História Eclesiástica (séc. IV)

 

Prólogo

Depois de ter descrito em sete livros completos a sucessão dos apóstolos1, acreditamos que é um de nossos mais necessários deveres transmitir neste oitavo livro, para o conhecimento também dos que virão depois de nós, os acontecimentos de nosso próprio tempo2, pois eles merecem uma exposição escrita bem pensada. E nosso relato terá seu começo a partir desse ponto.3

1. Da situação anterior à perseguição de nossos dias

1. Explicar como se merecem quais e quão grandes foram, antes da perseguição de nosso tempo, a glória e a liberdade que gozou4, entre todos os homens, gregos e bárbaros, a doutrina da piedade para com o Deus de todas as coisas e anunciada ao mundo por meio de Cristo, é empresa que nos transborda.

2. Contudo, uma prova disso poderia ser a acolhida dos soberanos para com os nossos5, a quem inclusive eram encomendados aos governos das províncias, dispensando-lhes a angústia de ter que se sacrificar, pela grande amizade que reservavam à nossa doutrina.

3. Que necessidade há de falar dos que estavam nos palácios imperiais e dos supremos magistrados? Estes consentiam que seus familiares – esposas, filhos6 e criados – obrassem abertamente, com toda a liberdade, com sua palavra e conduta, no que se refere à doutrina divina, quase lhes permitindo vangloriarem-se da liberdade de sua fé. Eram considerados muito especialmente dignos de aceitação, mais ainda que seus companheiros de serviço.

(...)

3. Do modo como se comportaram os que combateram na perseguição

1. Então, precisamente então, numerosíssimos dirigentes das igrejas, lutando corajosamente em meio a terríveis tormentos, ofereceram cenas de grandes combates. Contudo, foram milhares os outros que, de antemão, embotaram suas almas com a covardia, e assim facilmente se debilitaram já ao primeiro ataque. Dos restantes, cada um foi alternando diferentes espécies de tormentos: um, com seu corpo sendo lacerado com açoites; outro, castigado com as torturas insuportáveis do potro7 e dos ganchos de ferro, nos quais alguns já perdiam suas vidas.


(...)

6. Dos mártires das casas imperiais

1. Acima de todos que alguma vez foram celebrados como admiráveis e famosos por sua valentia, tanto entre os gregos quanto entre os bárbaros, esta foi a ocasião para destacar aos divinos e excelentes mártires Doroteu8 e os servidores imperiais que o acompanhavam. Embora seus amos os tivessem considerados dignos da mais alta honra e no trato não os deixavam abaixo de seus próprios filhos, eles julgavam, com toda a verdade, que as injúrias, os trabalhos e os variados gêneros de morte inventados contra eles por causa de sua religião eram uma riqueza maior que a glória e o prazer dessa vida.9 Somente mencionaremos o fim que teve um deles e deixaremos a nossos leitores que imaginem o que aconteceu aos outros.

2. Na cidade mencionada10, um deles11 foi conduzido publicamente diante dos imperadores já indicados12; foi ordenado que sacrificasse (sua fé) e, ao opor-se, foi mandado que fosse pendurado nu e que seu corpo fosse rasgado à força dos açoites até que, submetido, fizesse o que fosse ordenado, mesmo contra sua vontade.

3. Mas como ele se mantinha inflexível mesmo depois de padecer esses tormentos, e com os seus ossos já aparecendo, misturaram então vinagre com sal e derramaram nas partes mais dilaceradas de seu corpo. Mas ele também suportou essas dores. Então trouxeram grelhas de ferro e fogo e, como se faz com a carne comestível, o resto de seu corpo foi sendo consumido no fogo, não todo de uma vez, para que não morresse logo, e sim pouco a pouco.13 Mesmo depois de tantos padecimentos, os que o haviam colocado na fogueira não podiam soltá-lo até que ele desse um sinal de concordar com o ordenado.

4. Mas ele foi vencedor, pois estava solidamente aferrado a seu propósito, e entregou sua alma em meio aos tormentos.14 Tal foi o martírio de um dos servidores imperiais, digno realmente do nome que tinha: Pedro.

5. Embora não fossem menores os tormentos dos outros15, contudo, considerando as proporções desse livro, os omitiremos. Somente diremos que Doroteu e Gorgônio, juntamente com muitos outros do serviço imperial, depois de passarem por combates de todo o gênero, morreram enforcados e alcançaram o prêmio da divina vitória.

6. Nesse tempo, Antimo, que então presidia a igreja de Nicomédia, foi decapitado por seu testemunho de Cristo.16 E a ele se juntou uma multidão compacta de mártires quando, nesses mesmos dias e sem saber como, foi anunciado um incêndio no palácio imperial de Nicomédia. Ao suspeitar falsamente e correr a voz de que havia sido provocado pelos nossos, a uma ordem imperial, os cristãos daquele lugar, em tropel e amontoadamente, foram degolados com a espada; outros terminaram no fogo.17 Uma tradição diz que homens e mulheres saltavam para o fogo com um fervor divino inefável. Por sua vez, os verdugos amarravam outra parte da multidão em barcas e as lançaram aos abismos do mar.18

(...)

7. Dos mártires egípcios da Fenícia

1. Pelo menos nós conhecemos os que dentre eles, brilharam na Palestina. Inclusive conhecemos os que se sobressaíram em Tiro na Cilicia. Vendo-os, quem não se pasmará com os inumeráveis açoites e com a resistência dos que suportaram estes atletas da religião verdadeiramente religiosos? E depois dos açoites, o combate com as feras devoradoras de homens, os ataques de leopardos, de ursos de diferentes espécies, de javalis e touros queimados com ferro candente: como não ficar pasmo com a admirável paciência daquelas nobres pessoas frente a cada uma dessas feras?

2. Nós também nos encontramos presentes a estes acontecimentos e observamos como o poder divino de Nosso Jesus Cristo Salvador, de quem eles davam testemunho, se fazia presente e se mostrava claramente aos mártires: as feras devoradoras de homens tardaram muito tempo em atrever-se a tocar e até a se aproximar dos corpos dos amigos de Deus, enquanto se lançavam contra os outros que as incitavam de fora. Sem dúvida, os santos atletas foram os únicos que de modo algum foram tocados, apesar de se encontrarem de pé, desnudos e fazerem gestos com as mãos, provocando-as contra eles mesmos. Inclusive quando elas avançavam contra eles, novamente retrocediam, como se estivessem sendo rechaçadas por uma força divina.

(...)

8. Dos mártires do Egito

Assim foi também a luta dos egípcios que em Tiro salvaram publicamente seus combates pela religião.

Mas dentre eles se poderia admirar aqueles que sofreram o martírio em sua pátria19, onde homens, mulheres e crianças, em um número incalculável, depreciando a existência passageira, suportaram, pelo ensino de Nosso Salvador, diferentes gêneros de mortes: uns foram jogados ao fogo, depois dos ganchos de ferro, dos potros, dos açoites crudelíssimos e de infinitos e variados tormentos que nos fazem estremecer somente ao ouvi-los; outros, o mar os tragou; outros ofereciam valentemente suas próprias cabeças aos que as cortavam; outros, inclusive, morriam no meio das torturas; outros, a fome os consumiu, e outros, por sua vez, foram crucificados, uns como era de costume aos malfeitores, e outros ainda pior, cravados ao contrário, com a cabeça para baixo e deixados com vida até que pereciam de fome sobre o mesmo patíbulo.

9. Dos mártires de Tebaida20

1. Mas os ultrajes e dores que os mártires de Tebaida suportaram ultrapassam qualquer descrição. Eles tinham seus corpos todos dilacerados com cacos de louça ao invés de ganchos de ferro, isso até perderem a vida; as mulheres eram atadas por um pé e suspensas no ar por máquinas, com a cabeça para baixo e os corpos inteiramente nus, oferecendo a todos os olhares um dos espetáculos mais vergonhosos, o mais cruel e desumano de todos.

2. Outros, por sua vez, eram mortos amarrados a árvores e galhos. Com máquinas, juntavam os galhos mais robustos e esticavam em cada um deles as pernas dos mártires, deixando que os galhos voltassem à sua posição natural. Assim, eles inventaram o esquartejamento instantâneo daqueles contra quem faziam tais coisas.

3. Tudo isso era perpetrado não por poucos dias ou por uma breve temporada, mas por um longo espaço de anos inteiros, morrendo às vezes mais de dez pessoas, às vezes mais de vinte; em outras ocasiões, não menos de trinta, e uma vez até cerca de sessenta; e ainda houve uma vez em que, em um só dia, foram dadas à morte cem homens, com seus filhinhos e suas mulheres, condenados a vários e sucessivos castigos.

4. Nós mesmos, encontrando-nos no lugar dos fatos, vimos muitos sofrer em massa e em um só dia; uns, a decapitação, outros, o suplício do fogo até que o ferro perdesse o fio e se partisse em pedaços por puro desgaste por causa da força com que matavam, enquanto os mesmos assassinos se revezavam por cansaço.

Notas

  • 1. VII 32, 32.
  • 2. Isto é, a perseguição de Diocleciano. O texto não é esquemático: há lacunas, imprecisões, desordens arbitrárias, etc. Apesar disso, segundo os especialistas (Sommerville, Keresztes, Davies), há certos paralelismos entre os lamentos do salmista em Salmos 88, 40-46 e os acontecimentos narrados ao longo do capítulo.
  • 3. Nascido em Cesaréia da Palestina em 265 e educado na escola do douto Pânfilo, Eusébio recebeu uma sólida formação intelectual, sobretudo histórica. Eleito bispo de sua cidade, foi o homem mais erudito do seu tempo. Escreveu muitas obras de teologia, exegese, apologética, mas a sua obra mais importante foi a História Eclesiástica, em 10 volumes, fruto de 25 anos de pesquisa histórica, contínua e apaixonada. Eusébio narra, nos 7 primeiros livros, a história da Igreja, das origens até 303. Os livros 8º e 9º referem-se à perseguição iniciada por Diocleciano em 303 e concluída no ocidente em 308, tendo continuado no oriente com Galério, até o Edito de Tolerância (311) e à morte de Maximino (313). O livro 10º descreve a retomada da Igreja até à vitória de Constantino sobre Licínio e a unificação do Império (323). Antes dessa obra, Eusébio tinha recolhido e transcrito na Coleção dos Antigos Mártires uma vasta documentação (atos dos processos de mártires, paixões, apologias, testemunhos de indivíduos e comunidades) sobre os mártires anteriores à perseguição de Diocleciano; o livro foi perdido, mas Eusébio tinha retomado o tema em parte na História Eclesiástica. Poupado pela perseguição de Diocleciano (303-311), Eusébio foi dela testemunha de importância excepcional, porque viu pessoalmente a destruição de igrejas, as fogueiras de livros sagrados e muitas cenas selvagens de martírio na Palestina, na Fenícia e até na distante Tebaida do Egito, deixando-nos de tudo, uma comovente memória de grande valor histórico. Apesar de suas lacunas e erros, a História Eclesiástica continua “a obra histórica mais conhecida e digna de fé e, muitas vezes, a única fonte supérstite de informação” (PENNA, Angelo, Enciclopedia Cattolica, Vaticano, 1950, vol. V, p. 842-854). Ver InternetAs catacumbas cristãs de Roma. Nossa tradução foi feita a partir do texto EUSÉBIO DE CESÁREA. Historia Eclesiástica II. Texto bilíngüe (version española, introduccion y notas de Argimiro Velasco-Delgado). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1997.
  • 4. Secularização de palavras neotestamentárias. Eusébio esvazia-as de seu significado escatológico original e lhes dá um sentido de “escatologia realizada”.
  • 5. A retórica faz com que Eusébio exagere a boa disposição dos imperadores, “esquecendo” o que disse antes de Aureliano e seus predecessores.
  • 6. Provavelmente ele se refere à esposa de Dicleciano, Prisca, e a sua filha Valéria, esposa de Galério, as quais, segundo Lactâncio (De mort. Pers. 15, 1), eram cristãs, embora seguramente não passassem de catecúmenas.
  • 7. Cavalo de madeira no qual se torturavam os acusados ou condenados.
  • 8. É Lactâncio (op. cit., 13) quem descreve como morreu esse cristão. Eusébio diz que foi o primeiro a morrer e silencia o nome dos que o seguiram sem que se saibam suas razões.
  • 9. Heb 11, 26.
  • 10. Nicomédia.
  • 11. De nome Pedro.
  • 12. Diocleciano e César Galério.
  • 13. Segundo Lactâncio (op. cit., 21,7), o suplício do fogo lento foi pela primeira vez autorizado por Galério contra os cristãos.
  • 14. Isto é, ele morreu sem ter sido condenado à morte; o primeiro edito não autorizava este extremo. Os martiriólogos o comemoram no dia 12 de março.
  • 15. Isto é, os demais servidores imperiais e companheiros de Pedro.
  • 16. A festa de Santo Antimo é celebrada no ocidente no dia 17 de abril. No Martiriólogo Sírio seu nome aparece no dia 24 de abril.
  • 17. Constantino se encontrava então presente em Nicomédia. Disse posteriormente (em sua Oratio ad sanctorum coetum, 25) que um raio provocou o incêndio. Eusébio destaca aqui os falsos rumores que acusavam os cristãos. Lactâncio (op. cit., 14) afirma que Galério, insatisfeito com o teor do edito, provocou o incêndio para acusar os cristãos e forçar Diocleciano a persegui-los sangrentamente, que conseguiu somente depois de provocar outro incêndio, quinze dias depois – Constantino e Eusébio só mencionam um – fato que acabou com a resistência do primeiro augusto.
  • 18. Nessa perseguição muitos foram os mártires afogados, como se verá adiante.
  • 19. O norte do Egito, por oposição a Tebaida, distrito do sul.
  • 20. Cidade do Egito, situada a cerca de 740 km ao sul de Cairo, famosa pelos templos de Karnac e de Luxor. Foi capital do Egito durante o Novo Império. Tebaida era uma das três divisões administrativas do Antigo Egito, também chamada de Alto Egito, e Tebas era sua capital. Tornou-se célebre como berço e centro de irradiação da vida eremítica nos séculos IV e V.