A Anamnese Estética de Umberto Eco (1932-2016)
Conferência apresentada no IV Colóquio Internacional de Filosofia Medieval e I Congresso Internacional de Artes e Filosofia – Arte, Crítica e Mística, evento organizado pelos mestrados de Artes e de Filosofia da UFES, no dia 23.10.2014.
In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20 (2015/1). Arte, Crítica e Mística – Art, Criticism and Mystique. Barcelona: Institut d’Estudis Medievals, UAB, Jan-Jun 2015, p. 234-251.
In: COSTA, Ricardo da. Impressões da Idade Média. São Paulo: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017, p. 205-222.
Resumo: A proposta desse trabalho é apresentar e analisar as ideias estéticas de Umberto Eco (1932-2016) em sua obra Arte e Beleza na Estética Medieval (1987), particularmente as sensibilidades e os interesses estéticos dos medievais nos temas da metafísica da luz (claritas), o simbolismo e o alegorismo, além da visão estética do universo. Para isso, utilizaremos o conceito de anamnese de Eric Voegelin (1901-1985), exposto em sua obra ANAMNESE – Da teoria da História e da Política, em que o autor aplica sua filosofia da consciência à dimensão existencial restrospectiva, somado às considerações estéticas do filósofo Roger Scruton (1944-2020).
Palavras-chave: Umberto Eco – Estética Medieval – Anamnese – Idade Média.
Abstract: The purpose of this paper is to present and analyze the aesthetic ideas of Umberto Eco (1932-2016) in his book Art and Beauty in the Middle Ages (1987), particularly the aesthetic sensibilities and interests of medieval themes in the metaphysics of light (claritas), symbolism and allegory, and the aesthetic vision of the universe. For this we will use the Anamnesis Eric Voegelin's concept, exposed in their work – ANAMNESIS – From Theory of History and Politics (2002) – in which the author applies his philosophy of consciousness to your retrospective existential dimension, added to the aesthetic's considerations by the philosopher Roger Scruton (1944-2020).
Keywords: Umberto Eco – Medieval Aesthetics – Anamnesis – Middle Ages.
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Anamnesis, by Olivia Margarita Brown. O elegante personagem quinhentista projeta seu resignado olhar para o infinito. Sua mão esquerda acaricia um dos botões de seu gibão bordado, gesto semelhante à delicada postura da Primavera de Stabiae, afresco encontrado na antiga cidade romana destruída pelo Vesúvio em 79 a.C. (atualmente no Museo Archeologico Nazionale di Napoli, inv. nr. 8834).1 Será um gesto de solitária resignação ou angustiante solidão? Seja como for, enquanto seu chapéu descansa sobre seu colo, seu olhar aristocrático contempla o que passou. Essa resolução nostálgica e contemplativa foi uma das formas filosóficas preferidas, de Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) a Voltaire (1694-1778), de presenciar a passagem do tempo, o porvir, com respeito à Tradição, e que deu origem à várias e esplendorosas manifestações artísticas.
I. Resgate ou Elegia?
É natural nascer no espírito dos filósofos autênticos certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos seguintes termos: há de haver para nós outros algum atalho direto, quando o raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-no de uma vez por todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que seja (...)
Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar o conhecimento puro de alguma coisa, teremos que separar-nos do corpo e considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é, depois de mortos, conforme nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos (os grifos são meus).
PLATÃO. Fedão, 66b-e.2
Anamnese (ἀνάμνησις). Em Platão (c.428-348 a.C.), um modo elevado de vida filosófica, vida espiritual, que possibilite, através de uma catarse (κάθαρσις, limpeza, purificação), superar o enganoso mundo do corpo: só podemos nos aproximar da verdade das coisas quando as contemplamos com a razão, com a inteligência (νοῦς).
Por ser uma memória psíquica, a anamnese é também o processo de reavivamento das reminiscências pessoais, recordação da projeção da vida no tempo passado e atualizada no instante mental do presente fugaz, presente que é sempre ausência, dissipação, direção ao passado, presente-angústia, presente-saudade, presente-esquecimento.
De modo mais circunscrito, em nosso caso (do particular para o universal, do indivíduo para a coletividade histórica), a anamnese é também a transferência da memória pessoal revivida para a reconstituição dos processos artísticos formadores da consciência artístico-civilizacional do Ocidente.3 É possível passar da história pessoal para a universal porque ambas compartilham a experiência comum do teatro existencial da vida no mundo.
Essa recordação intencionalmente direcionada da anamnese traz de volta um conhecimento esquecido, desarticulado (propositalmente ou não), para o reino das imagens da linguagem4, e assim faz o espírito voltar a ser algo no mundo, pois passa a ter presença linguisticamente articulada.
Por sua vez, a desagregação, a dissipação e a negação da Estética do Belo, consequência artística do caos fragmentário e existencial de nosso tempo, tornam mais premente essa anamnese por parte das solitárias consciências ainda organicamente nostálgicas do absoluto.5 Como a minha.
Nada melhor, portanto, do que brevemente recuperar e articular aqui uma parte do fio processual construtor da identidade estética ocidental. Por isso, o presente exercício tem também, além de um objetivo propriamente estetizante, uma função filosófica consolatória, nobre e elegante tradição das Filosofias clássicas, da Filosofia perene.6
Uma vertente das filosofias clássicas – porque alicerçada na tradição – a estética medieval foi uma notável corrente contemplativa da existência histórica humana. Compartilhar novamente essa abertura existencial com essa prática artística real (a meditação de seus conceitos), foi um dos objetivos de Umberto Eco (1932-2016).
É um dos meus, especialmente após o cansaço natural da maturidade com a persistente, inquietante e aparentemente inesgotável vitória dos feios, dos infelizes e dos doentes, da fúnebre feiúra industrial pós-moderna, do decadentismo e da luxúria do tenebroso, da vanguarda do urinol de Marcel Duchamps (1887-1968) e da vulgaridade do Kitsch, do fascínio do mau gosto de Marcel Proust (1871-1922), da deformação intencional do passado de Salvador Dalí (1904-1989) e da reciclagem dos refugos alheios de Andy Warhol (1928-1987).7 Sinto-me cansado, enfastiado com esses detritos estéticos, com a elegia do injurioso, a corrupção das flores, a estética trash e os mortos-vivos das cidades apocalípticas.
Nosso mundo estético parece ser a própria personificação do Juízo Final (c.1466-1473) de Hans Memling (c.1430-1494). Não, pensando melhor, talvez não, pois o tempo de Memling, do gótico internacional, foi o do Belo como modo de vida.8 Por isso, até o Inferno do tríptico do artista flamengo refulge de cor e intensidade, majestade, amor à Justiça, justiça das justiças.9
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O Juízo Final (c.1466-1473) de Hans Memling (c.1430-1494). Tríptico. Óleo em painel, Museu Nacional, Gdansk.
Refrescante como uma brisa de montanha seria a multiplicação dos filósofos conservadores (e estetas) como Roger Scruton (1944-2020)10, ainda que haja pouco ou nada que conservar, só recordar, só anamnese.11
II. A ausência de espetacularidade
Uma das características mais sedutoras, pueris (e, por isso, atraentes aos neófitos) da Filosofia, pelo menos desde Descartes (1596-1650), afirmou Jacques Maritain (1882-1973), foi a tola e teatral invenção da roda: cada pensador, a partir de então, apresentar-se-ia sempre como um iniciante em absoluto, desbravador de espaços virgens, ator de palcos jamais pisados anteriormente.
Essa espetacularidade intencional conduziu-nos até as retumbantes e nada modestas expressões nietzschianas do tipo “por que escrevo livros tão bons?” ou “por que sou tão sábio?”.12
A dureza da filosofia do bardo alemão13, pelo menos seu desejo de assassinar Sócrates (c.470-399 a.C.), já recebeu o devido, ainda que esquecido, desagravo filológico-filosófico de Werner Jaeger (1888-1961)14 (isso para não nos referirmos a Paulo [c.5-67]).15
Pelo contrário, os pensadores medievais não eram assim espetaculosos, mas reverentes diante da Tradição. Talvez por isso tenham construído os alicerces de nossa civilização.
Nesse sentido, nunca é demais recordar a famosa frase que o humanista do século XII João de Salisbury (c.1120-1180) atribuiu ao filósofo Bernardo de Chartres (†1130):
Dicebat Bernardus Carnotensis nos esse quasi nanos, gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remotiora videre, non utique proprii visus acumine, aut eminentia corporis, sed quia in altum subvenimur et extollimur magnitudine gigantea.
Costumava dizer Bernardo de Chartres que somos anões sentados nos ombros de gigantes, pois podemos ver mais coisas e mais distantes do que eles, ainda que não pela acuidade de nossa vista ou pela eminência de nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados pela estatura de gigantes (o grifo é meu).
JOÃO DE SALISBURY. Metalogicon III, cap. 4, p. 136.16
Por isso, quando Eco afirma que a Idade Média tinha perfeitamente o sentido da inovação, mas procurava escondê-la sob as vestes da repetição – ao contrário de sua posteridade, moderna, pós-moderna, que finge inovar mesmo quando repete!17 – é conciso, incisivo e verdadeiro.
Essa sensibilidade estética escamoteada porque subjugada pela humildade, virtude das virtudes, estava, em primeiro lugar, à mercê da beleza tangível do mundo, maravilhamento que se exprimia a partir da luz, da cor e da proporção.
III. Proporção, luz, cor
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Saint-Chapelle (1246-1248), capela superior. Paris, França. Dentre todas as coisas corporais, a luz era considerada belíssima, deleitabilíssima e boníssima. “A tal ponto amei a sabedoria que me propus tê-la como uma luz” (Sab 7, 10); “Por isso, afirmo que esta luz é a mais bela, a mais deleitável e a melhor dentre as coisas corporais”, conforme afirma Agostinho18 e São Boaventura (1221-1274), “A sabedoria das coisas espirituais é a luz da alma”.19
A capacidade de apreciação da Beleza – uma das condições do desenvolvimento da admiração estética – é um requisito fundamental, talvez último, de uma civilização, de uma cultura (Kultur), alto conceito de valor, ideal consciente, talento estético, caráter plástico, enfim, procura consciente da vida contemplativa, conceito abstrato e anti-histórico que considera o espírito o mundo da verdade e da beleza eternas um espaço etéreo a pairar acima da vicissitude dos povos.20
Só assim a Beleza pode ultrapassar a trilogia básica civilizacional (avanço, progresso material e espiritual, dos indivíduos e de uma coletividade21) e chegar ao cume de sua existência. Seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito22 é uma das melhores e mais sublimes imagens que uma cultura pode legar aos seus pósteros.
Por isso, pela dificuldade que as civilizações tiveram de, em algum momento de sua trajetória existencial, alcançar esse pico estético, a sensação da Beleza tardou a se manifestar coletivamente no Ocidente.
Essa consciência de se ter uma apreciação estética esteve restrita a sensibilidades medievais mais refinadas – filósofos, teólogos e, à medida que nos aproximamos da Modernidade, do século XV, literatos.
O pensamento medieval costumava remeter a ideia do Belo a conceitos como esplendor, proporção, luz, perfeição23, todos retroativos aos de ordem e harmonia que, por sua vez, traduziam a beleza da composição do mundo (um dos livros de Platão mais lidos na Idade Média – o Timeu – ensinava que o universo era um conjunto harmonioso organizado pelo Demiurgo).24
Mais especificamente: as condições da Beleza (em termos filosóficos, as chaves para a experimentação estética das formas) eram a integridade, a proporção, a comensuração, a ordem e a harmonia.25
Um elenco de filósofos medievais se debruçou sobre esse problema (de Alberto Magno a Duns Scotus, de Tomás de Aquino a Boaventura, de Hugo de São Vítor a Roberto Grosseteste).
A definição mais conhecida – e simples, como não poderia deixar de ser – é a de Tomás de Aquino (1225-1274):
Art. 8. Utrum convenienter a sacris Doctoribus sint essentialia personis attributa.
Respondeo § 3. Ad pulchritudinem tria requiruntur: primo quidem integritas, sive perfectio, quae enim diminuta sunt, hoc ipso turpia sunt. Et debita proportio, sive consonantia. Et iterum claritas, unde quae habent colorem nitidum, pulchra esse dicuntur.
Artigo 8. Perguntamos se os santos doutores apropriaram convenientemente atributos essenciais às pessoas.
Resposta § 3. Para que exista a beleza, três condições são requeridas: integridade (ou perfeição), de modo que o incompleto é torpe; a proporção devida (ou consonância), e a claridade, pois se diz belo o que tem uma cor nítida (os grifos são meus).
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I q. 39 a.8 c.
A integridade é o que está completo, intacto, concluído; a proporção devida é um sinônimo de harmonia do todo composto por partes, algo bem composto, e também relação entre matéria e forma26; por fim, a claridade (claritas) dizia respeito à cor, no sentido daquilo que se percebe claramente (por isso, também associada à verdade, ao conhecimento), pois o que é nítido é limpo, se distingue27, se expressa de modo claro.28
A luz é sabedoria, deleitosa para a visão, máximo agente do belo: a luz ilumina a beleza!
Lux est pulcherrimum et delectabilissimum et optimum inter corporalia. “Et eam (sc. sapientiam) in tantum dilexi, quod proposui pro luce habere illam” (Sap. 7, 10) quae, inquam, lux est pulcherrimum et delectabilissimum et optimum inter corporalia, secundum Augustinum (Conf. X, 34); sic sapientia inter spiritualia lux est animae.
Dentre todas as coisas corporais, a luz é belíssima, deleitabilíssima e boníssima. “A tal ponto amei a sabedoria que me propus tê-la como uma luz” (Sab 7, 10). Por isso, afirmo que esta luz é a mais bela, a mais deleitável e a melhor dentre as coisas corporais, conforme afirma Agostinho (Confissões X, 34). A sabedoria das coisas espirituais é a luz da alma (os grifos são meus).
SÃO BOAVENTURA (1221-1274). In Sapientiam 7, 10.
e
Haec (lux) per se pulchra est, quia eius natura simplex est sibique omnia simul. Quadproper maxime unita et ad se per aequalitatem concordissime proportionata, proportionum autem concordia pulchritudo est. Quadpropter etiam sie corporearum figurarum harmonica proportione ipsa lux pulchra est et visu iucundissima.
A luz é bela por si mesma, porque sua natureza é simples e contém a toda em si mesma. Além disso, tem, de modo sumamente harmonioso, o máximo de unidade e a proporção intrínseca da igualdade, pois a beleza consiste na concórdia das proporções. Assim, mesmo carecendo da proporção harmônica das criaturas corpóreas, a luz é bela e muito prazerosa de ver (os grifos são meus).
ROBERTO GROSSETESTE. Hexaemeron, 147v.
Entre os místicos medievais, como, por exemplo, São Bernardo de Claraval (1090-1153), a luz é uma metáfora da alma, de seus dilemas, de suas meditações, de sua consciência, de seus desconhecimentos e movimentos de retorno para si – Platão não teria ficado menos satisfeito:
Est enim non tantum vox virtutis, sed et radius lucis, annuntians pariter hominibus peccata eorum et illuminans abscondita tenebrarum. Nec vero ulla internae huius vocis ac lucis differentia est, cun unus idemque sit Dei Filius et Verbum Patris, et splendor gloriae, sed et animae quoque substantia, in suo quidem genere etiam ipsa spiritualis et simplex, sine ulla distinctione sensuum, sed tota, si tamen tota dicenda est, videns pariter et audiens videatur. Quid enim illo agitur sive radio, sive verbo, nisi ut noverit semetipsam? Aperitur siquidem conscientiae liber, revolvitur misera vitae series, tristis quaedam historia replicatur, illuminatur ratio, et evoluta memoria velut quibusdam eius oculis exibetur. Utraque vero non tam ipsius animae est quam anima ipsa, ut eadem sit et insipiens, et inspecta, contra suam statuta faciem, et violentis quibusdam apparitoribus immissarum utique cogitationum coacta, [74] proprio interim iudicanda tribunali. Quis sane iudicium hoc sine tribulatione sustineat? Ad meipsum anima mea turbata est, ait Propheta Domini, et tu contra faciem tuam sine argutione, sine turbatione, sine confusione statui non posse miraris?
Sua voz [divina] não é só virtuosa: é um raio de luz que revela os pecados dos homens e ilumina o oculto pelas trevas. Não há diferença entre esta voz interior e a Luz, pois as expressões “Filho de Deus”, “Verbo do Pai” e “Esplendor da Glória” são unívocas para a mesma substância divina. Ocorre o mesmo com a alma. Em seu próprio gênero é simples, sem distinção de sentidos, porque é íntegra quando vê e quando escuta. Mas o que conseguimos com esse raio de Luz e com essa Palavra se não conhecemos a nós mesmos? Que se abra o livro da consciência, que seja revolvida a cadeia miserável da vida, que se reviva aquela página de triste história. Só assim se ilumina a razão e se estimula a memória, como se tudo fosse exibido aos próprios olhos. Isso não só corresponde a uma propriedade da alma: é a própria alma néscia e consciente que, diante de si e coagida e dominada por violentos pensamentos, fica à mercê de seu próprio tribunal. Quem é capaz de suportar esse juízo sem tribulação? Atormentada está minh’alma, exclama o profeta do Senhor, e estranhas por não conseguir mirar a ti mesmo sem te sentir incitado, perturbado e confuso? (os grifos são meus).
BERNARDO DE CLARAVAL. Aos clérigos, sobre a conversão, II, 3.29
A luz revela o mundo, a natureza, as cores; desvela os sentidos, ilumina a consciência. A cor tem história30, pois é também um fenômeno social. Nesse caso histórico, ao invés de serem organizadas pela ordem espectral, os estetas medievais, por também serem herdeiros de Platão e de Plotino (205-270) e, a partir do século XIII, do saber cromático aristotélico, enfatizaram o branco, o amarelo (ouro), o vermelho, o azul, o negro e o verde. Eram essas as seis cores básicas da Idade Média.31
O horizonte visual do mundo social medieval, mesmo para os mais pobres, nunca foi incolor. Nesse sentido, como é injusta a pecha de Idade das Trevas atribuída a esse tempo tão colorido (ainda que seja em um sentido cultural)!
O que salta aos olhos é que, apesar de viverem em um mundo pouco luminoso após a luz do dia (luz de velas, tochas, candeias), os homens daquele tempo criaram imagens cheias de luz.32 Nesse sentido, no âmbito da tradição neoplatônica, a dívida com Plotino foi notável:
A simples beleza de uma cor procede de uma forma (εἶδος) que domina a escuridão da matéria e da presença de uma luminosidade incorpórea que é razão e ideia. Disso deriva que, de todos os corpos, o fogo é belo em si e ocupa o lugar da ideia entre os outros elementos; é o mais elevado, por sua posição, e o mais leve dos corpos, pois está próximo ao incorpórea. Está só, e não absorve os outros elementos, embora os outros elementos o acolham. Por isso, estes podem inflamar-se, enquanto aquele não pode esfriar-se. É ele que, em princípio, possui as cores, e de quem as outras coisas recebem a forma e a cor. Ele ilumina e brilha porque é uma ideia. As coisas inferiores a ele, anuladas pelo ofuscamento de sua luz, deixam de ser belas porque não participam da ideia total da cor (os grifos são meus).
PLOTINO. Enéadas I, 6.33
Por isso a estreita associação entre a luz (claritas) e a cor! Mas talvez o mais impressionante revival para os espíritos mais insensíveis aos textos medievais tem sido as reconstituições computadorizadas (graças às análises microscópicas dos vestígios de policromia das esculturas antigas e medievais), como se pode observar, por exemplo, com a Madonna de Mainz:
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“Reconstrução da imagem da Virgem Maria que protegia a entrada da casa do mercado ‘Am Brand’ in Mainz. Digitalizada em alta resolução, ela foi ‘trazida à vida’ em sucessivas etapas”. In: 3D reconstruction of the medieval market house 'Am Brand' in Mainz. Johannes Gutenberg-Universität Mainz, 2012.
Roger Scrutton escreveu belas palavras a respeito da Virgem. Para o filósofo britânico, não há, na história da beleza, um tributo maior à beleza humana do que as imagens medievais e renascentistas da Mãe de Deus, com sua maturidade sexual expressa em sua maternidade, símbolo do amor ideal entre pessoas corporificadas.
Nela, funde-se, na tradição estética ocidental, a forma cristã da concepção platônica da beleza como um guia para a esfera além do desejo.34
Seja como for, na Madonna de Mainz, a experiência do choque policromático medieval, anterior à escala cromática moderna, naturalmente, também deve ser reinserida em sua própria tradição cultural, nossa, ocidental.
Para isso, basta que apreciemos a reconstrução das cores das esculturas gregas como, por exemplo, a restauração da decoração policromada da Peplos Kore (c.530-520 a.C.) das deusas Ártemis (Άρτεμις) e Atena (Αθηνά) (imagem 5).
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À esquerda, Ártemis, à direita, Atena. Exposição Bunte Götter – Die Farbigkeit antiker Skulptur (Deuses coloridos – as cores da escultura antiga), na Gliptoteca de Munique, em 2003.
De certo modo, a reconstrução total da apreciação estética antiga e medieval também traz à tona o caráter popular de sua tradição cromática, desejosa de maravilhar, de estupefar, de se igualar à beleza, ao colorido natural.35
Conclusão
A anamnese de Voegelin é a da memória da vida, a soma das lembranças na ordem da consciência que perfazem a totalidade do que somos enquanto mantemos nossa carnalidade fugaz (e motivam a consciência do filósofo36); a de Eco é a centralidade da civilização ocidental, a da Idade Média, não só tomista, mas neoplatônica, mística, românica e gótica.
Trata-se de uma beleza perdida pela pós-modernidade e recuperada em sua lembrança da história da estética cristã (lembrança que não consente em aderir ao desenvolvimento histórico que considera o passado como parte das imprecisas e liquidadas oscilações do Espírito37).
Memória da vida e centralidade civilizacional do Ocidente, uma e outra se unem na anamnese do historiador da arte que, entre o passado de sua existência e o da civilização perdida na coetaneidade (ainda que só resgatada na intimidade da consciência) se mesclam para proporcionar um instante fugaz de contemplação estética íntima do Belo que foi, que se foi, ou que pelo menos não é tão visível como outrora.
Nossa memória, fugaz, imperfeita, distorcida e abalada pelo sofrimento do mundo, mal pode reter a fragilidade do efêmero, do transitório (como é o habitual, em relação à beleza material, corporal) como também e principalmente a ideia de Belo que está para além da transitoriedade da vida, do tempo.
Por isso escrevemos, para registrar, em meio à constante decadência do presente que se esvai, para preservar a bela ideia que Belo é aquilo que procede do belo e desinteressado interesse contemplativo proveniente do amor que se regozija com a justiça e a verdade.38 E que nunca passará.39
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Notas
- 1. RICHARDSON, Lawrence. A catalog of identifiable figure painters of ancient Pompeii, Herculaneum, and Stabiae. Johns Hopkins University Press, 2000.
- 2. PLATÃO. Diálogos (trad. direta do grego de Carlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2002, p. 261-262.
- 3. Ou seja, até nesse aspecto minhas considerações estão distantes da pós-modernidade, pois a anamnese pós-moderna chega ao ponto de ser um "esquecimento do esquecimento". Para isso, ver BARRETO, Waldir. De lo Sublime Superviviente: estudio sobre la persistencia del sentimiento de lo Sublime en el Arte Contemporáneo. Granada: Universidad de Granada, Tesis Doctoral, 2014, p. 207.
- 4. VOEGELIN, Eric. ANAMNESE. Da Teoria da História e da Política. São Paulo: É Realizações, 2009, p. 48.
- 5. STEINER, George. Nostalgia do Absoluto. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2003.
- 6. Por exemplo, BOÉCIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
- 7. Todos títulos dos capítulos finais de A História da Feiúra (Rio de Janeiro: Record, 2007) de nosso autor.
- 8. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: CosacNaif, 2011.
- 9. Ainda que nascido em território teutônico (Seligenstadt, a sudeste de Frankfurt), Hans Memling viajou para Bruges e estudou com Rogier van der Weyden (1400-1464) e é um representante do resplendor artístico do Ducado da Borgonha que, no outono da Idade Média, foi a região mais proeminente da cristandade transalpina (1363-1515) durante os ducados de Filipe II, o Audaz (1342-1404), João I sem Medo (1371-1419), Filipe III, o Bom (1396-1467) e Carlos I, o Temerário (1433-1477).
Nesse período, a sociedade borgonhesa (especialmente nas cidades de Bruges, Gand, Liège, Louvain, Bruxelas e Dijon), foi a mais polida da Europa. Sua mais fina expressão, naturalmente, esteve na arte. Ver HUIZINGA, Johan. “Sobre la conciencia nacional Holandesa”. In: El concepto de la historia y otros ensaios. México: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 237-317.
Uma antiga porém agradabilíssima narrativa a esse respeito (com ênfase na Arte) encontra-se em DURANT, Will. “Episódio na Borgonha”. In: A História da Civilização VI. A Reforma. História da Civilização Européia de Wyclif a Calvino: 1300-1564. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d, p. 107-120. - 10. SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: ÉRealizações, 2013.
- 11. Outra importante base para as reflexões desse trabalho é o documentário do filósofo britânico Por que a Beleza importa? para a BBC que, posteriormente, deu origem à entrevista “Sobre a defesa da Beleza”, originalmente publicada em The American Spectator, em 15 de maio de 2010 e, posteriomente, traduzida por Larry Martins Fernandes e publicada em ARTE, REVISTA, mai 2014.
- 12. NIETZSCHE. Ecce homo (trad.: Artur Morão). Covilhã, 2008.
- 13. “Sem crueldade não há gozo, eis o que nos ensina a mais antiga e remota história do homem: o castigo é uma festa?”, NIETZSCHE. A Genealogia da Moral. São Paulo: Editora Moraes, 1991, Segundo Ensaio, Vi, p. 36.
- 14. JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. Brasília: Editora UnB, 1998.
- 15. “Em Paulo personifica-se o tipo antagônico ao do alegre mensageiro, o gênio no ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. Quantas coisas este disangelista sacrificou ao ódio! Acima de tudo, o Redentor: cravou-o na sua cruz. A vida, o exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o Evangelho – já nada existia, quando este falso moedeiro se apoderou por ódio de tudo o que só a ele podia ser útil.”, NIETZSCHE. O Anticristo (trad.: Artur Morão). Covilhã, 1997.
- 16. Ed. Webb, Oxford 1929, ls. 23-27.
- 17. ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989, p. 12.
- 18. Confissões X, 34.
- 19. In Sapientiam 7, 10.
- 20. JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 6-11. Que não se estranhe a mescla que faço dos dois conceitos (civilização e cultura): “De uns vinte anos para cá, habituei-me a confundir as duas palavras, ao correr da pena: direi ora civilização, ora cultura, no mesmo sentido. Nenhum guarda ainda me multou por isso”. BRAUDEL, Fernand. Reflexões sobre a História. São Paulo Martins Fontes, 1992, p. 346-347.
- 21. SCHWEITZER, Albert. Filosofia da Civilização. Queda e reconstrução da civilização: civilização e ética. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 33.
- 22. PLATÃO. A República (introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 132-133 (401a-401e).
- 23. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naif, 2010, p. 465-466.
- 24. “Com relação à proporção numérica, movimentos e outras propriedades, devemos admitir que a divindade os ajustou na medida certa, quando os organizou com perfeição até nas menores particularidades, dentro dos limites permitidos pela necessidade condescendente e acessível à persuação”, PLATÃO. Timeu, 56c. PLATÃO. Timeu. Crítias. O segundo Alcibíades. Hípias Menor (trad. direta do grego de Carlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2001, p. 98-99.
- 25. JACQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico. Madrid: A. Machado Libros, 2003, p. 83.
- 26. “A tal ponto que, faltando a disposição da matéria à forma, a própria forma desaparece (Sentencia libri de anima I, 9, p. 46b). É esta a típica proporção capaz de interessar àquele que olha esteticamente a coisa, aprenciando-lhe a congruente organização”, ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval, op. cit., p. 115.
- 27. Comentários de Jéssica Jacques Pi, op. cit., p. 86.
- 28. ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval, op. cit., p. 121. Johan Huizinga (1872-1945) é rigoroso em seu juízo a respeito: “Com um conceito de beleza tão intelectualizado, não é de se admirar que o espírito não possa perder tempo com a beleza terrena”. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média, op. cit., p. 466.
- 29. Obras completas de SAN BERNARDO DE CLARAVAL I. Madrid: BAC, MCMXCIII, p. 367-369.
- 30. GAGE, John. A Cor na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
- 31. PASTOREAU, Michel. “Ver los colores de la Edad Media. ¿Es posible uma historia de los colores?”. In: Una Historia Simbólica de la Edad Media Occidental. Buenos Aires: Katz, 2006, p. 137. Claro que os medievais conheciam muito mais cores. Por exemplo, Isidoro de Sevilha (560-636) dedicou um artigo inteiro às cores, e definiu que “As cores (colores) são assim chamadas porque são obtidas com o calor (calore) do fogo ou com o Sol, ou porque no princípio eram coladas (colare) para serem obtidas do modo mais sutil possível (Etimologias, XIX, 17). É quando descreve várias cores (almagre, vermelho, cinabre, verde-esmeralda, sandáraca, ocre, cerúleo, índigo, púrpura, branco, alvaialde, negro) e como são produzidas. SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías II. Madrid: BAC, MCMXCIV, p. 453-457.7.
- 32. ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Lumen, 2004, p.99-100.
- 33. Citado em ECO, Umberto. Historia de la Belleza, op. cit., p. 103. Também ver (com pequenas variações na tradução, mas que não alteram substancialmente o conteúdo) PLOTINO. Tratados das Enéadas (trad.: Américo Sommerman). São Paulo: Polar Editorial, 2000, p. 24.
- 34. SCRUTTON, Roger. Beleza, op. cit., p. 63.
- 35. Além disso, as cores, pelo menos até o início do século XIX, também pertenciam ao âmbito da Filosofia e das Letras, como se pode perceber por essa passagem da Doutrina das cores (1810), de Goethe (1749-1832): “Não se pode exigir do físico que seja filósofo, embora dele possamos esperar que tenha suficiente formação filosófica para ser capaz de diferenciar-se radicalmente do mundo e associar-se de novo a ele numa esfera superior. Deve elaborar um método adequado à intuição, evitando transformá-la em conceito e o conceito em palavras, agindo ou procedendo como se tais palavras fossem objetos; deve ainda ter conhecimento dos esforços do filósofo, afim de elevar os fenômenos até a esfera filosófica. Não se pode exigir do filósofo que seja físico; contudo, sua influência no âmbito da física não é só necessária como desejável. Para isso, não precisa de um conhecimento do singular, mas apenas dos limites em que o singular pode ser encontrado”. GOETHE, J. W. Doutrina das cores (apres., seleção e tradução de Marco Giannotti). São Paulo: Nova Alexandria, 2013, p. 155.
- 36. VOEGELIN, Eric. ANAMNESE, op. cit., p. 53
- 37. ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval, op. cit., p. 188
- 38. “A primeira e a última coisa que se exige do gênio é o amor pela verdade (382)”. GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (introd., trad. e notas de Marco Aurélio Werle). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 257. Esse amor à verdade e à justiça, desde os gregos, guiou os melhores espíritos e forjou a civilização: “Sócrates - Todas as coisas justas são belas? Alcibíades - Sim. Sócrates - Aquele que age belamente age bem? Alcibíades - Sim. Sócrates - Os que agem bem são felizes? Alcibíades - Como não? Sócrates - Portanto, a boa conduta é bela? Alcibíades - Claro (...) Devemos então reconhecer que quem pratica atos justos, pratica atos belos.”, PLATÓN. Alcibíades (ed., trad., y comentários de Óscar Velásquez). Santiago: Ediciones Tácitas Limitada, 2013, p. 119 e 127 (115a e 116b).
- 39. 1Cor 13, 8.