretação da Capella de Ministrers, para prosseguir em nossa análise da musicalidade de nosso artista.

Cansó

Nº de frases

Métrica e modo rítmico

De la gensor qu’om vey

7

binária - dáctilo

Tant m’abelis

7

binária - dáctilo

Bona Dona

8

ternária - dáctilo

Totz temoros

8

ternária - troqueu anacrústico

Dona, la genser qu’om veya

8

ternária - troqueu

Aital Dona

8

binária - dáctilo

Ab la fresca clardat

10

ternária - troqueu

Dona, si totz temps

10

ternária – tríbraco (sexto modo)

Segundo o quadro apresentado, três cançons foram interpretadas com métrica binária e cinco com métrica ternária. Essa concepção métrica nos conduz novamente ao espírito criativo de Palou: era incomum o uso da métrica binária à época.

Quanto aos modos rítmicos, novamente impera a variedade: três dáctilos em métrica binária e um em ternária (separação necessária porque as células rítmicas são muito diferentes), três troqueus, um troqueu anacrústico (com a sílaba átona iniciada em tempo fraco) e um tríbraco.92 A presença de muitos troqueus se explica: trata-se do modo rítmico mais difundido naquele período. Nossa surpresa é que Berenguer não o utilizou nem na metade de suas cançons (já que o troqueu anacrústico é distinto, e não foi considerado nesta contagem).

Criatividade, ecletismo, riqueza e frescor melódico, riqueza e variedade rítmica definem a musicalidade de Berenguer de Palou.

VI. A Poesia de Berenguer de Palou

Imagens 8 e 9

 

 

 

 

 

 

Os perigos do amor. Lo Breviari d’Amour (sécs. XIII-XIV), de Matfré Ermengaud de Bèziers (†1322). Manuscrito N (Lérida), folio 206 (detalhes). Biblioteca Nacional da Rússia. Na primeira cena (imagem 8), um texto explica os motivos demoníacos das cortes: “Os diabos fazem os amantes realizarem cortes e vanglórias por amor às suas damas”. Em uma longa mesa, sete personagens (dois reis, três damas e dois cavaleiros) conversam animadamente. A suave inclinação dos corpos e a sugestiva postura das mãos e dos braços sugerem a sensualidade do ambiente cortesão. Nas duas extremidades, dois enormes demônios incitam espiritualmente os convivas com instrumentos musicais. Na outra cena (imagem 9), suplicante, um cavaleiro se ajoelha diante de sua dama e pede seu amor. O texto diz: “Os diabos fazem isso para as damas e seus amantes”. Do mesmo modo, dois demônios flanqueiam o casal e o incitam ao Amor. As mãos, desproporcionais, indicam a intensa troca de palavras.

VI.1. O corpo feminino, fascinação medieval

Muito mais do que os cabelos e as mãos como costumeiramente os historiadores destacam93, é sobretudo a fascinação pelo corpo da amada o tema que salta à vista ao lermos as poesias das cançons de Berenguer de Palou. É como se aquela cultura mediterrânea, feudal, ainda embrutecida por séculos de devastações, de invasões – e porque não o dizer, barbarizações – tivesse descoberto a devoção poética aos corpos femininos (não sabemos de nada do gênero em séculos, se é que houve).94 Definamos em um aforismo: para aqueles compositores, o prazer de cortejar uma mulher era a arte sonora da vida.95

Divina, diva, nas letras ela sempre tem um belo semblante e um belo corpo – “...gracioso, apetitoso, branco e delicado” (I, 6, 41-42) – motivos do desejo do trovador de com ela se deitar e de definhar caso não a veja!

Seu corpo é arrebatador:

...quando vejo esta beleza, este belo corpo branco e moldado, arredondado, esbelto e delgado, o mais gracioso que se pode ver e melhor esculpido, meu coração muda tanto que de vós não me separaria por nenhuma mensagem de amor.” (III, 3, 23-30).

Por isso, temeroso, trêmulo, languidescido, o poeta se entrega. Necessita do corpo dela como um remédio, um bálsamo para ter restaurada a suave loucura (V, 5, 49-50) do prazer de seu amor. E que Deus lhe mostre a hora de lhe poder retribuir e dar prazer a ela (VI, 6, 41-42).

As feições da amada são nobres e amáveis; seu corpo, agradável e conveniente (VII, 1, 3-4) – na medida certa, bem proporcionado – mas também suave (VIII, 2, 12). Quanta tensão erótica em um delicado conceito aplicado a um corpo: suave! Pois suave é o que proporciona um prazer brando e delicado aos sentidos, certa doçura, afetuosidade, descanso. E sugere, acrescentemos, movimento, ritmo envolvente, graça. Como a seda para o tato, o mel para o gosto, o bálsamo para o olfato, a música para a audição e o corpo (dela) para a visão.96

Como devemos entender tamanho fascínio poético pelo corpo de uma mulher?

De fato, a partir da década de 1120 (período justamente da vida de nosso trovador) houve certo refluxo da Reforma Gregoriana (c. 1050-1080), movimento levado a cabo pela Igreja e de cunho essencialmente moral. Alguns historiadores relacionaram essa remodelação do corpo, da figura humana, a isso.97 Talvez seja uma interpretação exagerada. O fato é que, a partir desse período, feudal, as formas corporais foram cada vez mais representadas na arte em padrões estéticos que sugerissem movimento, curvas, e que agradassem aos olhos: corpos flexíveis, esbeltos, sedutores (Berenguer dirá suaves!), e que passaram a expressar pouco a pouco, uma dignidade laica da figura humana.

Por isso, as curvas femininas foram expressas em melodia, em poesia amorosa. É possível que o encanto de Berenguer de Palou pelo corpo de sua amada (de sua amiga – amante, na linguagem cortês) expresse musicalmente essa descoberta profana da carne.

Não se pode perder de vista que a exaltação do corpo da amada por parte do trovador era acompanhada por suas virtudes. Ela era “a mais perfeita” e estava “sempre acima das melhores” (VII, II, 9-10). Mais: como um Maquiavel (1469-1527) avant la lettre, Berenguer a define como “amada e temida” (VII, III, 17), aplicação ao universo feminino do que seria associado pelo filósofo italiano, mais tarde, à virtù principesca.98

Isso só reforça o que consideramos a respeito da autoridade exercida pela dama sobre o trovador, que se torna seu subjugado tanto pela sedução corporal quanto pela imposição de tais qualidades. Ela se deixa cortejar sem, no entanto, sucumbir ao desejo. É fiel ao marido e não corresponde às investidas do trovador. É, pois, ela quem está no controle. Seu corpo, embora profanamente descoberto pelo eu-lírico, foi dignificado por suas belas formas e nobres virtudes.

VI.2. O amor, causa do deleite do corpo

Essa submissão, essa magia do corpo feminino tinha uma causa: o amor cortês. Suas regras, expostas no Tratado do Amor Cortês (c. 1186-1190)99, de André Capelão, foram bem definidas: o amor, uma paixão, só pode existir entre pessoas do sexo oposto; só sobrevive até os cinquenta (nas mulheres) e aos sessenta (nos homens)100; nunca floresce entre rústicos (camponeses), nem no casamento (que costuma ser um acordo entre famílias).

O amor surge da liberdade de escolha. Por isso existe o amor conjugal e o verdadeiro amor, adúltero, dos amantes.101 Exige a fidelidade do homem, que é, via de regra, mais jovem e solteiro (e sua amada, mais velha e casada). Para durar, o amante deve ser discreto, andar bem vestido para agradá-la102, fazer juras de amor (a música trovadoresca é o melhor instrumento para isso), ser fiel à amada e só fazer o que ela determinar (“não excedas o desejo de tua amante”103).

Ao contrário do que se costuma pensar, o amor cortês não era única e exclusivamente platônico. Não precisamos sequer fugir do âmbito documental das próprias canções dos trovadores e recordar o tórrido amor entre o professor Abelardo (1079-1142) e sua aluna Heloísa (c. 1090-1164) – quando “...os beijos eram muito mais numerosos do que as sentenças”, e “...as mãos dirigiam-se mais frequentemente aos seios do que aos livros” e, se ainda havia algo novo a ser descoberto pelo professor, não eram mais “...os segredos da Filosofia, mas as canções amorosas” que compôs para ela.104

Basta nos referirmos ao próprio universo textual do tema, e citarmos os casos adúlteros descritos por Maria de França (fl. 1160-1215) em seus Lais (contos em versos octossilábicos do século XII).105 A autora afirma ter escutado de terceiros essas histórias amorosas, e que as escreveu para registrá-las para a posteridade com a intenção de que elas servissem como uma instrução moral.106

Ou então lembramos dos Tribunais do Amor, curiosos encontros só de damas (registrados no Tratado do Amor Cortês) em que elas conversavam sobre as posturas de seus amantes para decidirem se eles estavam agindo de acordo com as regras sociais exigidas pelo amor cortês (discrição, generosidade, fidelidade à amante casada, etc.). Caso não estivessem, seriam banidos das festas que elas organizavam em suas respectivas cortes.107

Berenguer de Palou é mais elegante. O verbo amar está presente em todas as suas cançons. Ela é amada, ele a ama. Apesar de beirar o erotismo com sua devoção ao corpo dela, o trovador não ultrapassa o determinado pelas convenções poéticas de então. Não é vulgar. Afinal, caso o fosse, não seria cortês.

Conclusão

Não se vive sem água e sem música. Não se vive sem isso.
Quincy Jones (1933-)108

Imagem 10

Banquete com músicos. Bible moralisée (Paris, c. 1240). Papel velino, Ms Harley 1527, folio 36v (detalhe). British Library, Londres, Reino Unido. Em seu Livro da Contemplação (c. 1273-1274) o filósofo Ramon Llull (1232-1316) lamenta que os “malditos” trovadores e jograis – esses que “cantam putarias”, louvam coisas indignas e compõem versos sobre a luxúria e as vaidades desse mundo – “são escutados, solicitados, chamados, desejados e amados”!109 No detalhe dessa iluminura do folio 36v da Bible moralisée, abaixo da mesa principal do banquete, em que um homem bebe, dois compartilham uma taça e um casal conversa animadamente (chegam a tocar as mãos!), quatro músicos divertem os convivas. Tocam (da esquerda para a direita): 1) Rebeca; 2) Viela de Roda; 3) Harpa portátil (também chamada de harpa alexandrina ou harpa gótica) e 4) Saltério (nome oriundo de Psalterium – instrumento usado para recitar os Salmos). Reparem que, enquanto os três primeiros tocam (e de modo muito concentrado), o último músico ergue a mão direita e se dirige aos convidados. Eles são os “malditos” trovadores lulianos, amados e solicitados pelas cortes principescas difusoras do amor cortês.

O ambiente social no qual os trovadores medievais desenvolveram suas melodias foi o cortesão. Reunidos naquela miríade de cortes espalhadas pelo sul da Europa, os feudais criaram uma alegre sociabilidade, propícia ao relaxamento, à festa110, à comida111, ao jogo. Ao riso.112 À Música. Afrouxadas as convenções, os homens passaram a olhar as mulheres, as damas, com olhares sedutores, suaves, a ponto de elevá-las a patamares desconhecidos e se colocarem sob suas determinações. Sob suas ordens. A ponto de se apaixonarem (imagem 5)!

Essas paixões prosperaram em subterfúgios adúlteros, em aventuras113 incitadas pelas letras das músicas que eles aprenderam a compor. Por sua vez, elas se encantaram e deram vazão a esse perigoso e malicioso jogo chamado sedução. Por isso, as imagens daqueles encontros sociais têm tantos demônios a incitá-los – como as selecionadas do Breviari d’Amour (sécs. XIII-XIV, imagens 8 e 9) – e tantos músicos – como no Codex Manesse (c. 1305-1340, imagem 4) e na Bible moralisée (c. 1240, imagem 10). Foram eles, os músicos, os veículos transmissores das pulsões sexuais pelas damas refreadas e direcionadas para os sons e para a poesia do amor cortês.

Sua música, original, cheia de doçura e encanto, foi o ornamento do amor. Sua poesia, insinuante e misteriosa, sublime e carnal, a pimenta do erotismo sem o nome da endereçada. Essa revolução dos costumes, dos jogos sociais, tornou a mulher o centro das atenções. Com seu caloroso acolhimento, elas os ensinaram a terem auto-controle, disciplina corporal, a sublimarem seu desejo na Música. E eles aprenderam a cortejá-las. Berenguer de Palou representa o refinado tipo cultural de seu grupo, o dos trovadores. Aprendizes do amor, eles fixaram no Ocidente a imagem do músico sedutor, corruptor, fascinador. Criador de ambientes alegres, festivos. Por isso, a crítica dos moralistas, assustados com o avanço das paixões carnais fora do casamento.

E para oferecer um vivo contraponto moral ao amor cortês das cançons de Berenguer de Palou, trouxemos para a nossa Conclusão as diatribes do filósofo Ramon Llull (1232-1316) contra os jograis e os trovadores, ele próprio um ex-trovador, libertino confesso, convertido ao Cristianismo (nos anos 1263-1274114) e, após isso, um jogral de livros115, voltado para Cristo e para a Virgem.

O texto se encontra em um capítulo do Livro da Contemplação (c. 1273-1274), uma das obras mais imponentes e impressionantes da literatura universal, monumento ao pensamento psicológico, sociológico, filosófico e teológico da literatura catalã e europeia.116 O filósofo critica a deturpação da Música provocada pelos jograis em relação ao seu sentido original, religioso; ao invés dos jograis, em seus cantos, enaltecerem as virtudes de Deus, eles idealizam os pecados dos homens, que são basicamente as guerras e as discórdias entre príncipes e as traições e separações que eles provocam nos casais unidos por Deus.

Os homens se ensoberbecem, as damas se separam de seus maridos e as donzelas são corrompidas e sujas, isto é, perdem suas virgindades para eles (7). Essa destruição da moral atinge tanto o meio privado, como os enlaces matrimoniais, quanto o público, já que o filósofo destaca a fragmentação de impérios, reinados e condados (9). Por isso, é uma jograria da loucura, voltada para o enriquecimento material dos trovadores às custas da desagregação do mundo (14)!

Essas virulentas críticas oferecem um excelente contraponto textual à poesia de Berenguer de Palou. Por exemplo, na cançó VIII, o poeta louva seu próprio ato de compor e utiliza essa metalinguagem117 para apresentar um ofício que, embora mundano, também poderia ser elevado.118Ao que parece, o evidente neoplatonismo de Llull que, a todo momento, opõe-à perversa jograria, é suavizado pelo erotismo algo poético e delicado de Berenguer. No melhor espírito feudal de sua época, o trovador não percebe contradições nem maldade em seu cantar que, para ele, é tão nobre quanto o corpo e o amor de sua amada.

***

Filho de seu tempo, Berenguer de Palou expressou todas as qualidades corteses em suas cançons que chegaram até nós: devoção, entrega, paixão. Submissão à amada. Idealizada e ao mesmo tempo desejada, ela passou ao protagonismo das relações sociais nas sociabilidades nobiliárquicas daqueles ambientes feudais espalhados pelo sul da Europa. O erotismo da poesia laudatória do corpo feminino expresso pelo amor cortês naquelas maviosas melodias profanas ultrapassou todos os limites da moral cristã apregoado pelo Cristianismo.

Foi uma espécie de afrouxamento das amarras sociais, revolução sonora e profana dos costumes. Daí o tom das denúncias do filósofo catalão: de fato, a poesia de Berenguer de Palou confirma a prosa de Ramon Llull. Dá motivos à sua verve moralizante. 

Em que pesem as severas restrições morais de Llull aos trovadores, as cançons de Berenguer de Palou contribuíram belamente para a valorização da Música como elemento chave para a melhor compreensão histórica da sociedade medieval, tão distante da nossa e culturalmente tão próxima. Parte de nosso mundo onírico sonoro, a Música é parte integrante da existência humana. Foi uma expressão cultural dos medievais. A partir de então, viver sem ela passou a ser impensável.

 

***

 

Apêndice documental

O Livro da Contemplação (c. 1273-1274)119

Ramon Llull (1232-1316)

Volume Segundo, Livro Terceiro
Distinção XXIII – Que trata de como ver
Capítulo CXVIII – Como se proteger do que fazem os jograis120

 

1. Ah, Deus, Pai celestial no qual está toda a santidade, toda a senhoria, toda a glória e toda a bênção! Senhor, a arte da jograria começou em Vos louvar e em Vos bendizer. Por isso, foram descobertos instrumentos, rodopios121, lais122 e sons novos com os quais o homem se alegrou em Vós.

2. Mas conforme vemos agora, Senhor, em nosso tempo toda a arte da jograria mudou, pois os homens que aprendem a soar instrumentos, a bailar e a compor, não cantam, não soam os instrumentos, nem fazem versos e canções a não ser sobre a luxúria e as vaidades desse mundo.

3. Aqueles, Senhor, que soam os instrumentos, que cantam putarias e que louvam, com seu canto, coisas indignas de serem louvadas, são malditos, porque alteram a arte da jograria da maneira na qual essa arte foi descoberta no princípio. E aqueles, Senhor, que com seus instrumentos, com seus rodopios e com seus lais se alegram e se divertem em Vosso louvor, em Vosso amor e em Vossa bondade, são bem-aventurados, pois mantêm a arte de acordo com o qual ela foi principiada.

4. Paternidade, filiação e processão123 sejam conhecidas por todos os tempos à Vossa santa e simples unidade, Senhor Deus, pois vemos, Senhor, os jograis e trovadores serem amados e honrados porque cantam, bailam e compõem versos e canções, danças e baladas. E graças à beleza de seus bailes, de suas palavras, das razões novas que descobrem e de seus bons sons, são escutados, solicitados, chamados, desejados e amados.

5. Se os homens, Senhor, inteirassem-se do mal que os jograis e os trovadores causam, com seus cantares e seus instrumentos que fazem desafios com vis obras e de pouco proveito, não seriam, os jograis e os trovadores, tão bem acolhidos nem tão bem amparados como são.

6. Graças aos instrumentos que os jograis soam, às novas razões que descobrem e cantam, aos novos bailes que fazem e às palavras que dizem, é esquecida, Senhor, a Vossa bondade, a grande glória e a grande pena que existem no outro século.124 E graças ao que os jograis fazem, Senhor, são recordadas todas as obras de pecado e são amadas todas as maneiras pelas quais se é desobediente a seu Senhor e a seu Salvador.

7. Eternal Senhor, no qual terminam todas as glórias, todas as nobrezas e todas as virtudes! Vemos que pelo que os jograis fazem e dizem, acontecem disputas, guerras e discórdias entre príncipes, cavaleiros e o povo. Por causa dos jograis, as senhoras são separadas de seus maridos, as donzelas corrompidas e sujas, e os homens se tornam altivos e orgulhosos, mal-agradecidos e desleais.

8. Vemos que os jograis, Senhor, soam seus instrumentos à noite pelas praças e caminhos para moverem o coração das fêmeas à putaria, à falsidade e à traição aos seus maridos. Não basta aos jograis, Senhor, o dia para praticarem o mal e para terem relações amorosas, pois ainda desejam o mal à noite, quando têm todas as oportunidades e não cessam de fazer o mal.

9. Vemos que os malvados jograis, Senhor, são maliciosos e provocam intrigas entre um príncipe e outro, e entre um barão e outro. E pela má fama que os jograis semeiam e pelo ódio e má vontade que engendram entre os altos barões, vemos destruírem impérios e reinados, condados, terras, vilas e castelos. Assim, Senhor, há homens que fazem tanto mal neste mundo quanto os jograis?

10. Ah, Senhor Deus, que cuida, salva e beneficia Vossos povos! Vemos que os jograis adquiriram a arte e a maneira de mentir, pois aquelas coisas indignas de serem louvadas e que deveriam ser aviltadas e menosprezadas, eles dizem que são boas, verdadeiras e nobres. E as coisas que são verdadeiras e dignas de serem louvadas, são pelos jograis repreendidas e escarnecidas, amaldiçoadas e menosprezadas.

11. Caso haja algum homem, Senhor, que seja um grande luxurioso, um grande escarnecedor, um grande gastador e cheio de vícios e pecados, será louvado, apreciado e amado pelos jograis. E os homens verdadeiros, honestos, sábios e bem acostumados serão desamados e depreciados pelos jograis.

12. Toda ocasião para os jograis mentirem, repreenderem o que deveriam louvar e louvarem o que deveriam repreender, Senhor, acontece por causa dos malvados príncipes e dos néscios ricos-homens que amam o que é falso e odeiam o que é verdadeiro. Graças a esses maus modos que os jograis aprendem com os príncipes e com os grandes senhores é que eles aprendem a mentir e a se comportar da maneira que os príncipes e os grandes homens amam e desejam.

13. Força e virtude, santidade e grandeza, bênção e nobreza sejam conhecidas em Vós, Senhor Deus, pois muito desejaria ver os verdadeiros jograis louvarem o que devem louvar e blasfemarem o que deve ser blasfemado. E mais, Senhor: desejaria que nenhum homem soubesse compor, cantar ou soar qualquer instrumento caso não fosse servidor e jogral do verdadeiro amor e do verdadeiro valor, e que fosse súdito e amante da verdade.

14. Todos os dias, Senhor, vemos jograis andarem como loucos, cometerem insanidades e estarem certos de conseguirem dinheiro junto a néscios. Assim, como para juntar dinheiro os homens tomam o hábito e a jograria da loucura, tenho grande maravilha como, para amar-Vos, louvar-Vos e para receber glória e bênção de Vós, não haja muitos homens a irem como loucos às cortes dos reis e dos altos barões e repreenderem as faltas cometidas contra os vossos mandamentos.

15. Maravilho-me muito, Senhor, como nesse mundo, vil e mesquinho, efêmero e pobre de qualquer valor, há mais jograis e mais louvadores que Vós, que sois um Senhor perfeito, eterno e completo de todos os bens. Pois quem olha os jograis desse mundo verá que todas as terras estão cheias deles, já que cada um é jogral para louvar a si mesmo, mas os Vossos jograis são tão poucos que mal se veem entre os outros.

16. Senhor forte acima de todas as forças, Senhor poderoso sobre todos os poderes. Como há nesse mundo tantos jograis, já que os príncipes e os ricos-homens dão grandes dons aos homens que os louvam! Assim, Senhor, como Vós sois um Senhor tão bom doador e como Vós dais tão grandes e tão nobres dons, como pode ser que Vós não tenhais mais louvadores que os vangloriosos homens desse mundo? E como pode ser que nenhum homem se gabe nem se vanglorie de ser Vosso jogral ou devedor, já que orna e pinta suas palavras para ser louvado pelas gentes? Pois esses, de acordo com a verdade, é mais jogral de si mesmo do que de Vós.

17. Se todos os jograis que são louvadores dos príncipes, dos homens mundanos, das vaidades desse mundo e de si mesmos, e todos os jograis hipócritas que louvam a Vós para serem louvados pelas gentes e para que possam desfrutar os delitos temporais, se todos esses jograis, Senhor, fossem separados, poucos seriam aqueles que Vos louvam e Vos bendizem com a verdadeira intenção e com o amor verdadeiro.

18. Ainda, Senhor, que os verdadeiros jograis que louvam a Vós sejam poucos comparados aos outros jograis mentirosos, valem muito mais esses Vossos louvadores e Vossos jograis do que os outros, mesmo que sejam muitos, pois mais vale, Senhor, o louvor de um jogral verdadeiro do que todos os louvores ditos pelos jograis mentirosos, pois quem mente ao louvar, não louva, mas deslouva, nem honra aquele que louva, mas o desonra.

19. Oh, Vós, Senhor Deus verdadeiro, que ilumina os corações dos fiéis cristãos de verdadeira fé e de boas obras! Desejaria ver, Senhor, jograis que fossem pelas praças e pelas cortes dos príncipes e dos altos barões a dizer a propriedade que há nos dois movimentos e nas duas intenções125, a propriedade e a natureza que existem nos cinco sentidos corporais e nos cinco espirituais126, e que dissessem todas as propriedades que existem nas cinco potências da alma.127

20. Se tais jograis, Senhor, fossem pelo mundo, seriam os verdadeiros jograis, pois louvariam o que deve ser louvado e repreenderiam o que deve ser repreendido. Mas como as gentes não desejam ser repreendidas por suas faltas e preferem ser louvadas por seus graves erros, são poucos os jograis de verdade e muitos os mentirosos.

21. Aqueles que desejam ser verdadeiros jograis e Vos louvar, Vos amar e Vos servir, que venham, Senhor, e percorram essa Arte da contemplação, pois nela encontrarão muitas novas razões e muitas belas palavras com as quais poderão Vos louvar, Vos amar e Vos servir, pois toda essa obra, Senhor, é principiada e feita para dar louvor de Vós e para se enamorar por Vós e para Vos honrar.

22. Senhor verdadeiro Deus, que encarnou em Nossa Senhora Santa Maria para recriar a linhagem humana! Vemos, Senhor, que os jograis bailam, cantam e soam instrumentos diante dos homens para deixá-los alegres e prazerosos com seu cantar, com seu bailar e com os instrumentos que soam e, depois de alegrá-los, vemos que os jograis pedem e desejam coisas das gentes. Assim, bendito sejais Vós, Senhor, que quis ser homem e desejou ser choroso, considerativo, angustiado, atormentado e morto para nos alegrar na glória do Paraíso.

23. Se os jograis, Senhor, pela arte e pela sutileza que têm, sabem concordar as notas, o bailado, os rodopios e os lais que fazem nos instrumentos com as notas que imaginam no coração, como pode essa maravilha, Senhor, que eles não saibam abrir seus corações para Vos louvar e saber que eles não devem louvar nada de onde o mal provêm? E como eles podem não saber que são obrigados a Vos louvar, de onde todos os bens provêm?

24. Muitos néscios, Senhor, dão aos jograis melhores dons que eles próprios merecem ganhar e os jograis receber, e depois que os jograis recebem aqueles dons, os homens que mais consideram aqueles néscios idiotas são os próprios jograis que receberam aqueles dons.

25. Divinal Senhor, no qual se unem todos os amores, todas as cogitações e todos os pensamentos que são bons! Vemos que os jograis mentirosos e desbocados, Senhor, se vestem de vestes reais, e comem diante dos príncipes as nobres comidas que os príncipes comem. Mas os miseráveis pobres que, por amor de Vós pedem e desejam ter as comidas que ficam para os jograis, aqueles, Senhor, vemos que estão fora dos palácios, vestidos com panos vis e rasgados e mortos de fome, e não há quem abra as portas, nem quem bela cara faça, nem dê boa resposta.

26. Aos jograis, Senhor, vemos que são dados cavalos e palafréns128, roupas de prata e nobres vestimentas, dinheiros de ouro e de prata, e outros ricos dons. Mas aos miseráveis pobres que todos os dias clamam e imploram, Senhor, vemos que são dados dons vis, pois com uma mealla129, um pedaço de pão ou uma veste rasgada pensam satisfazer sua grande pobreza.

27. Vemos, Senhor, que quando os jograis ganham, logo deixam de ganhar grandes dons e, além de não agradecerem a Vós por tudo o que ganham, tudo gastam e dilapidam. Mas não é assim, Senhor, com os homens pobres que mendigam de porta em porta pois, apesar de ganharem tão pouco, além de não deixarem de agradecer a Vós, guardam o que sobra para o tempo da necessidade, quando não encontram quem deles tenha dó.130

28. Verdadeiro Senhor, que a Vós seja dada toda a glória e todo o louvor por todos os tempos, pois em todo o mundo não vejo nenhuma arte tão vil quanto a arte da jograria, e isso acontece porque os jograis são os homens mais nojentos, os mais inoportunos, os mais mentirosos e os mais repreensíveis que existem em todo o mundo. E mais, Senhor: a arte da jograria é a mais maldosa dentre todas as maldades e todas as vilanias, porque ninguém vive de tanto suplício das gentes quanto eles, nem negam tanto quanto a eles. E dizem mais “não” aos jograis que aos outros homens porque ninguém quer tanto quanto eles.

29. A arte da jograria é tão má, Senhor, porque eles louvam os homens com mentiras, e se os homens não lhes dão nem lhes satisfazem, dizem mal deles, mentindo. Assim, como os homens mundanos amam a vanglória, dão aos jograis para que mal não digam, mas bem, o qual bem não existe naqueles que desejam ser louvados.

30. Como esse Vosso servidor e Vosso súdito foi, Senhor, por muito tempo um falso louvador e um mentiroso maledicente, e Vós me haveis olhado com os Vossos piedosos olhos cheios de misericórdia, daqui em diante propõe, Senhor, ser um verdadeiro jogral e dar o verdadeiro louvor de seu Senhor Deus.

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Notas

  • 1. FRANKENSTEIN, Alfred. William Sidney Mount. New York: Abrams, 1975; FERBER, Linda S. The Hudson River School: Nature and the American Vision. New York: New-York Historical Society, 2009.
  • 2. Este estudo foi desenvolvido sob a égide do Institut Superior d’Investigació Cooperativa IVITRA (GVA, ref. ISIC/012/042) e no marco dos seguintes projetos de investigação: 1) FFI2015-69694-P (MINECO/FEDER) do Ministerio de Economia y Competitividad del Gobierno de España; 2) Generalitat Valenciana (PROMETEO/2009/042 e PROMETEOII/2014/018 – Programa PROMETEU para Grups d’Investigació en I+D d'Excel∙lència); 3) Institut d’Estudis Catalans (PT 2012-S04-MARTINES, IEC1-15X, PR2015-S04-MARTINES) e 4) Universitat d’Alacant (VIGROB-125, e Grup d’Investigació en Tecnologia Educativa en Història de la Cultura, Diacronia lingüística i Traducció [Ref. GITE-09009-UA]).
  • 3. GAY, Peter. O coração desvelado. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 21.
  • 4. RUIZ-DOMÈNEC, José Enrique. Europa. Las claves de su historia. Barcelona: RBA Libros, S. A., 2012.
  • 5. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, tomo II: complementos (trad.: Eduardo Ribeiro da Fonseca). Curitiba: Ed. UFPR, 2014, Livro III, cap. XXXIX (“Sobre a Metafísica da Música”), p. 130.
  • 6. A obra clássica que trata do tema é HASKINS, Charles Homer. The Renaissance of the Twelfth Century. Cambridge: Harvard University Press, 1927. Ver também BAUER, Susan Wise. The History of the Renaissance World: From the Rediscovery of Aristotle to the Conquest of Constantinople. New York: W. W. Norton & Company, 2013. O principal fruto desse renascimento foi, sem dúvida, a criação das universidades no séc. XIII. Para isso, HASKINS, Charles Homer. A Ascensão das Universidades. Santa Catarina: Livraria Danúbio Editora, 2015.
  • 7. Já nos debruçamos sobre o tema do amor cortês. Ver COUTINHO, Priscilla Lauret, e COSTA, Ricardo da. “Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média”. In: GUGLIELMI, Nilda (dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Colección Fuentes y Estudios Medievales 12. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales), Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), diciembre de 2003, p. 4-28.
  • 8. GIMENO BETÍ, Lluís. Aproximació lingüística als inicis de la llengua catalana: segles VIII al XIII. Castelló de la Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, D. L., 2005, p. 114.
  • 9. LE GOFF, Jacques. “O trovador, o troveiro”. In: Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 279-283.
  • 10. O documento que trata dessa anexação territorial ao Império Romano é o Commentāriī dē Bellō Gallicō (ou Bellum Gallicum), escrito por Júlio César durante a campanha (58-50 a. C.). Há também um ótimo artigo sobre a Gália Narbonense: GARCÍA FERNÁNDEZ, Estela. II. “La Gália Narbonense. El desarrollo de la condición latina provincial”. In: Gerión. Anejos V. 2001, p. 31-71.
  • 11. LOT, Ferdinand. O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 251-257.
  • 12. Medieval Sourcebook: Gregory of Tours (539-594): History of the Franks: Books I-X.
  • 13. EINHARD (770-840). Vida de Carlos Magno (c. 817-829), IX.
  • 14. JASPERT, Nikolas. “Carlomagno y Santiago en la memoria histórica catalana”. In: El camí de Sant Jaume i Catalunya: Actes del congrés internacional celebrat a Barcelona, Cervera i Lleida, els dies 16, 17 i 18 d’octubre de 2003. Publ. de l'Abadia de Montserrat, Barcelona 2007, p. 91-10.
  • 15. Para todo o período, ver FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
  • 16. Mais tarde, no séc. XIII, a morte de sua amada Beatriz (1265-1290) provocou em Dante Alighieri (1265-1321) a redação de seu primeiro escrito: a Vida Nova (Vita Nuova, 1295). No dolce stil nuovo, o poeta preservou o tema trovadoresco do amor cortês, mas o ultrapassou: sua amada passou a estar acima de quaisquer paixões humanas. Ao meditar sobre o Amor, Dante afirmou que ele era a mesma coisa que o coração nobre, e que a Natureza os unia quando estava enamorada (e tornava o Amor seu senhor e coração de sua mansão). Só depois que o mundo adequava suas inclinações é que então surgia uma dama, discreta (modesta, recatada), que fazia o coração humano arder de desejo a ponto de despertar o espírito do Amor. Ver DANTE ALIGHIERI. La vita nueva (trad. de Julio Martínez Mesanza). Madrid: Ediciones Siruela, 2004, p. 81.
  • 17. Traduzimos alguns dos poemas de Guilherme da Aquitânia – os de número I, II, III, IV, V, VI, VIII e X (disponíveis em Textos). Para a vida desse trovador, ver COSTA, Ricardo da. “O papel do amor cortês e dos jograis na Educação da Idade Média: Guilherme da Aquitânia (1071-1127) e Ramon Llull (1232-1316)”. In: CASTRO, Roberto C. G. (org.). O Intérprete do Logos – Textos em homenagem a Jean Lauand. São Paulo: Factash Editora/ESDC, 2009, p. 231-244.
  • 18. LE GOFF, Jacques. “O cristianismo libertou as mulheres”. In: Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 117-133.
  • 19. Em seu sentido original, a civilĭtas dizia respeito às melhores qualidades de quem vivia na cidade, não no campo. Em sua raiz, civilis, era tudo relacionado ao cidadão romano: sociabilidade, urbanidade, polidez no trato cotidiano (entre romanos, naturalmente). Do ponto de vista da Filosofia tradicional (greco-romana e medieval), o conceito de civilização designava a forma mais elevada da vida de um povo – especialmente a Religião, a Arte e a Ciência – e a mais elevada civilização da história humana era considerada a ocidental pois, à exceção de períodos relativamente breves, foi a única em que a Religião, a Arte e o saber desinteressado da Ciência gozaram de maior favorecimento (a ideia do conhecimento desinteressado, da arte pela arte, da Música como expressão sublime do espírito, é ocidental [greco-romana-judaico-cristã]).
                 Com o Historicismo (de Ranke [1795-1886] e Croce [1866-1952]) e o sucesso de obras como A Decadência do Ocidente (1918), de Oswald Spengler (1880-1936), O mal-estar da civilização (1929) de Freud (1856-1939) e Um Estudo da História (1934-1961) de Arnold Toynbee (1889-1975) – com sua teoria cíclica desafio/resposta do desenvolvimento das civilizações – os alicerces do conceito de civilização começaram a ser abalados. O horror das duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com os massacres da guerra de trincheira, o Holocausto e seus campos de concentração, sepultaram a elevada ideia de civilização ocidental do horizonte do pensamento contemporâneo. A islamização da Europa a partir da segunda metade do séc. XX é, desse ponto de vista, uma das últimas etapas da decadência da civilização ocidental, hoje muito mais voltada para o entretenimento, a diversão, o espetáculo (ou alienação). Ver ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 143-144; BRAUDEL, Fernand. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989; FREUD. O Mal-Estar na Civilização (trad.: José Octávio de Aguiar Abreu). Rio de Janeiro: Imago, 1997; VARGAS LLOSA, Mario Vargas. La civilización del espectáculo. Santiago de Chile: Alfaguara, 2012.
  • 20. LAUAND, Jean. “Cassiodoro e as Institutiones: o trabalho dos copistas”. In: VIDETUR 31. Editora Mandruvá.
  • 21. CASSIODORO. Institutiones. Introdução às letras divinas e seculares (trad. e notas: Hugo Medeiros). Campinas: CEDET, 2018, p. 211 (Livro II, cap. V, 2).
  • 22. COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 43-61.
  • 23. Para o tema, ver GODWIN, Joscelyn (introd. e ed.). Armonía de las Esferas. Un libro de consulta sobre la tradición pitagórica en la Música. Girona: Ediciones Atalanta, 2009, coletânea de extratos de filósofos e pensadores que defenderam a musicalidade do universo.
  • 24. SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías I. Madrid: BAC, MM.
  • 25. Midi (em francês antigo, sul) – designação genérica para o sul da França. Confunde-se parcialmente com a Occitânia (cujas fronteiras são mais precisas), mas também abrange regiões de cultura catalã (Pirineus Orientais), basca (oeste dos Pireneus Atlânticos) ou saintonesa (Aunis, Saintonge Angoumois). Engloba, portanto: 1) Aquitânia, 2) Languedoc-Roussillon, 3) Midi-Pirenéus, 4) sul do Poitou-Charentes e do Rhône-Alpes, e 5) Provença-Alpes-Costa Azul. Do ponto de vista linguístico, é a região da língua de Oc.
  • 26. “O cantor no detalhe dessa primeira miniatura chama-se Conrado de Altstetten. Era um conde. Suas canções pertencem ao período tardio dos Minnesangers (final do século XIII). A iluminura mostra uma dama abraçando seu cavaleiro de uma maneira muito envolvente. O abraço amoroso é um tema comum nas pinturas dos cantores alemães. Sentado a seus pés, reclinado, fascinado por sua beleza e pelo contato físico de seu amor, o cavaleiro se entrega passivamente aos seus carinhos, com seus olhos nos olhos dela. Para aumentar a sensação de ternura da pintura, o iluminista colocou a dama debruçada suavemente sobre seu amado, com seu rosto tocando o dele. Repare, sua atitude é a de quem está tomando a iniciativa, especialmente pela posição de seu braço esquerdo, envolvendo Conrado. Por sua vez, o cavaleiro está com seu corpo estendido como se estivesse em um divã. Essa postura é semelhante ao amante romano, embora invertida: em Roma, a atitude emblemática do amante é rolar sobre sua serva ‘como sobre um divã’; aqui, pelo contrário, o homem está inerte, embevecido, ele é o divã, ela é quem o envolve. Sinal dos novos tempos de elevação da condição feminina. Enquanto recebe as carícias de sua amada, Conrado protege sua mão esquerda com uma luva branca para acolher um falcão, o que confere à cena um equilíbrio harmonioso. Ele a apóia sobre sua perna esquerda para melhor suportar o peso da ave.” – COUTINHO, Priscilla Lauret, COSTA, Ricardo da. “Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média”, op. cit.
  • 27. Adjetivo de NELLI, René. Trovadores y troveros. Palma de Mallorca: Medievalia, 2000, p. 109.
  • 28. BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 195.
  • 29. Para a obra de Guilherme da Aquitânia, ver GUILLERMO DA AQUITANIA. Poesía completa (edición de Luis Alberto de Cuenca). Espanha: Editorial Renacimiento, 2007; GUILHERME IX DE AQUITÂNIA. Poesia (trad. e introd. de Arnaldo Saraiva). Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. Traduzi alguns de seus poemas (disponíveis em meu site).
  • 30. DE RIQUER, Martín. Vida y amores de los trovadores y sus damas. Barcelona: Acantilado, 2004, p. 213 (159. Berenguer de Palou).
  • 31. NOY, Francesc. “Estudio histórico sobre el trovador Berenguer de Palou”. In: Butlletí de la Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona, 1976, vol. 36 (1975-1976), p. 69-73.
  • 32. Depois da cansó, o sirventês é o gênero da poesia trovadoresca, próprio da literatura occitana, mais comum. É condicionado por seu conteúdo. É assim nomeado porque se utilizava da melodia de uma canção já existente para criar uma letra. Assim, as pessoas, que já conheciam a melodia, aprendiam a letra mais facilmente. Trata-se de uma poesia moralizadora (de crítica aos costumes), com tons de ataque pessoal ou mesmo propaganda política. Ver DE RIQUER, Martí. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona: Ariel, 1983, vol. 1, p. 53-59.
  • 33. O melisma (μέλισμα) é o canto de uma única sílaba que se move sucessivamente entre várias notas. Melismática é a música cantada dessa forma – em oposição à silábica, em que cada sílaba corresponde a uma nota. Culturas tradicionais usavam técnicas melismáticas como forma de indução a transes hipnóticos em ritos iniciáticos (como os Mistérios de Elêusis [Ἐλευσίνια Μυστήρια]). A música árabe e o canto cristão ortodoxo ainda utilizam melismas, além do canto gregoriano. Para o tema, ver CROCKER, Richard L. “Melisma”. In: Oxford Music online.
  • 34. Motivos são usados para construir frases musicais, das simples às mais complexas. Aparecem geralmente de modo impressivo e característico no início de uma peça e nela são repetidos, com variações. São compostos por intervalos e ritmos combinados de modo a produzirem uma forma ou um contorno memorável que implica, normalmente, uma harmonia inerente. Como quase toda figura (rítmica) em uma peça cria algum tipo de relacionamento entre si, o motivo básico é sempre considerado o “germe” da ideia. Uma vez que inclui elementos de cada figura musical subsequente, é o “mínimo múltiplo comum” de uma composição. E como está incluído em toda figura subsequente, também pode ser considerado como “máximo divisor comum”. Ver SCHOENBERG, Arnold. Fundamentals of Musical Composition. London: Gerald Strang & Leonard Stein, Faber & Faber, 1967, p. 8.
  • 35. As distintas linhas de pensamento sobre o ritmo nas canções trovadorescas suscitam muitas contradições. Alguns autores proclamam que o texto (poesia) ditava o ritmo das canções; outros defendem que o ritmo era o mesmo utilizado nas canções polifônicas, enquanto outros argumentam que as canções eram ritmicamente livres. Ver AUBREY, Elizabeth. The music of the troubadours. Bloomington: Indiana University Press, 1996.
  • 36. AUBREY, Elizabeth. The music of the troubadours, op. cit., p. 239. Embora as notas musicais sejam as mesmas, a distribuição delas de maneiras diferentes nas sílabas suscitava acentuações distintas. Acreditamos, pois, que a sustentação vocal em uma sílaba mais do que outra poderia induzir deliberadamente o ouvinte a sentidos específicos relacionados à mensagem do texto.
  • 37. Jogral – homem que andava pelas cortes dos príncipes, pelos castelos dos senhores ou pelas festas públicas, cantando, bailando, tocando instrumentos ou criando jogos de inteligência ou de habilidade. Para divertir as pessoas, poderiam ser acrobatas, ginastas, malabaristas, dançarinos, um pouco comediantes, músicos e cantores. Ver “Joglar”. InDiccionari descriptiu de la llengua catalana (Institut d’Estudis Catalans). São considerados instituições culturais da Idade Média, transmissores do repertório folclórico e intermediários culturais. Ver SARAIVA, António José. A cultura em Portugal. Teoria e História. Volume II. Primeira Época: A Formação. Lisboa: Gradiva, 1991, p. 56-68.
  • 38. O conceito de contorno melódico é frequente na literatura musical, mas seu sentido preciso e sua importância musical são indescritíveis, a ponto de a literatura mostrar certa disparidade interpretativa. De qualquer modo, a definição mais simples é: “linha nivelada em torno do eixo de uma nota”. ADAMS, Charles R. “Melodic Contour Typology”. In: Ethnomusicology, vol. 20, n. 2, 1976, p. 179–215. JSTOR.
  • 39. Melodia é uma sequência simples de notas musicalmente satisfatória. Ver English Oxford Living Dictionaries.
  • 40. A forma musical é a estrutura de uma composição musical. O termo é regularmente usado em dois sentidos: como tipo padrão ou gênero, e como procedimento em um trabalho específico. Ver KIRBY, E. F. “Musical form”. In: Encyclopædia Britannica, Jan, 07, 2015.
  • 41. A tessitura se refere à distância entre as notas extremas em uma composição vocal. Ver English Oxford Living Dictionaries.
  • 42. A figura é “qualquer sucessão curta de notas, melodia ou grupo de acordes que produz uma impressão única e distinta. O termo é exatamente o contrário do ‘motiv’ alemão ou ‘motif’ francês. É a menor ideia em música.” – BLOM, Eric (edit.). Grove’s Dictionary of Music and Musicians. New York: St. Martins Press – Macmillan Publishers, 1964, p. 37. Ver também SCRUTON, Roger. The aesthetics of music. Oxford: Clarendon Press, 1997.
  • 43. RUMERY, Kenneth R. “Analysis of melodic contour, continuity, and skeleton. In: Composer’s tool. An Interactive Idea List, 1998.
  • 44. A edição das fontes primárias utilizada para as partituras é a de CHAPMAN, Katie (Project developer). Troubadours Melodies Database.
  • 45. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l'Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra); EVO Live (Lugo, Spain, 22/5/2010), Festival de Música Cidade de Lugo (música). Trad. e notas: Ricardo da Costa. Revisão: Matheus Corassa da Silva.
  • 46. A partir dessa linha, o poeta demonstrará seu desespero existencial por amar desvairadamente sua dama – sem ser correspondido.
  • 47. Um perfil melódico é uma projeção espacial dos movimentos ascendentes e descendentes realizados por uma melodia. Frequentemente é expressa em um gráfico bidimensional altura x tempo.
  • 48. Há dois tipos de pontos culminantes: superior e inferior. O ponto culminante superior é a nota que caracteriza o ponto mais elevado de um fragmento ou extrato musical; o ponto culminante inferior geralmente é representado pela nota mais grave da melodia. Ver GUERRA-PEIXE, César. Melos e Harmonia Acústica. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1988, p. 11-12.
  • 49. Pentacordes são unidades escalares de cinco sons (geralmente conjuntos) que definem o modo da linha melódica como autêntico ou plagal (hipo).
  • 50. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l'Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra). Trad. e notas: Ricardo da Costa. Revisão e notas: Matheus Corassa da Silva.
  • 51. Nessa linha, há uma mudança de tratamento: da terceira pessoa do singular para a segunda do singular (ela/tu). A esse respeito, há dois aspectos a serem ressaltados: 1) no período, as línguas românicas ainda não haviam sido padronizadas, fato que só começou a ocorrer a partir do séc. XVI; 2) o poeta inicia seu lamento de forma alusiva – poetiza a amada. A partir dessa linha, fala diretamente a ela. Ou seja, mescla o modo com que dirige poeticamente seus sentimentos. Ademais, a diferença de tratamento ela/tu também indica aproximação e distanciamento do objeto de seu amor.
  • 52. Nessa linha, novamente há uma mudança de tratamento: da segunda pessoa do singular para a segunda do plural (tu/vós), igualmente a indicar aproximação e distanciamento da amada.
  • 53. Nessa última estrofe, o poeta se dirige ao seu senhor para precavê-lo de seu melancólico estado emocional.
  • 54. A conjunção melódica trata da sucessão de intervalos que, em um modo escalar, representam a menor distância possível. Tomada a coleção diatônica como exemplo (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si), são graus conjuntos quaisquer sucessões entre vizinhos como, por exemplo, ré e mi (ascendente), ou ré e dó (descendente): “Quando as notas estão próximas em altura se dá a conjunção, quando não estão próximas, havendo intercalação, se dá a disjunção.” – SCLIAR, Esther. Elementos de Teoria Musical. São Paulo, Novas Metas, 1985, p. 17.
  • 55. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l'Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra) e Jan-Maria CARLOTTI, Recital de Trobadors medievals. Internet (canção). Trad. e notas: Ricardo da Costa e Matheus Corassa da Silva.
  • 56. Isto é, por amá-la, o trovador sofre, e por isso não deseja vê-la para não sofrer ainda mais.
  • 57. Uma associação muito comum entre a Natureza e a lembrança da amada – a Natureza é o locus amoenus ideal para o desabrochar do amor.
  • 58. Isto é, amante (na linguagem cortês, amigo).
  • 59. Trata-se de Bernat de Navata (Alt Ampordá), marido de D. Maria que, em 1190, recebeu a vila (uma jurisdição senhorial) em feudo do rei Afonso, o Casto (1157-1196), de Aragão e conde de Barcelona.
  • 60. Aqui o trovador se dirige ao seu senhor feudal, esposo de sua amada.
  • 61. Trata-se de Maria de Peralada, esposa de Bernat de Navata, dama que tinha posses no Empordà e em Torrelles de Rosselló, próximo a Palou.
  • 62. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l'Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra). Trad. e notas: Ricardo da Costa e Matheus Corassa da Silva.
  • 63. O cantus firmus (canção fixa) é uma melodia geralmente retirada do cantochão e usada por compositores dos sécs. XIV-XVII para servir de base para uma composição polifônica e contra a qual outras melodias eram colocadas em contraponto. Ver RUTHERFORD-JOHNSON, Tim (ed.). Oxford Dictionary of Music. Oxford Press University, 2012, p. 143.
  • 64. Sobre o uso de melodias profanas em cantos sacros ver RIBEIRO, Antônio Celso. “O palimpsetismo musical nas tradições judaicas sefarditas no contexto sacro/profano na transmissão do conhecimento e perpetuação de tradições”. In: SALVADOR GONZÁLEZ, José María, SILVA, Matheus Corassa da (orgs.). Mirabilia Ars 7 (2017/2). Art and spirituality: questions about religious iconography.
  • 65. Na harmonia, a bordadura ocorre quando uma das linhas melódicas realiza um desenho que parte e retorna para a mesma nota em movimento de grau conjunto (KOSTKA, Stefan; PAYNE, Dorothy. Tonal Harmony – With an Introduction to Twentieth-Century Music. New York: McGraw-Hill, 1995, p. 178). Quando este movimento acontece em direção à nota imediatamente mais aguda, chamamos de bordadura ascendente; caso contrário, bordadura descendente. Por isso, é chamada de neighboring tone (BENWARD, Bruce; SAKER, Marilyn. Music in Theory and Practice. New York: McGraw-Hill, 2009).
  • 66. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l’Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra). Tradução: Ricardo da Costa. Revisão: Matheus Corassa da Silva.
  • 67. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l’Institut d'Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Internet (letra e canção). Trad. e notas: Ricardo da Costa. Revisão: Matheus Corassa da Silva.
  • 68. Nesse verso, o trovador se dirige a uma terceira pessoa, homem, iludido em pensar que a dama o obedece quando, na verdade, o manipula.
  • 69. Isto é, oferece tantas festas... (na Idade Média, os senhores bancavam suas festas. Literalmente: chegavam a pagar as roupas de seus convidados). E na ausência de seus maridos, as senhoras (“damas”) eram as anfitriãs. “Em troca”, os vassalos lhe faziam “a corte”. O documento de época que melhor expressa esse ambiente cultural é ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • 70. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l’Institut d'Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Internet (letra). Trad.: Ricardo da Costa. Revisão: Matheus Corassa da Silva.
  • 71. O primeiro modo medieval (ou protus autenticus) é a escala modal construída com notas naturais (sem acidentes) da escala de dó, porém tocadas de ré à ré da oitava superior. A origem dos modos medievais (gregoriano, litúrgico ou eclesiástico) é unânime entre os pesquisadores: octoechos, sistema de escalas bizantino com as mesmas escalas (octo = oito; echos = tons). Acredita-se que Alcuíno de York (c. 735-804), conselheiro do imperador Carlos Magno (742-814), iniciou a sistematização das melodias litúrgicas espalhadas pela Europa, adequando-as ao sistema de origem bizantina. Ver APEL, Willi. Il Canto Gregoriano. Lucca: LIM Editrice, 1998, p. 182.
              A teoria modal medieval tinha quatro escalas, cada uma em duas variações: protus (modo de ré), deuterus (modo de mi), tritus (modo de fá) e tetrardus (modo de sol). Suas variações eram as escalas autênticas e as plagais. Portanto, havia oito modos: primeiroprotus autenticus; segundo – protus plagalisterceirodeuterus autenticus; quartodeuterus plagalisquintotritus autenticus; sextotritus plagalis; sétimotetrardus autenticus, e oitavotetrardus plagalis. RAMPI, Fulvio. Del Canto Gregoriano – Dialoghi sul canto proprio della Chiesa. Milano: Rugginenti Editore, 2006, p. 215.
                A diferença entre o modo autêntico e o plagal é seu âmbito ou tessitura. Os modos autênticos são mais agudos porque a tessitura corresponde à escala. Nos modos plagais, a tessitura é mais grave, porque ao invés de atingir a quinta, a sexta, a sétima e a oitava de modo ascendente, atinge-se tais notas em direção ao grave a partir da nota de origem ao modo. Ver JEPPESEN, Knud. Counterpoint – The polyphonic Vocal Style of the Sixteenth Century. New York: Dover Publications, 1992, p. 59.
  • 72. Tenor (tener, “sustentar”) – Também chamado de nota de récita. É a nota ostinata sobre a qual recitam-se os textos litúrgicos. Ver CHIARAMIDA, Michele. Opus Alienum – Funzioni e significati del Canto Gregoriano. Padova: Armelin Musica, 2010, p. 131.
                Cada um dos oito modos possui um tom ou nota de récita sobre a qual serão declamados os textos salmódicos, em alternância com a antífona do canto, em uma estrutura textual de tipo responsorial (com refrão e estrofes). CORNO, Angelo; MERLI, Giorgio. “La melodia gregoriana”. In: RAMPI, Fulvio (org.). Alla scuola del canto gregoriano – Studi in forma di manuale. Parma: Musidora Editore, 2015, p. 328.
  • 73. Corda forte é um conceito que abrange notas que se encontram após um semitom. Por exemplo, e . São pólos de atração, já que a nota semitonal tem certa instabilidade e tende a se deslocar melodicamente à corda forte (si tende a ; mi tende a ). Este conceito orientou o surgimento das primeiras claves, pois as linhas que indicavam tais notas eram traçadas em vermelho e, posteriormente, com as letras F e C (indicação alfabética das notas e , respectivamente). No Canto Gregoriano, apenas sobre as cordas fortes há notas repetidas (chamadas repercussões). É uma característica estética muito utilizada neste repertório. Ver LATTANZI, Massimo; RAMPI, Fulvio. Manuale di Canto Gregoriano – com uma sintesi litúrgica di Réginald Grégoire. Cremona: Turris Editrice, 1998, p. 33, e CORNO, Angelo; MERLI, Giorgio. “La melodia gregoriana”. In: RAMPI, Fulvio (org.). Alla scuola del canto gregoriano – Studi in forma di manuale. Parma: Musidora Editore, 2015, p. 250.
  • 74. As notas de contraste ou de ornamentação são também chamadas de notas de adorno. Já explicamos que o sistema gregoriano, derivado do octoechos, é um sistema bipolar (transita entre a nota finalis e a nota de récita como graus mais importantes). Relatamos também que este sistema passou a ser utilizado por volta do século VIII e que o repertório que já existia foi adaptado a ele. Em vários cânticos, mais antigos, existiam outras notas de récita, utilizadas como cadência intermediária, o que torna a análise de qualquer canção escrita em sistema modal medieval algo complexo. Além disso, as outras notas eram sempre utilizadas como ornamento, contraste ou adorno destas notas. O modo da cantiga em questão (protus autenticus) tem a seguinte distribuição de importância dos graus: : contraste de ré ou cadência suspensiva; finalis; Mi: contraste de ré e de fá; : corda forte ou cadência intermediária (ou ainda nota de récita secundária); Sol: cadência intermediária ou nota de récita alternativa à lá ou de contraste de lá; : cadência intermediária (ou tenor salmódico oficial) ou contraste de sol; Si bemol: contraste de lá; Si: contraste de dó; : corda forte ou nota de récita secundária (ou contraste de lá); : contraste de dó. Ver ASENSIO, Juan Carlos. El canto gregoriano – Historia, liturgia, formas... Madrid: Alianza Editorial, 2003, p. 300-32, e SAULNIER, Dom Daniel. I modi gregoriani. Solesmes: La Froidfontaine, 2000, p. 47-50.
  • 75. Tradução feita a partir do texto original editado por JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. Huit chansons de Bérenger de Palazol”. In: Anuari de l’Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540. Corpus des Troubadours, Institut d’Estudis Catalans (letra). Trad.: Ricardo da Costa e Matheus Corassa da Silva.
  • 76. No Purgatório (Canto XXVI), Dante se encontra com o trovador occitano Arnaut Daniel (fl. 1180-1200) – no círculo dos luxuriosos (Alto Purgatório), os que amaram em excesso, sem medida (inclusive os hermafroditas – que hoje chamaríamos de bissexuais). Eles têm que passar por uma imensa parede de fogo. Para serem purificados. Após conversar com o poeta Guido Guinizelli (c. 1230-1276), Dante se aproxima de Arnaut, que diz: “Tan m’abellis vostre cortes deman... (“Tanto me agrada vossa cortês demanda...”, v. 140), a mesma expressão com a qual Berenguer de Palou inicia essa cançó. Ver Princeton Dante Project.
  • 77. Chegaram até nós oito cançons completas de Berenguer de Palou (letra e registro sonoro). Há uma nona cansó, intitulada S’ieu anc per fola entendensa (Se eu a considerasse louca), mas como não há registro de suas notas, optamos por não incluí-la nessa investigação, já que nossa proposta metodológica é interdisciplinar, pois abarca tanto a análise textual quanto musical.
  • 78. Pressus maior – neuma formado por duas notas em uníssono (repercussão) seguidas de uma nota descendente, onde a nota do meio é um neuma ornamental chamado de oriscus (símbolo literário usado para contrair palavras incorporado à escrita neumática. Ex: Dñe – Domine). Ver CARDINE, Dom Eugene. Semiologia Gregoriana. Roma: PIMS, 1979, p. 88; LATTANZI, Massimo; RAMPI, Fulvio. Manuale di Canto Gregoriano – com uma sintesi litúrgica di Réginald Grégoire. Cremona: Turris Editrice, 1998, p. 529-530 e RAMPI, Fulvio. “Il ritmo gregoriano”. In: RAMPI, Fulvio (org.). Alla scuola del canto gregoriano – Studi in forma di manuale. Parma: Musidora Editore, 2015, p. 602-603.
  • 79. Pes subpunctis neuma formado por quatro notas: movimento inicial ascendente da primeira para a segunda nota, seguido de duas notas descendentes. Ver CARDINE, Dom Eugene. Semiologia Gregoriana, op. cit., p. 50; LATTANZI, Massimo; RAMPI, Fulvio. Manuale di Canto Gregoriano – com uma sintesi litúrgica di Réginald Grégoire, op. cit., p. 365 e RAMPI, Fulvio. “Il ritmo gregoriano”, op. cit., p. 569.
  • 80. Clima afetivo pela sonoridade do fragmento: ele provoca na alma determinada atitude e sensação. Ver ASENSIO, Juan Carlos. El canto gregoriano – Historia, liturgia, formas..., op. cit., p. 303.
  • 81. É o modo chamado angélico pelos antigos, o mais agudo dentre todos. Ver SAULNIER, Dom Daniel. I modi gregoriani, op. cit., p. 96.
  • 82. “Desde sua criação em 1987, a Capella de Ministrers, sob a direção de Carles Managrer, desenvolve uma importante investigação musicológica em favor do patrimônio musical espanhol, do medievo ao séc. XIX. O resultado, um testemunho musical, conjuga três aspectos: o rigor histórico, a sensibilidade musical e, especialmente, o desejo de comunicar e nos tornar partícipes destas experiências.” – Carles Magraner. Capella de Ministrers.
  • 83. “Jeanroy spricht sich in seiner Ausgabe der Huit Chansons de B. de P. uber das Alter des Trobadors nur in Fragen aus. Schutz-Gora aber hat ihn schon im Jahre 1886 in den Anfang des 13. Jahrhuderts gesetzt, und wer ein Gefuhl fur Metrik und Stil der Trobadordichtung hat, wird ihn wenigstens nicht zu den Alten Trobadors zählen” (“Jeanroy, em sua edição da Huit Chansons de Berenguer de Palou, trata somente de questões sobre a idade do trovador. Mas Schutz-Gora o colocou no início do século XIII, já em 1886, e qualquer um que tenha um senso de métrica e estilo trovadoresco, no mínimo, não o porá entre os antigos trovadores”). APPEL, Carl. “Zur Formenlehre des provenzalischen Minnesangs". In: GRÖBER, Gustav. Zeitschrift für romanische Philologie, 1933, Vol. 53. Tübingen: Max Niemeyer, 1970, p. 161.
  • 84. “Berenguer de Palou és un dels primers trobadors catalans, com a bon rossellonès, de poesia dolça e fácil. Les seves melodies cantades així, prenen grossa volada i traspuen encara avui una frescor i una joventut talment com si fossin transcrites del folklore musical dels nostres pobles” (“Berenguer de Palou é um dos primeiros trovadores catalãos, como bom rossilhão, de poesia doce e fácil. Suas melodias, cantadas assim, adquirem um ritmo total e ainda hoje fluem um frescor e juventude como tivessem sido transcritas do folclore musical do nosso povo”). ANGLÈS, Higini. La música a Catalunya fins al segle XIII. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans: Biblioteca de Catalunya, 1935, p. 379.
  • 85. “Llamamos contrafactum a la aplicación de una melodía preexistente a un nuevo texto, a partir del mismo esquema métrico y la misma naturaleza de las rimas en los dos textos, con lo cual es posible la aplicación de la melodía de la primera a la segunda” (“Chamamos contrafactum a aplicação de uma melodia pré-existente a um novo texto, a partir do mesmo esquema métrico e a mesma natureza das rimas nos dois textos, com o qual é possível a aplicação da melodia da primeira na segunda”). ROSSELL, Antoni. “La música de los trovadores”. In: Musiker - Cuadernos de Música, n. 8, 1996. Donostia: Sociedad de Estudios Vascos, 1996,  p. 85.
  • 86. ROSSELL, Antoni. “Oralidad y recursos orales en la lírica trovadoresca: texto y melodía. La ‘oralidad’, un paradigma eficiente”. In: La voz y la memoria: palabras y mensajes en la tradición hispánica, Simposio sobre Patrimonio Inmaterial 1. 2006. Valladolid: Diputación Provincial de Valladolid & Fundación Joaquín Díaz, 2006, p. 39.
  • 87. BUCH, Ingrid Pauline Buch. The Music of the Troubadours. University of British Columbia. Vancouver, 1971, p. 18.
  • 88. Para o tema, ver DE CAPITANI, Enrico. “Tropi, Sequenze, Prosule – Ornamento ed espansione del canto gregoriano”. In: RAMPI, Fulvio (org.). Alla scuola del canto gregoriano – Studi in forma di manuale. Parma: Musidora Editore, 2015, p. 713-807.
  • 89. De acordo com nossa transcrição da fonte primária, Ab la fresca clardat tem Fá como nota finalis e uma tessitura aguda, o que a classifica no modo tritus autenticus, de caráter jovial. Porém, de posse de outra transcrição, com Lá como nota finalis, realizada por Higini Anglés (que supôs que a última clave foi transcrita pelo copista medieval equivocadamente, uma linha acima), percebemos que a Capella de Ministrers fez uma transposição musical e posicionou a nota finalis em uma das notas possíveis pela teoria musical da época (ré, mi, fá ou sol). Essa operação, mais do que alterar a melodia, deslocou-a para outra região, alterou a posição dos semitons e, por consequência, a escala/modo medieval. A Capella de Ministrers colocou Ré como nota finalis, e de “mi-fá-sol-fá-mi-ré-si”, a melodia foi deslocada para “lá-si-dó-si-lá-sol-mi”. Com a inserção da nota Si, houve a inserção do bequadrum em toda a melodia, o que alterou seu caráter original para o modo protus autenticus, austero e solene. Para a outra transcrição, ver ANGLÈS, Higini. La música a Catalunya fins al segle XIII, op. cit., p. 381.
  • 90. A teoria dos modos rítmicos surgiu em alguns tratados do séc. XIII que abordavam a música polifônica e dos trouvères. Alguns teóricos da música trovadoresca, ao descobrirem esta teoria, passaram a aplicá-la ao repertório trovadoresco por dedução analógica. Tal teoria apresenta um total de seis modos rítmicos: 1) troqueu, 2) iâmbico, 3) dáctilo, 4) anapesto, 5) espondeu, 6) tríbraco. Na polifonia da época, a voz superior utilizava o sexto modo; o tenor (voz principal), o quinto; o quarto modo era considerado raro e, por consequência, restavam os três primeiros modos para desenvolver o discantus (vozes acima da superior, em língua vernácula, com um cárater improvisativo). Como tal técnica era usada para este tipo de repertório e por trouvères franceses, por que não usá-la nas cançons dos trovadores? Ver ANGLÈS, Higini.  La música a Catalunya fins al segle XIII, op. cit., p. 347-352; PARRISH, Carl. The notation of Medieval Music, op. cit., p. 41-52, p. 73-76.
  • 91. Para as transcrições ver ANGLÈS, Higini. La música a Catalunya fins al segle XIII, op. cit., p. 380-383; JEANROY, Alfred; AUBRY, Pierre. “Huit chansos de Bérenguer de Palazol”. In: Anuari de l’Institut d’Estudis Catalans 2 (1908), p. 520-540; GENNRICH, Friedrich. “Der musikalische Nachlass der Troubadours”. In: Summa Musicae Medii Aevi, 1958, vol. 3. Frankfurt: Langen, 1965.
  • 92. A cançó Dona, si totz temps vivia não foi gravada pela Capella de Ministrers. Selecionamos a gravação do grupo Cantilena Antiqua, do álbum Berenguer de Palol: Joys Amors et Chants.
  • 93. Destaque dado por FOSSIER, Robert. As pessoas na Idade Média. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 77.
  • 94. Para o tema do corpo na História, ver SILVA, Matheus Corassa da. Corpos profanados, corpos mutilados. Entre Bernat Martorell (1390-1452) e Caravaggio (1571-1610): João Batista em cena. Programa de Pós-Graduação em Artes, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2018, p. 23-42.
  • 95. Devoção corporal tão acentuada que chamou a atenção do pensador aristotélico-tomista Carlos Nougué (1952- ) afirmar que: “Por outro lado, certa ‘beleza’ literária não deixa de ser malsã, assim como a profusão sem decoro (ou seja, sem conveniência) de ornamentação numa igreja não deixa de ser reprochável (e propriamente não artística). Pensamos, por exemplo, quanto à literatura, nos inconvenientes exageros de certa poesia medieval ou do cultismo do Século de Ouro espanhol: no primeiro caso se tem, ainda por exemplo, a inconveniente descrição detalhista ad nauseam da beleza feminina em muitos poemas (especialmente de ‘amor cortês’).” – NOUGUÉ, Carlos. Da Arte do Belo. Formosa (GO): Edições Santo Tomás, 2018, p. 93.
  • 96. Uma excelente exposição (medieval) dos cinco sentidos se encontra em RAMON LLULL. A disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), “V. Do Deleite”, 42-62 (tradução baseada na tradução de LOLA BADIA, “Versió catalana de lia Disputa del chegue Pere i de Ramon, el Fantàstic”. InTeoria i pràtica de la literatura en Ramon Llull. Barcelona, Edicions dels Quaderns Crema, 1991, p. 211-229).
  • 97. WIRTH, Jean. “Corps (Représentation du)”. In: CHARRON, Pascale & GUILLOUËT, Jean-Marie (dir.). Dictionnaire d’Histoire de l’Art du Moyen Âge Occidental. Paris: Éditions Robert Laffont, 2009, p. 277.
  • 98. Conceito expresso em toda a obra O príncipe (1513). Indicamos duas edições brasileiras: MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe (trad.: Maurício Santana Dias). São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, e MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe (trad.: Maria Júlia Goldwasser). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
         Curiosamente, ao contrário de Berenguer de Palou (e cronologicamente posterior), Ramon Llull (1232-1316), ao escrever seu espelho de príncipes (A Árvore Imperial), define o governante de uma forma anti-maquiavélica. Para o tema, ver COSTA, Ricardo da. “O pensamento político no final do século XIII. A imagem do Príncipe Tirano na Árvore Imperial, de Ramon Llull”. InDimensões 11 - Revista de História da Ufes. Vitória: Ufes, 2000, p. 349-364.
  • 99. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • 100. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês, op. cit., p. 14.
  • 101. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês, op. cit., p. 239.
  • 102. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês, op. cit., p. 212.
  • 103. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês, op. cit., p. 99.
  • 104. ABELARDO – HELOÍSA. Cartas. As cinco primeiras cartas traduzidas do original, apresentadas e comentadas por Zeferino Rocha. Edição bilíngüe. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, Epistola Prima – Primeira Carta, VI, 51, p. 77.
  • 105. Lais de Maria de França (trad. e introd. de Antonio L. Furtado). Petrópolis: Vozes, 2001.
  • 106. Informação encontrada no Prólogo (de 56 linhas) do Manuscrito Harley 978 (documento que registra duas canções: a primeira, sobre as paisagens e os sons do verão; a segunda, uma canção devocional). Ver PITTAWAY, Ian. Sumer is icumen in / Perspice Christicola: silencing the cuckoo. Internet, 2016.
  • 107. ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do Amor Cortês, op. cit., p. 233-263.
  • 108. Maravilhoso aforismo por ele proferido no documentário Quincy (EUA, 2018). Produção: Paula DuPré Pesmen; distribuição: Netflix.
  • 109. RAMON LLULL. Obres Essencials (OE). Barcelona: Editorial Selecta, vol. II, 1960, p. 355.
  • 110. LADERO QUESADA, Miguel Ángel. Las fiestas em la cultura medieval. Barcelona: Areté, 2004, p. 125-129.
  • 111. Para o tema da vida ao redor da mesa, ver MONTANARI, Massimo. Histórias da mesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.
  • 112. Para o tema do riso na história (erudito, ainda que esquemático e um preconceituoso com tudo o que se refere à Igreja), ver MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
  • 113. MARCHELLO-NIZIA, Christiane. “Cavalaria e cortesia”. In: LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). História dos jovens 1. Da Antiguidade à Era Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 175-176.
  • 114. Desde as cinco visões do Cristo crucificado até o retiro do filósofo ao monte Randa para contemplar a Deus. Ver VILLALBA I VARNEDA, Pere. Ramon Llull. Escriptor i Filòsof de la Diferència. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 2015, p. 67-70.
  • 115. DOMÍNGUEZ REBOIRAS, Fernando. “Soy de libros trovador”. Catálogo y guía a las obras de Raimundo Lulio. Porto: Editorial Sindéresis, 2018.
  • 116. VILLALBA I VARNEDA, Pere. Ramon Llull. Escriptor i Filòsof de la Diferència, op. cit., p. 101 e 112.
  • 117. Metalinguagem é a função da linguagem na qual se utiliza um tipo de linguagem para se referir a outro tipo, a que denominamos linguagem objeto. Neste caso, o trovador utiliza a linguagem poética para se referir à própria poesia que compôs. Ver GUPTA, Anil. “Metalenguaje”. In: HONDERICH, Ted (ed.). Enciclopedia OXFORD de Filosofía. Madrid: Tecnos, 2008, p. 796.
  • 118. “Tanto me agrada o prazer, o amor e o canto, / a alegria, a diversão e a cortesia, / que não há no mundo riqueza ou senhorio / que possa contribuir para a minha felicidade” (VIII, I, 1-4).
  • 119. Tradução e notas: Ricardo da Costa, a partir da edição Obres Essencials (OE). Barcelona: Editorial Selecta, vol. II, 1960. Revisão: Matheus Corassa da Silva.
  • 120. OE, vol. II, 1960, p. 355-358.
  • 121. No original, voltes. Provavelmente um tipo de dança como forma de entretenimento, já que, além de tocarem instrumentos e cantarem, os jograis faziam performances (acrobacias, imitações, jogos, prestidigitações, etc.) quando se apresentavam nas festas das cortes medievais.
  • 122. “O lai, palavra de origem céltica (cf. o irlandês laid, “canto”), era uma composição curta para ser cantada ao som de harpa ou de rota, instrumento antigo também de corda.” – FURTADO, Antonio L. “Introdução”. In: Lais de Maria de França. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, p. 19.
  • 123. O filósofo se refere à Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo).
  • 124. Lamento que faz alusão ao Paraíso e ao Inferno “no outro século”, isto é, no Além.
  • 125. O filósofo escreveu uma obra dedicada ao tema: O Livro da Intenção (c. 1283). No entanto, a mais simples e sintética definição dessa filosofia se encontra na iluminura VII do Bre­vi­culum (1325, Ba­dische Landesbibliothek de Karls­ruhe, Ale­manha. Codex St. Peter, perg. 92). Nela, Ramon Llull é o co­men­tador de Aris­tó­teles, com seu exér­cito, que “...vai em so­corro do fi­ló­sofo grego para a li­ber­tação da Ver­dade. À sua frente estão três ca­va­leiros com trom­betas. São as três po­tên­cias da alma ra­ci­onal: o In­te­lecto, a Von­tade e a Me­mória (reminiscência agostiniana da filosofia de Llull, mas, sobretudo, reflexo analógico da imago mundi do pensamento de nosso autor). Elas pro­clamam a exis­tência de um só Deus e Sua San­tís­sima Trin­dade. A seguir, o fi­ló­sofo, mon­tado no ca­valo da in­tenção reta, porta uma lança com um es­tan­darte, com os dizeres: ‘Es­ti­memos a Deus pela pri­meira in­tenção e pela mai­o­ri­dade do fim; con­tem­plemos o mé­rito pela se­gunda in­tenção e pela mi­no­ri­dade do fim’.” (os grifos são meus) – COSTA, Ricardo da. “O Diálogo no limite: A disputa entre Pedro e Ramon, o superfantástico (1311)”. InMirabilia 21 (2015/2), p. 132-150.
  • 126. A respeito da ordenação dos cinco sentidos espirituais, Llull parece se referir a uma tradição que remonta à Patrística, especialmente Agostinho (354-430), o que o torna caudal das duas tradições filosóficas clássicas (Platão e Aristóteles). Ao citar os cinco sentidos espirituais, o filósofo mostra a importância da ordenação dos sentidos para nos direcionarmos a Deus. Em A natureza do Bem, ao discorrer sobre a maldade (cap. 7), Agostinho aponta para a distorção volitiva como o princípio do pecado, passagem em que está implícita a Primeira Epístola de João (2, 16) – “Porque tudo o que há no mundo – a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida – não procede do Pai, mas do mundo”. A volúpia da carne, a concupiscência que conduz o homem ao prazer desmedido, abrange os cinco sentidos: a concupiscência dos olhos, o conhecimento por excelência (a razão é o olho do espírito) é a curiosidade vã que nos conduz ao erro (Adão e Eva são exemplos disso); a desordem do olfato, do paladar e do tato traz a destemperança (sentidos por meio dos quais o pecado entra; a obra de Hieronymus Bosch representa simbolicamente isso) – Rodrigo de Abreu Oliveira.
  • 127. Passagem claramente aristotélica. Segundo o Estagirita, cinco são as faculdades da alma: a nutritiva, a perceptiva, a desiderativa, a motora e a discursiva (De anima, 414a, 30; 414b). A nutritiva é a mais comum das faculdades (todos os seres vivos a possuem); suas funções são “a de reprodução e a assimilação dos alimentos” (De anima, 415a). A perceptiva surge a partir de um movimento externo que Aristóteles denomina afecção (De Anima, 410a 25-26): são as sensações despertas pelas afetações sensoriais. Há também um sexto sentido, o senso comum. Sua função é assimilar os sentimentos e as sensações unitariamente. A desiderativa se refere aos desejos. Está ligada à faculdade da percepção. Só deseja quem tem sentidos (e imaginação). A motora diz respeito ao crescimento e envelhecimento (geração e corrupção) – problema de sua Metafísica, pois o movimento só é possível por meio da união entre forma (ato) e a matéria (potência) (aqui se insere o problema do tempo). Por fim, a discursiva é o entendimento (não se pode entender sem um movimento da potência ao ato). Toda a capacidade de conhecimento está inserida no realismo aristotélico. Só é possível se, e somente se, estiver conjugada à matéria (De Anima, 431a 5) – maravilhosa síntese da epistemologia aristotélica de Rodrigo de Abreu Oliveira.
  • 128. Na Idade Média, um palafrém era um cavalo nobre, bem treinado, mas não de batalha, utilizado pelos nobres, damas e príncipes, quando andavam pelos caminhos ou em cerimônias solenes.
  • 129. Moeda de valor ínfimo.
  • 130. Agradeço muito pela correção e pelas explicações eruditíssimas de Júlia Butiñyà que, ademais, acaba de traduzir pela primeira vez para o espanhol o Livro da Contemplação pelo Editorial Palas Atenea.

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