Octo Quaestiones - 5ª questão
Guilherme de Ockham (c. 1288-1348)
Trad.: José Antônio de C. R. de Souza
Capítulo 1
Em quinto se indaga se, ao suceder hereditariamente, um rei obtém algum direito sobre os bens temporais em razão de ser ungido, consagrado e coroado por um eclesiástico, ou somente em virtude de receber uma graça espiritual?
Essa questão contém dois artigos. O primeiro trata acerca do direito sobre os bens temporais, o segundo a respeito da graça espiritual. Quanto ao primeiro podem ser elaborados três artigos, dos quais, o inicial questiona se, ao suceder hereditariamente, um rei obtém algum direito sobre os bens temporais, em razão de ser ungido por um eclesiástico; o segundo indaga a mesma coisa, mas por ser tal rei consagrado por um eclesiástico, e o terceiro, pergunta a mesma coisa, mas, porém, devido a tal rei ser coroado por um eclesiástico.
No tocante ao primeiro artigo há uma opinião, segundo a qual, ao suceder hereditariamente, um rei recebe algum direito sobre os bens temporais pelo fato de ser ungido por um eclesiástico. Em favor desta opinião alega-se que do mesmo modo como a unção real é requerida para que alguém seja considerado rei, assim também, se requer a unção sacerdotal para o sacerdote e a episcopal para o bispo. Ora, determinados poderes são recebidos mediante a unção sacerdotal e a unção episcopal. Ora, semelhantemente, recebe-se algum poder através da unção real. Entretanto, não se recebe um poder espiritual. Logo, ao ser ungido, o rei recebe algum poder temporal. Logo recebe algum direito sobre os bens temporais.
[155] Item, como a natureza não faz nada inutilmente, [cfr. Aristóteles, Politica, I, 2, 1253ª, ed. SUSEMIHL: 8], assim, razoavelmente, também o celebrante de uma cerimônia religiosa nada faz inutilmente, por isso, a unção real não é feita inutilmente. Ora, tal unção seria feita inútil e ridiculamente, se através dela, tal rei não recebesse algum poder. Ora, por seu intermédio tal rei recebe algum direito sobre os bens temporais. Logo, etc.
Capítulo 2
A outra opinião sustenta que, por ser ungido por um eclesiástico, ao suceder hereditariamente, um rei não recebe algum direito sobre os bens temporais. Esta opinião tem duas conclusões, das quais a primeira é que pelo fato de ser ungido, tal rei não recebe algum poder; a segunda é que em razão de ser ungido por um eclesiástico, não o recebe.
Em favor da primeira conclusão, alega-se que num dado reino, ao sucederem hereditariamente, todos os reis possuem o mesmo poder sobre os bens temporais, pois, caso contrário, um não seria verdadeiro sucessor e herdeiro do outro. Ora, em muitos reinos aconteceu que, ao sucederem hereditariamente, uns reis foram ungidos, outros não, pois, alguns deles eram pagãos e infiéis, enquanto outros, eram fiéis cristãos e foram ungidos, uma vez que, os reis cristãos normalmente são ungidos. Logo, não é pelo fato de um rei ser ungido, ao suceder hereditariamente, que ele recebe algum direito sobre os bens temporais.
Em favor da segunda conclusão, a saber, que, em razão de ser ungido por um eclesiástico, ao suceder hereditariamente, um rei não recebe nenhum direito sobre os bens temporais, alega-se o seguinte: tal é a unção, pouco importa quem a confira, tal é o seu efeito. Assim, o Batismo, seja ele conferido por um eclesiástico ou por um leigo, ou ainda, por uma mulher, tem o mesmo efeito. Logo, a unção real tem o mesmo efeito, seja ela conferida por um eclesiástico ou por outrem. Logo, não é pelo fato de a unção régia ser conferida por um eclesiástico que ela dá ao ungido algum poder sobre os bens temporais.
Mas alguém poderá insistir, afirmando que a unção real não pode ser conferida senão por um eclesiástico, do mesmo modo que as unções sacerdotal e episcopal. Entretanto, isto poderá ser facilmente rebatido, dizendo que a unção real pode ser conferida por um não eclesiástico. Com efeito, a unção real foi introduzida através do Antigo Testamento, e à época do Antigo Testamento a unção real, às vezes, era conferida ou por um sacerdote ou por um levita, os quais, à época do Novo Testamento são sucedidos pelos eclesiásticos.
[156] De fato, Samuel, que foi levita, mediante um preceito de Deus, ungiu Saul e Davi como reis. [Cfr. respectivamente 1Sm 10, 1; 16, 13] O sacerdote Sadoc ungiu Salomão como rei. [Cfr. 1Rs 1, 39]. Às vezes, porém, a unção real era efetuada por outrem. Foi ordenado a Elias que ungisse Hasael rei da Síria, [cfr. 1Rs 19, 15-16] e que Jéu, filho de Nansi, fosse ungido rei sobre Israel. Na verdade, como se lê no 4º Livro dos Reis, [2 Rs] capítulo 9 [4-6] foi um jovem profeta, que ungiu Jéu rei sobre Israel. Por isso, agora, um rei também pode ser ungido por um não eclesiástico.
Capítulo 3
Esse ponto de vista responde aos motivos alegados em favor da primeira opinião [Cfr. capítulo 1, § 3]. De fato, refuta-se o primeiro argumento afirmando que, no tocante a tudo não é necessário, pois, assim como a unção real é requerida para que alguém possa ser considerado rei, igualmente também, as unções sacerdotal e episcopal são respectivamente requeridas para que alguém possa ser considerado sacerdote e bispo.
Com efeito, a unção sacerdotal e a episcopal passaram a ocorrer mediante uma instituição divina. Ora, embora à época do Antigo Testamento, a unção real tivesse sido introduzida mediante um preceito de Deus, entretanto, à época do Novo Testamento, originou-se exclusivamente através da instituição humana. Por isso, a unção não confere nenhum poder sobre os bens temporais, salvo aquilo que tiver sido livremente estabelecido pela vontade humana. Daí, se mediante a disposição humana não tiver sido estabelecido que a unção real confira ao rei um poder sobre os bens temporais, ela não lhe conferirá nenhum poder.
Ao segundo argumento responde-se, dizendo que, embora a unção real não confira direito nenhum sobre os bens temporais, ela não é feita inutilmente do mesmo modo que aquelas outras cerimônias que são feitas por ocasião das várias solenidades.
De fato, a unção real pode ser feita com o propósito de que o rei goze de mais respeito e deferência, do mesmo modo que, por ocasião da unção e da coroação dos reis fazem-se grandes festins e outras solenidades, a fim de que gozem de mais honra e para que a magnificência real seja exteriorizada, de acordo com o que está escrito no Livro de Ester, capítulo 1 [3-4], em que está escrito que o rei Assuero ofereceu um grande festim, para ostentar as riquezas da glória do seu reino, a grandeza e o fausto do seu poder.
Capítulo 4
De acordo com a primeira opinião, refutam-se os motivos aduzidos no capítulo II referentes à segunda opinião. Com efeito, responde-se de vários modos ao primeiro argumento que admite que em muitos reinos ocorreu que, ao se sucederem, uns reis foram [157] ungidos e outros não.
De um lado, há quem diga que pelo fato de os monarcas pagãos não terem sido ungidos, por isso não foram reis verdadeiros, dado que, como afirma Inocêncio IV, fora da Igreja não há verdadeiro domínio, nem poder ordenado e concedido, mas somente permitido.
Mas, ao contrário, afirma-se que os monarcas pagãos que não foram ungidos, foram reis verdadeiros, pois, uma vez que os pagãos não estão obrigados a observar as constituições eclesiásticas, de acordo com o que está prescrito no Livro Extra das Decretais, título de divortiis, capítulo Gaudemus, [Cfr. ed. A. FRIEDBERG, Graz, 1959, vol. II: 723 e também Decreto, causa 28, questão 1, ed. A.FRIEDBERG, Graz, 1959, vol. I: 1079], assim também, não estão obrigados a observar os costumes dos cristãos, entretanto, estes não podem estabelecer reis verdadeiros, salvo se vierem a ser ungidos, pelo fato de que são cristãos, e nesta condição, devem observar os costumes dos cristãos, do mesmo modo que também têm o dever de respeitar os costumes eclesiásticos.
Ao segundo argumento, através do qual comprova-se que, ao suceder hereditariamente, em razão de ser ungido por um eclesiástico, um rei não recebe direito algum sobre os bens temporais, posto que a unção real pode ser conferida por uma outra pessoa que não seja um eclesiástico, refuta-se, dizendo que a unção real não pode ser conferida senão por um eclesiástico, pois aquelas coisas que se enquadram no âmbito da lei divina, não devem ser feitas senão pelos ministros da lei divina, como, de certo modo, à época do Antigo Testamento, o foram os sacerdotes e os levitas e, agora, à época do Novo Testamento, o são os eclesiásticos.
E admitindo-se que Elias teve de ungir alguns indivíduos como reis, e o filho do profeta, que não era sacerdote nem levita, ungiu Jéu rei sobre Israel, responde-se, afirmando que não consta do cânon bíblico que Elias e o acima referido filho do profeta não fossem sacerdotes nem levitas.
Capítulo 5
O segundo artigo relativo à primeira parte da questão principal considera se, ao suceder hereditariamente, pelo fato de ser consagrado por um eclesiástico, um rei obtém algum poder direito sobre os bens temporais. Com referência ao mesmo, há opiniões diferentes, à semelhança do que foi visto no primeiro artigo, as quais, normalmente se fundamentam em argumentos mais ou menos idênticos aos anteriormente examinados.
Por isso, passo a tratar do terceiro artigo em que se indaga se, ao suceder hereditariamente, em razão de ser coroado por um eclesiástico, um rei obtém algum direito sobre os bens temporais. Ora, esse artigo parece ainda oferecer uma dificuldade especial, pois, tanto os reis cristãos e fiéis quanto os pagãos e infiéis são coroados.
Quanto à indagação predita há opiniões divergentes.
Uma delas propõe que, ao suceder hereditariamente, em razão de ser coroado por um eclesiástico, um rei obtém algum direito sobre os bens temporais. Em seu favor alega-se o seguinte argumento: quanto mais importante é o ofício, tanto maior há de ser a solenidade a ser feita quando alguém recebe esse ofício, sem a qual não se é investido no mesmo.
Ora, a dignidade [158] real é mais importante do que a militar. Pois bem, quando alguém recebe a dignidade militar ocorre determinada solenidade sem qual ninguém se torna soldado. Logo, com muito mais razão, há que se fazer alguma solenidade, quando alguém se torna rei, sem a qual ninguém é considerado como tal. Ora, aquela solenidade é a coroação, pois, ao que consta, ela é a única solenidade comum a todos os reis, tanto os pagãos quanto os cristãos.
Logo, é em razão de tal solenidade que alguém que é coroado, obtém o ofício régio. Ora, não há dignidade real sem que, igualmente haja um direito de exercer um poder sobre os bens temporais. Logo, ao suceder hereditariamente, em razão de ser coroado, um rei obtém algum direito sobre os bens temporais.
Capítulo 6
Uma outra opinião sustenta que, ao suceder hereditariamente, em razão de ser coroado por um eclesiástico, isto não é uma condição necessária para que um rei obtenha algum direito sobre os bens temporais, embora, em conseqüência de tal ato, possa ocorrer que venha a obter algum direito sobre os bens temporais.
Com vista a esclarecer tal opinião, declara-se que é preciso saber que, conquanto, haja diversos tipos de principados reais, conforme Aristóteles diz na Política [III, 14, 1285 ed. SUSEMIHL: 213], entretanto, nenhum principado real é natural, embora, em muitos aspectos, o principado real compare-se com o principado natural, mas, todo principado real provém duma instituição preceptiva divina ou humana.
Que um principado real possa provir duma instituição preceptiva divina é evidente no Livro dos reis, [1Sm 8, 11-18], no passo em que se lê que, Deus estabeleceu o principado real, por intermédio de Samuel, revelando qual devia ser o direito do rei, que haveria de ser constituído com o tal.
Igualmente, que um principado real possa provir duma instituição humana é evidente tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, bem como em outras histórias e gestas, nas quais se lê de que modo muitos se tornaram reis, mediante a vontade dos homens.
É por isso que, para inteirar-se de que modo, quando e onde, ao suceder hereditariamente, um rei tem algum direito sobre os bens temporais, se for possível, deve-se procurar saber de que maneira, desde sua origem, tal principado real foi estabelecido. Entretanto, se não houver um registro a respeito de como isso ocorreu, há que prestar atenção ao costume de que se tem lembrança, o qual deve ser respeitado, a menos que seja sem sentido e iníquo, e contrarie as leis superiores, as quais esse rei tem o dever de observar.
Mas, se por algum motivo qualquer, ou se ignorar qual é esse costume, ou se desde a origem do principado, o primeiro rei tiver morrido antes de ter sido estabelecido de que modo lícito o sucessor obteria o reino, seja através do direito de herança,seja por meio daqueles que estabeleceram a realeza, ou se, ao suceder hereditariamente, tiver sido estabelecido o que o rei terá de respeitar, há que acatar e observar o costume que for mais razoável e útil ao bem comum de todo o reino, pois, do mesmo modo como se deve dar preferência às coisas mais benéficas, assim também há que preferir as coisas mais razoáveis e úteis, a não ser que, por acaso, ao suceder hereditariamente, o rei deseje e possa abrir mão do direito que poderia legitimamente reivindicar.
Do que foi exposto, responde-se, então, ao presente artigo, afirmando: como o principado real estabelecido humanamente, o qual, aliás, sob determinado aspecto, é todo tipo de principado que existe nesta vida, dependa e proceda da decisão humana, cuja causa pode muito bem variar, ao suceder hereditariamente, pelo fato de ser coroado ou por um eclesiástico ou por outrem, isto não é uma condição necessária para que um rei obtenha algum poder direito sobre os bens temporais.
De fato, o principado real pode ser instituído através de três modos. Um deles é aquele mediante a vontade e a disposição do povo, dado que qualquer povo que não tem um rei, povo esse que não é súdito do imperador ou de monarca ou senhor, por força do direito dos povos pode constituir um rei para si. [Dig. I, 1,5]
Um outro modo, através do qual um principado real pode ser instituído é aquele mediante a decisão do imperador ou de um rei, os quais possuem diversos povos sujeitos a si. Com efeito, o imperador pode estabelecer novos reis para as províncias que não os possuem. Igualmente, um rei pode estabelecer novos reis, tendo sob a sua autoridade diversas províncias, desde que, a respeito, não haja nenhuma uma determinação legítima que o proíba, ou da parte do povo ou de seu predecessor ou de seu superior.
Um terceiro modo, por intermédio do qual, um principado real pode ser instituído é aquele em que o adquirente passa a ter um domínio pleno sobre uma região que possa convenientemente possuir um rei. De fato, se algum senhor adquire pleno domínio sobre determinada província, o que absolutamente não está proibido por seu superior, através da compra ou de uma guerra justa, ou ainda, de outra maneira, então, ele pode assumir para si o título de rei e a dignidade real sobre aquela província ou dá-los a outrem.
Ora, se um principado real é instituído através do primeiro modo, da mesma maneira como o povo tem o poder de ordenar que os reis venham a ser escolhidos ou por meio da sucessão hereditária ou mediante a eleição, poder esse que se fundamenta na vontade do povo, assim também, reside em sua vontade o poder de legislar que os reis que vierem a suceder hereditariamente, incontinenti antes da coroação e de qualquer outra solenidade, ao suceder o antecessor falecido tenha todo direito devido sobre os bens temporais, ou que só venha a obtê-lo ou por intermédio da coroação ou de outra solenidade que costuma ser feita. A razão disto é que, ao vender ou ao doar algo que lhe pertença, qualquer pessoa pode estabelecer uma condição ou introduzir uma cláusula que deseje [160], uma vez que, ele administra, dispõe e arbitra sobre os próprios bens. [Cod. 4, 35, 21, C. Mandati, in re mandata].
Semelhantemente, aquelas pessoas que voluntária e espontaneamente instituem um principado real e se submetem a um rei e aos seus sucessores, ao fazer isso, podem introduzir uma cláusula que desejem, desde que não seja razoável e iníqua nem contrária ao direito do superior.
Por isso, submetendo-se a si próprio a alguém na condição de rei bem como e aos seus herdeiros, ao fazer isso, um povo pode introduzir uma cláusula em que fique estipulado que qualquer rei que vier a suceder hereditariamente o predecessor defunto, incontinenti obtenha todo direito que é comum exercer sobre os bens temporais, sem que, para tanto, venha a precisar de nenhuma solenidade.
Outrossim, pode introduzir uma cláusula em que fique determinado que, antes da coroação, um rei que vier a suceder hereditariamente um outro não tenha nenhum direito sobre os bens temporais.
Pela mesma razão, também se diz que, ou o imperador ou um rei ao estabelecer alguém como monarca num reino, ou ainda, um senhor que adquire pleno domínio sobre alguma região, ao constituir alguém com o rei, pode impor aos seus sucessores uma ou outra lei, segundo a qual, ao suceder hereditariamente, incontinenti ou não imediatamente, um rei possua todo direito que comumente se exerce sobre os bens temporais.
Portanto, mediante ou através da coroação pode e não pode ser conferido algum direito sobre os bens temporais, e se por razão semelhante não é conferido nenhum poder ao monarca, a coroação não acrescenta à solenidade senão que o rei goze de maior honra, amor e respeito. Isto é confirmado pelo seguinte: as mulheres são coroadas e passam a ser chamadas de rainhas, entretanto, graças a tal coroação não recebem nenhum direito sobre os bens temporais. Logo, não é da natureza da coroação, isto é, por seu intermédio, que é dado algum direito ao rei sobre os bens temporais.
Igualmente, por argumento semelhante, comprova-se também que através da unção e da consagração não é dado nenhum direito ao rei sobre os bens temporais, pois, embora as rainhas sejam ungidas e consagradas, contudo, não recebem nenhum direito sobre os bens temporais, por força da unção e da coroação, pois, segundo as leis, ‘as mulheres estão impedidas de exercer todos os ofícios civis e públicos’. É por isso que não ‘podem ser juizes nem proceder como um magistrado, nem adotar, nem postular’ [Dig. 50, 17, 2] nem testemunhar e tampouco ser procuradoras e árbitros, conquanto, de acordo com o costume local, nalgumas regiões possam julgar.
Capítulo 7
Quanto ao segundo artigo principal da questão em exame, isto é, se ao suceder hereditariamente, em razão de ser ungido, consagrado e coroado por um eclesiástico, um rei obtém uma graça espiritual, há opiniões diferentes.
Uma delas propõe que, por causa da unção e da consagração, um rei especialmente obtém uma graça [161]. Ao sustentá-la, alega-se que não se deve reverência, honra e respeito especial a ninguém, senão devido ao ofício secular ou espiritual que essa pessoa exerce.
Ora, de acordo com o que está escrito no 1º Livro dos Reis [1º Livro de Samuel], capítulo 24 [7], conforme testemunha o rei Davi, deve-se reverência especial, honra e respeito ao rei ungido e consagrado, pois, ele não quis erguer sua mão contra Saul e matá-lo, dado que este era o ungido do Senhor. De fato, ele disse ‘Deus me guarde de que faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor, que eu estenda a mão contra ele, porque ele é o ungido do Senhor’. Destas palavras colhe-se que foi por esse motivo que Davi reverenciava Saul, pois, ele era ungido, quer dizer, o ungido do Senhor.
Por isso, Davi teve enorme consideração para com ele, ‘a ponto de o seu coração haver batido mais rapidamente, porque tinha cortado a orla do manto de Saul’. Igualmente, de acordo com o que se encontra escrito no 2º Livro dos Reis [2º Livro de Samuel] , capítulo 1 [14-16], foi pela mesma razão que matou o adolescente que lhe havia sugerido que assassinasse Saul, ao dizer-lhe ‘Como não temeste erguer a mão para matar o ungido do Senhor ? E chamando um dos seus criados disse-lhe: vem cá, lança-te sobre esse homem, o qual o feriu e ele morreu. E Davi disse-lhe: o teu sangue caia sobre a tua cabeça, porque a tua própria boca falou contra ti, dizendo: eu matei o ungido do Senhor’.
Se alguém afirmar, pois, que foi por esse motivo, isto é, por causa da dignidade real, que Davi tratou Saul com tanta reverência e honra e o respeitou, dado que graças à unção havia se tornado rei, tendo-lhe prestado tanta deferência e querendo que outros lhe prestassem, refuta-se tal opinião, dizendo que, segundo as frases acima alegadas, elas claramente sugerem que, pareceu a Davi que tais coisas deviam ser prestadas a Saul, não por causa da dignidade real, mas devido à própria unção, dado que havia sido divinamente instituída.
Isto também pode ser comprovado pelo fato de que, no tocante aos outros reis que eram simplesmente reis, mas não haviam sido ungidos, Davi não lhes ter prestado tais coisas nem ter julgado que se lhes deviam ser prestadas por outrem, pois, até mesmo chegou a pensar que tinha de matar alguns deles.
Em segundo lugar, em favor de tal opinião pode ser alegado que a cura sobrenatural de uma enfermidade física é uma graça espiritual. Ora, segundo consta, por intermédio da unção real, a certos reis, nomeadamente o da Inglaterra e o da Francia, é sobrenaturalmente conferido o poder de curar e de sarar as escrófulas daqueles que padecem dessa enfermidade. Logo, por intermédio de tal unção, o rei obtém uma graça espiritual.
Capítulo 8
Consoante a outra opinião, declara-se que, ao suceder hereditariamente, mediante a unção, a consagração e a coroação real, um rei não obtém alguma graça espiritual. Sustenta-a o argumento seguinte: alguém obtém uma graça [162] espiritual, exclusivamente através dos sacramentos, os quais foram divinamente instituídos, não por intermédio de algo humanamente estabelecido.
Ora, a unção, a consagração e a coroação reais, que são conferidas aos reis que sucedem hereditariamente, não foram divinamente instituídas, mas antes humanamente estabelecidas, seja porque não o foram à época do Antigo Testamento – pois, então, a Igreja estaria judaizando ao ordenar e fazer tais cerimônias – seja também porque tampouco o foram, de acordo com o que está escrito no Novo Testamento, como ficará evidente àquele que vier a lê-lo.
Em segundo lugar, alega-se que mediante a unção, que se fazia à época do Antigo Testamento, por força dum preceito de Deus, o rei não obtinha uma graça espiritual.
Logo, com muito mais razão, ao suceder hereditariamente, através da unção, consagração e coroação que lhe são conferidas por força de uma disposição humana, e não por causa dum preceito divino, o rei não obtém uma graça espiritual. A conseqüência da premissa é óbvia, pois, é menos provável que alguém obtenha uma graça espiritual por força de uma disposição humana do que por uma instituição divina.
Comprova-se a premissa antecedente dizendo que, à época do Antigo Testamento, alguém não obtinha uma graça espiritual, mediante algo que era comum aos fiéis e aos infiéis.
Ora, à época do Antigo Testamento, conquanto fosse um preceito de Deus, a unção também era conferida a um rei infiel, pois, como foi anteriormente referido no capítulo II, Deus ordenou que o profeta Elias ungisse o infiel Hazael rei da Síria. Logo, à época do Antigo Testamento, mediante a unção, o rei não obtinha uma graça espiritual.
Capítulo 9
De acordo com os argumentos que sustentam essa opinião, responde-se, agora, aos motivos alegados em favor da primeira conjectura. [Cfr. capítulo 7]
Com efeito, refuta-se o primeiro motivo, afirmando que, à época do Antigo Testamento, devia-se reverência especial, temor e respeito ao rei ungido, não porque devido à própria unção ele tivesse obtido uma graça espiritual, mas antes pelo fato de que também, mesmo sem gozar de tal graça espiritual, devia-se reverência, temor e respeito ao ungido.
De fato, embora ao ter sido ungido, Saul tivesse recebido tal graça, contudo, quando foi entregue ao julgamento dos réprobos [Rm 1, 28] e vexado por um espírito mau, perdeu-a [1Sm 16, 10-15], mas assim mesmo, depois, Davi quis que ele gozasse e fosse tratado com reverência, honra e respeito. Por conseguinte, eram-lhe devidos a reverência, a honra e o respeito não por causa duma graça espiritual, por força de uma instituição divina, em razão de haver recebido a unção, e pelo fato de através dela ter-lhe sido conferida a dignidade real, da qual não foi destituído, enquanto viveu.
No entanto, o que Samuel disse a Saul, no Primeiro Livro dos Reis [Primeiro Livro de Samuel] capítulo 15 [23], a saber, ‘ora, porque, tu rejeitaste a palavra do Senhor, o Senhor te rejeitou para que não sejas rei’, e outras frases semelhantes não devem ser entendidas como se, então, Saul tivesse sido privado do reino, mas antes que, naquele momento, foi proferida uma sentença de acordo com a qual, depois dele, a sua posteridade não havia de reinar.
[163] Com efeito, aquilo que segue: ‘Hoje o Senhor arrancou de ti o reino de Israel’ [1Sm, 15, 28], nas Histórias, está explicado como que significando ‘da tua posteridade’. [Pedro Comestor, Hist. schol., PL 198: 1310]. Daí também, aquela frase, proferida por Samuel, que vem logo adiante ‘e o entregou a um teu próximo melhor do que tu’, [1Sm, 15, 28], não dever ser entendida como se, naquele instante, o reino efetivamente tivesse efetivamente sido entregue a Davi, mas antes que, graças à presciência divina, foi ordenado que, depois da morte de Saul, o reino havia de ser entregue ao próprio Davi, e que fosse completamente retirado da sua descendência. Semelhantemente, as palavras precedentes devem ser entendidas significando que os filhos de Saul não haveriam de reinar depois dele.
Portanto, segundo a vontade divina, Saul reinaria apenas enquanto vivesse. Por isso, Davi tratou-o com reverência e honra, daí não poder vir a ser deposto do trono e tampouco vir a ser morto por ele. No entanto, por força do justo julgamento divino, alguns outros reis haviam de ser mortos, e por esse motivo, Davi não os tratou com reverência e respeito.
Redargüi-se o segundo motivo apresentado, dizendo que se os reis da Inglaterra e da Francia possuem a graça de curar os doentes das escrófulas, não a têm por causa da unção real, porquanto, embora muitos outros reis sejam ungidos, absolutamente não foram aquinhoados com tal graça, mas antes, eles possuem-na devido a uma outra causa, que nos é desconhecida, a qual tampouco pode ser descoberta pelo ser humano.
Por conseguinte, de acordo com tal opinião, é preciso saber que, em que pesem a boa intenção e a finalidade devido às quais um rei é ungido, consagrado e coroado, quais sejam, tais atos são-lhe conferidos para a honra de Deus e para a utilidade do povo que lhe está subordinado, desde que ele viva em caridade, e assim venha a merecer tal graça ou o seu aumento, no entanto, aqueles atos não são especialmente capazes de conferir-lhe algum dom espiritual, mas devido à boa intenção com que são feitos, também podem ser espiritualmente úteis.
Semelhantemente, todas as cerimônias, inclusive as seculares, efetuadas com os novos soldados, ou aquelas outras realizadas ou por ocasião das núpcias, ou das guerras, ou das entronizações dos prelados e igualmente dos potentados seculares, ou a dos professores ao passarem a exercer o magistério, e ainda, quaisquer outras, que são feitas com pompa, também podem ser espiritualmente úteis, desde que sejam realizadas, em louvor a Deus, conforme o ritual apropriado e as circunstâncias requeridas. Elas devem ser consideradas louváveis, úteis e necessárias, e ainda, respeitadas de acordo com a devoção e a veneração devidas.
Capítulo 10
Consoante a primeira conjectura, responde-se às alegações apresentadas em favor da segunda opinião. [Cfr. início do capítulo 8]
Com efeito, refuta-se a primeira delas, afirmando que alguém pode também conseguir uma graça espiritual, através dos sacramentos ou [164] dos sacramentais humanamente instituídos. De fato, ao que parece, embora a aspersão com a água benta tenha sido apenas humanamente instituída, entretanto, por seu intermédio, alguém pode conseguir uma graça espiritual.
Semelhantemente, alguém pode obter uma graça espiritual através do exorcismo e da catequese. De fato, mediante a catequese o catequizando obtém os rudimentos da fé, e por intermédio do exorcismo, expele-se dos exorcizados o poder que o diabo exercia sobre eles. Daí, a respeito da catequese, no IV Livro das Sentenças, Distinção 6, Rábano Mauro e o Mestre das Sentenças emitirem a seguinte opinião: ‘Antes do batismo dos catequizandos, o ofício deve ter sido confiado àquele que vai batizar, a fim de que o catecúmeno receba os rudimentos da fé, e em seguida, saiba a quem tornar-se-á devedor’. Sobre o exorcismo, conforme aí mesmo o Mestre cita, Agostinho diz ‘as crianças são assopradas e exorcizadas, para que delas se extirpe o poder do diabo, de modo que não mais se lance com toda a sua força sobre elas, a fim de que venham a ser batizadas’. [De symbolo et fide, 1, 2, PL 40: 628]
Do mesmo modo, alguém recebe uma graça espiritual através do subdiaconato e do acolitado, porque são ordens eclesiásticas, embora não tenham sido divinamente instituídas, mas apenas humanamente. Daí, no Decreto, Distinção 21, estar escrito ‘Lemos que os levitas foram ordenados pelos Apóstolos. Dentre eles, o bem-aventurado Estêvão foi o mais importante de todos. Com o passar do tempo, a Igreja instituiu para si os subdiáconos e os acólitos. [Graciano, capítulo 1, distinção 21: 67].
Mas aí mesmo, a glosa objeta contra, declarando ‘Isto não parece estar correto, porque, conforme está escrito na Distinção XXXV, capítulo ‘Episcopus’, no tempo dos Apóstolos houve alguns subdiáconos, dado que’ aquele capítulo ‘faz parte do cânon dos Apóstolos’. E responde à objeção, acrescentando ‘Mas diga, então, qual tipo de subdiaconato havia, posto que ainda não havia uma ordem sagrada’, donde, parece que o subdiaconato não foi humanamente estabelecido, mas divinamente instituído.
Ora, conforme esta opinião pode-se dizer que Deus não teria estabelecido imediatamente o subdiaconato, mas antes que a Igreja o teria instituído, embora tivesse existido no tempo dos Apóstolos, porque, naquela ocasião também poderia ter sido estabelecido por outros prelados, não os contrariando, mas com a aprovação deles.
Igualmente, [o subdiaconato] poderia ter sido instituído pelos próprios Apóstolos, não como se tal ato lhes tivesse sido divinamente inspirado, conforme especialmente ocorreu-lhes ao instituir os levitas, mas antes, teriam tomado aquela medida através da providência humana, mediante a qual agiam, ao considerarem que ela era útil à Igreja.
É por isso que a [165] instituição do subdiaconato não goza do mesmo peso que a dos levitas, pois, nem todos os atos dos Apóstolos tiveram o mesmo peso, pelo que não se lhes deve prestar a mesma reverência, do mesmo modo como nem todas as palavras e escritos dos Apóstolos possuem o mesmo peso, nem é lhes necessário prestar a mesma reverência e respeito. De fato, certas palavras e escritos deles estão no cânon bíblico, mas, na verdade, outros aí não se encontram. Ora, consoante com o que está explicado em toda a Distinção 9, os escritos que se acham no cânon bíblico têm mais autoridade do que aqueles que aí não se encontram.
Portanto, conforme é evidente na Distinção 16, as palavras e os escritos dos Apóstolos, que não se encontram no cânon bíblico, acerca dos quais normalmente há enorme dúvida e altercações se efetivamente o são de sua autoria, e de que modo devam ser acolhidos, não têm peso idêntico àqueles que realmente são-lhes atribuídos, dado que antes podem ser considerados como decorrentes da prudência humana do que à imediata inspiração divina.
Responde-se à segunda alegação aduzida em favor da segunda conjectura, apresentada no capítulo VIII, dizendo que, à época do Antigo Testamento, um rei obtinha uma graça espiritual, por intermédio da unção real, se não houvesse algum um obstáculo para tanto, principalmente, a infidelidade ou desprezo [a Deus], daí, os reis fiéis terem conseguido tal graça, não os infiéis.