Diálogo entre Pepino e Alcuíno (c. 781-790)
Trad. e notas: Jean Lauand (USP)
P.: O que é a escrita?1
A.: O guarda da História.
P.: O que é a palavra?
A.: A delatora dos segredos da alma.
P.: Quem gera a palavra?
A.: A língua.
P.: O que é a língua?
A.: O chicote do ar.
P.: O que é o ar?
A.: O guarda da vida.
P.: O que é a vida?
A.: A alegria dos ditosos, aflição dos miseráveis, espera da morte.
P.: O que é a morte?
A.: Um fato inevitável, uma incerta peregrinação, lágrimas dos vivos, confirmação dos testamentos, ladrão do homem.2
P.: Que é o homem?
A.: Servo da morte, caminhante passageiro, sempre um hóspede em qualquer lugar.
P.: A que é semelhante o homem?
A.: A um fruto.3
P.: Qual a condição humana?
A.: A de uma candeia ao vento.
P.: Como está ele situado?
A.: Dentro de seis paredes.
P.: Quais?
A.: Acima, abaixo; diante, detrás; direita e esquerda.
P.: De quantos modos ele é variável?
A.: De seis modos.
P.: Quais?
A.: Pela fome e saciedade; pelo repouso e trabalho; pela vigília e sono.
P.: O que é o sono?
A.: Imagem da morte.
P.: O que é a liberdade do homem?
A.: A sua inocência.
P.: O que é a cabeça?
A.: O cimo do corpo.
P.: O que é o corpo?
A.: A morada da alma.
P.: O que é a cabeleira?
A.: A veste da cabeça.
P.: O que é a barba?
A.: Distinção do sexo, honra da idade.
P.: O que é o cérebro?
A.: O conservador da memória.
P.: O que são os olhos?
A.: Os guias do corpo, recipientes de luz, indicadores da alma.
P.: O que são as narinas?
A.: Os condutos dos aromas.
P.: O que são os ouvidos?
A.: Captadores de sons.
P.: O que é a fisionomia?
A.: A imagem da alma.
P.: O que é a boca?
A.: A alimentadora do corpo.
P.: O que são os dentes?
A.: Moinho de morder.
P.: O que são os lábios?
A.: As portas da boca.
P.: O que é a garganta?
A.: A devoradora da comida.
P.: O que são as mãos?
A.: Os operários do corpo.
P.: O que são os dedos?
A.: Plectro das cordas.
P.: O que é o pulmão?
A.: Depósito de ar.
P.: O que é o coração?
A.: Receptáculo da vida.
P.: O que é o fígado?
A.: O guarda do calor.
P.: O que é a bílis?
A.: A que suscita a irritação.
P.: O que é o baço?
A.: O que produz a alegria e o riso.
P.: O que é o estômago?
A.: O cozinheiro dos alimentos.
P.: O que é o ventre?
A.: O guarda das coisas frágeis.
P.: O que são os ossos?
A.: A fortaleza do corpo.
P.: O que são as coxas?
A.: Epistílios das colunas.
P.: O que são as pernas?
A.: As colunas do corpo.
P.: O que são os pés?
A.: Alicerce móvel.
P.: O que é o sangue?
A.: Humor das veias, alimento da vida.
P.: O que são as veias?
A.: As fontes da carne.
P.: O que é o céu?
A.: Uma esfera que roda sobre si mesma, um imenso teto.
P.: O que é a luz?
A.: A face de todas as coisas.
P.: O que é o dia?
A.: Estímulo ao trabalho.
P.: O que é o sol?
A.: O esplendor da terra, a beleza do céu, graça da natureza, a glória do dia, o distribuidor das horas.
P.: O que é a lua?
A.: O olho da noite, doadora de orvalho, aquela que anuncia as tempestades.
P.: O que são as estrelas?
A.: A pintura que adorna o céu, piloto dos navegantes, o encanto da noite.
P.: O que é a chuva?
A.: A fecundação da terra, a mãe dos frutos.
P.: O que é a neblina?
A.: Noite do dia, trabalho para os olhos.
P.: O que é o vento?
A.: Perturbação do ar, mobilidade das águas, secura da terra.
P.: O que é a terra?
A.: A mãe de tudo o que cresce, a que alimenta os viventes, o celeiro da vida, a devoradora de todos.
P.: O que é o mar?
A.: O caminho da coragem, a fronteira da terra, o que separa as regiões, o hospedeiro dos rios, a fonte das chuvas, refúgio nos perigos, encantadores prazeres.
P.: O que são os rios?
A.: Curso que não acaba, refeição do sol, irrigação da terra.
P.: O que é a água?
A.: Sustentáculo da vida, limpeza das sujeiras.
P.: O que é o fogo?
A.: Calor excessivo, aquecimento para os que nascem, sazonamento do que germina.
P.: O que é o frio?
A.: O febricitar dos membros.4
P.: O que é o gelo?
A.: A perseguição das plantas, a perdição das folhas, a prisão da terra, a fonte das águas.
P.: O que é a neve?
A.: Água seca.
P.: O que é o inverno?
A.: O exílio do verão.
P.: O que é a primavera?
A.: A pintora da terra.
P.: O que é o verão?
A.: O revestir da terra, o sazonamento do que germina.
P.: O que é o outono?
A.: O celeiro do ano.
P.: O que é o ano?
A.: A quadriga do mundo.
P.: E quem a conduz?
A.: A noite e o dia, o frio e o calor.
P.: E quem dirige as rédeas?
A.: O sol e a lua.
P.: Quantos são seus palácios?
A.: Doze.
P.: Quem são os governantes dos palácios?
A: Áries, Touro, Gêmeos, Câncer, Leão, Virgem, Balança, Escorpião, Sagitário , Capricórnio, Aquário e Peixes.
P.: Quantos dias ficam morando em cada palácio?
A.: O sol, 30 dias e 10 horas e meia; a lua, 2 dias, 8 horas e 2/3 de hora.
P.: Mestre, tenho medo de ir ao alto!
A.: Quem te trouxe para o alto?
P.: A curiosidade.
A.: Se tens medo, descerei. Eu te seguirei aonde quer que vás.
P.: Se eu soubesse o que é um navio, prepararia um para ti, para que viesses a mim.
A.: Um navio é uma casa errante, é hospedaria em qualquer parte, um viajante que não deixa pegadas, um vizinho da areia.
P.: O que é a areia?
A.: O muro da terra.
P.: O que são as ervas?
A.: A veste da terra.
P.: O que são os legumes?
A.: Os amigos dos médicos, o louvor dos cozinheiros.
P.: O que é que faz doce o amargo?
A.: A fome.
P.: O que é que faz com que o homem não se canse?
A.: O lucro.
P.: O que é o sonho dos acordados?5
A.: A esperança.
P.: O que é a esperança?
A.: Refrigério nos trabalhos; evento incerto.
P.: O que é a amizade?
A.: A igualdade das almas; a igualdade dos amigos.
P.: O que é a fé?
A.: A certeza das coisas não sabidas e admiráveis.
P.: O que é admirável?6
A.: Agora há pouco, vi um homem, em pé, que nunca existiu, um morto andando.
P.: Desvenda-me como pode ser isso.
A.: A imagem refletida na água.
P.: Como é que eu, tendo tantas vezes visto isso, não o entendi por mim mesmo?
A.: Já que és um bom rapaz e dotado de natural engenhosidade, vou te propor mais algumas “admiráveis”; provarás se, por ti mesmo, podes adivinhá-las.
P.: Sim e se eu errar, tu me corrigirás.
A.: Farei como desejas. Um desconhecido, sem língua e sem voz, falou comigo; ele nunca existiu, nem existirá. É alguém que não conheço e nem ouviria.
P.: Acaso um sonho te importunou, mestre?
A.: Sim, filho, acertaste. Ouve esta agora: vi mortos gerarem um vivo e o hálito do vivo consumiu os mortos.
P.: Esfregando-se galhos secos, nasce o fogo que consome os galhos.
A.: Acertaste. Ouvi mortos falando muitas coisas.
P.: Nunca falaram bem, a não ser quando suspensos no ar.
A.: É, é verdade. E eu vi o fogo não apagado repousar na água.
P.: Tu te referes ao sílex, parece-me.
A.: É, é isso mesmo! Vi um morto sentado sobre um vivo e no riso do morto, morreu o vivo.
P.: Isto sabem nossos cozinheiros.
A.: Mas, psst!, põe teu dedo sobre a boca; não aconteça que os meninos ouçam o que é. Fui eu com outros a uma caçada, na qual o que apanhamos não trouxemos conosco e o que não pudemos caçar, sim, trouxemos conosco.
P.: É a caçada dos camponeses, não é?
A.: É. Vi o que nasceu, antes de ser concebido.
P.: Viste e talvez comeste.
A.: Comi. O que é o que não é e tem nome e responde a quem faz barulho?
P.: Pergunta aos papiros na floresta.
A.: Vi um morador correndo junto com sua casa; ele calava, mas ela fazia barulho.
P.: Prepara-me uma rede e eu to mostrarei.
A.: Quem é o que não podes ver, senão de olhos fechados?
P.: O que dorme profundamente indicar-te-á.
A.: Vi um homem com oito na mão; de oito, tirou sete e ficou com seis.
P.: As crianças, na escola, sabem isso.
A.: O que é que sem cabeça fica maior?
P.: Vai a tua cama e descobrirás.
A.: Eram três: um, nunca nasceu e morreu uma vez; outro, nasceu uma vez e nunca morreu; o terceiro, nasceu uma vez e duas vezes morreu.
P.: O primeiro é homônimo da terra; o segundo, do meu Deus; o terceiro, do homem pobre.
A.: Dize as iniciais dos nomes.
P.: 1, 5 e 12.7
A.: Vi uma mulher voando, ela tem o bico de ferro, o corpo de madeira, a cauda emplumada e é portadora da morte.
P.: É a companheira dos soldados.
A.: Que é o soldado?
P.: A muralha do Império, o pavor do inimigo, um serviço glorioso.
A.: O que é que é e que não é?
P.: O nada.
A.: E como pode ser e não ser?
P.: É enquanto palavra; não é, enquanto realidade.
A.: Quem é o mensageiro mudo?
P.: O que tenho aqui comigo.
A.: O que tens aí contigo?
P.: Uma carta tua.
A.: Que a leias com proveito, filho.
Notas
- 1. Patrologia Latina (PL) 101, 975-980.
- 2. Cf. Heb 9, 15-17.
- 3. Há, no original, um jogo de palavras: homo-pomo.
- 4. Frigorificus é o que tem febre (cf., por exemplo, Gregório de Tours in PL 71, 711C ou 325A ou 771B. Devo esta observação, e a seguinte, ao saudoso D. João Mehlmann O.S.B.
- 5. "Louvo aquele que disse que as esperanças são os sonhos dos acordados", diz também ANTONIUS MELISSA PG 136, 788C. A formulação é atribuída a Aristóteles (DIÓGENES LAÉRCIO, De vitis phil., 1.5, I, 11,18).
- 6. Mirum, admirável, designa também adivinha.
- 7. O original, provavelmente enganado, diz 1, 4 e 12.