A cavalaria perfeita e as virtudes do bom cavaleiro no Livro da Ordem de Cavalaria (1275), de Ramon Llull

Se a nobreza de coragem elegeu o cavaleiro sobre os homens que lhe estão embaixo em servidão, nobreza de costumes e de bons ensinamentos convém ao cavaleiro, pois nobreza de coragem não poderia subir na alta honra de cavalaria sem eleição de virtudes e de bons costumes. Ramon Llull. Livro da Ordem de Cavalaria, VI, 1 (a partir de agora como LOC).

Quando Ramon Llull escreveu essas linhas, por volta de 1280, a cavalaria já era uma ordem firmemente estabelecida no seio da sociedade do ocidente medieval europeu. Depois da religião, ela encarnava, para os espíritos da época, os valores mestres da cultura (DUBY, 1989, 23), sua mais forte concepção de vida (HUIZINGA, s/d, 58).

Com sua obra, Llull pretendia iluminar com valores morais e éticos os novos pretendentes à cavalaria, registrando por escrito os códigos cavaleirescos, a sacralização do rito de passagem (adoubament), a simbologia das armas do cavaleiro e principalmente as virtudes que o cavaleiro deveria conhecer e os vícios que deveria evitar para honrar a ordem de cavalaria e se tornar um cavaleiro de “bons costumes e bons ensinamentos” (LOC, VI, 1, 89).

Destes vários temas tratados por Ramon, gostaria de analisar mais detalhadamente aqui o último ponto: a questão das virtudes e vícios, um dos temas mais freqüentes na literatura e filosofia medieval e presente em quase todas as obras de Llull, como veremos adiante. Para isso, farei antes uma breve análise da cavalaria medieval, seus códigos, preceitos para, a seguir, tratar dos ideais cavaleirescos lulianos, especialmente as virtudes cristãs tratadas no Livro da Ordem de Cavalaria.

I. O cavaleiro (miles)

No tempo de Ramon, a palavra miles era utilizada para definir o indivíduo pertencente à cavalaria. A origem destes milites é de difícil precisão e delimitação. Inicialmente, isto é, no final do século IX, após a dissolução do império carolíngio, os historiadores perceberam que este grupo social encontrava-se bastante próximo da aristocracia rural originária da nobreza carolíngia (os nobiles ou nobiliores). Trabalhavam a seu serviço — em determinadas regiões não existiam sequer milites livres (PACAUT, s/d, 374). Mas com o passar do tempo este grupo nobilitou-se, ascendeu socialmente e passou a ser confundido com a própria nobreza.

Este processo de fusão foi brilhantemente analisado por Georges Duby: deixando de lado as obras literárias — neste caso mais propensas a distorções — e analisando uma documentação jurídica proveniente da Borgonha, dos cartulários da abadia de Cluny — um tipo de material muito mais afeito à identificação dos estatutos sociais dos envolvidos em discussões de bens e negociatas — Duby reconstituiu a evolução do sentido da palavra miles, desde o seu surgimento, em 971, até o século XIII.

Inicialmente, miles designava apenas a superioridade social do vassalo. Mas de 1032 até 1100 o vocábulo substituiu gradativamente as outras formas que exprimiam a distinção social, passando a designar toda a aristocracia laica (DUBY, 1989, 24-26). Este processo, precoce na Borgonha, difundiu-se para as outras regiões da Europa, de modo que, no tempo em que Llull escreveu seu tratado, a cavalaria estava estreitamente associada à nobreza hereditária detentora de terras.

No entanto, é preciso advertir que esta assimilação nunca foi completa e, em alguns lugares, como no Sacro Império, a cavalaria manteve-se sempre como um estrato social dependente e distinto da nobreza (PACAUT, s/d, 375). Outro exemplo desta diversidade medieval é o reino de Portugal: até meados do século XIII, seus cavaleiros (milites nobiles) constituíam a camada mais baixa da nobreza, utilizando este termo apenas para diferenciá-los dos camponeses e cavaleiros-vilãos - homens livres, não-nobres e grandes proprietários (MATTOSO, s/d, 548; COSTA, 1998, 104-108).

II. A cerimônia de iniciação do cavaleiro (adoubement)

Assim, pelo menos na França, por volta do ano mil, a cavalaria passou a existir como uma instituição social, exclusiva da nobreza. Mas para o processo se tornar completo era necessário estabelecer com precisão as regras que determinariam o ingresso do pretendente. Embora ainda profana e doméstica, a cerimônia de iniciação (adoubement) já estava solidificada neste mesmo período.

Ela acontecia entre os 18 e 20 anos: ser cavaleiro distingüia o adolescente do adulto. O rapaz era introduzido no grupo de cavaleiros do senhor da fortificação, do castelo ou da torre, o castelão (castellanus, ou, em língua vulgar, sire) — o detentor do poder público, aquele que tinha o poder de ban (um poder militar, judicial e econômico) (LE GOFF, 1983, I, 127). O castelão recebia dos camponeses as exações (exactio ou consuetudo), o fornecimento de víveres (DUBY, 1992, 78). Em troca disso, ironicamente, tinha a responsabilidade de conservar a paz (DUBY, 1999, 115).

Convidado a mostrar suas capacidades viris num simulacro de combate, o pretendente, se vitorioso, recebia um golpe curto e seco na nuca ou no rosto (a colée ou paumée), sinal de aceitação por parte do grupo e que foi marcado com o caráter cavaleiresco (BLOCH, 1987, 330). Esta bofetada era um dos sinais comemorativos da época: o contato entre a mão do investidor e o corpo do investido servia como uma espécie de transmissão da energia exclusiva do novo estatuto, exatamente como o tapa que o bispo dava no clérigo que era ordenado padre (BLOCH, 1987, 327).

Então o castelão presenteava o jovem cavaleiro com suas armas, um casaco de couro, a cota de malha (haubert), o elmo, a espada. Elas eram consideradas mágicas, especialmente a espada, pois tornavam-se parte do cavaleiro e de seu modo de vida — Ramon Llull dedica boa parte de seu Livro à simbologia das armas do cavaleiro (COSTA).

A investidura muitas vezes terminava com a quintana: o novo cavaleiro, montado em seu cavalo, atravessava um escudo com um golpe de sua lança, gesto simbólico que indicava a mudança de categoria. A partir daí, até que se casasse e se tornasse chefe de uma linhagem, o jovem seria um sergent, o servidor armado do castelão, e ficaria agregado à manada (maishie), o séquito de guerreiros solteiros que o castelão tinha o dever de alimentar e levar sempre consigo nas cavalgadas, essas aventuras violentas que aconteciam sempre a cada primavera (DUBY, 1999, 119-120).

Entre seus membros havia diferenças notáveis de fortuna. Os historiadores precisaram basicamente duas categorias de cavaleiros. Acima, uns poucos, os que possuíam um castelo. Formavam parte de uma elite, pois tinham o poder de ban. Abaixo, a grande maioria dos cavaleiros, os que pertenciam à categoria de milites gregarii, pois viviam à sombra de um senhor (DUBY, 1992, 75). Levando uma vida relativamente pobre, muitos destes milites gregarii tinham uma existência semi-camponesa, pois dirigiam sozinhos o cultivo de suas pequenas propriedades (PERROY, 1994, vol. VII, 22). Existiam mesmo aqueles que, para não descer ao nível dos camponeses, optavam em sair pelo mundo em busca de aventura. Muitos destes eram secundogênitos.

III. A cavalaria, terror da época: as guerras privadas (fehde)

Este grupo social representava a violência, o espírito de agressão e pilhagem da época, pois qualquer pretexto era motivo para esses homens turbulentos lançarem-se uns contra os outros. Estavam assim, sempre matando, em movimento: nas batalhas, caçando o javali, organizando torneios.

Mas o maior sofrimento que infligiam às populações — especialmente aos camponeses — eram as guerras particulares, as vinganças, chamadas de faídas (fehde), isto é, o direito da vítima de um prejuízo causar ao seu autor prejuízo igual. Nestas faídas, a principal estratégia cavaleiresca era arruinar o inimigo matando e aleijando o maior número possível de camponeses, além de destruir suas plantações e celeiros. O objetivo era reduzir as fontes de renda do inimigo.

Por exemplo, Thomas de Marle, sire de Coucy a partir de 1116, nas palavras do abade Suger, um “lobo raivoso ajudado pelo Demônio”, além de tomar terras de conventos — provavelmente um dos motivos da censura eclesiástica —, em suas guerras privadas cortava pessoalmente a garganta dos que considerava rebeldes e torturava os prisioneiros pendurando-os pelos testículos até o peso do corpo arrancá-los (TUCHMAN, 1990, 10).

Essas violências aconteciam porque as práticas judiciárias eram lentas e imperfeitas: não existiam tribunais regulares que recebessem a queixa e agissem contra o agressor. Assim, o cavaleiro que sofria um dano por parte de um de seus pares devia fazer justiça com suas próprias mãos. Toda discórdia entre cavaleiros resultava em conflito armado. O caráter do processo estimulava as agressões: os juízes eram apenas conciliadores, não impunham a sentença. Isso encorajava o recurso à violência, e os maiores prejudicados eram os camponeses (PERROY, 1994, 29-30).

Além disso, essa violência era institucionalizada: a cavalaria estava integrada ao sistema feudo-vassálico. Para o vassalo, o senhor era como seu pai, pois deveria protegê-lo, aconselhá-lo e alimentá-lo. Mais do que isso: desde o ano 1000 difundiu-se por todos os lados a idéia que o senhor de uma manada tinha o dever de, além de dar cavalos, armas e outros tantos adornos militares, conceder uma terra, uma tenência (tenure), um benefício que durasse o tempo do devotamento do cavaleiro e que simbolizasse os laços de dependência de homem para homem.

O senhor deveria mostrar-se generoso com seus homens. Até que quebrassem a palavra empenhada, estes vassalos deveriam receber um espaço físico, uma igreja, um dízimo, um campo arrendado a camponeses, enfim, uma renda regular que o sustentasse: era o feudo. Esse gesto de largueza por parte do senhor se tornou tão comum que, pouco a pouco, entre 1030 e 1075, o sentido do ato se inverteu: o feudo passou então a determinar a fidelidade e os serviços do vassalo, e se tornou hereditário. A partir de então, o senhor teve a seu dispor cada vez mais vassalos que desconhecia, e o sistema passou a oferecer cada vez mais fissuras, brechas para a quebra dos votos de fidelidade (DUBY, 1999, 125).

IV. A cristianização da cavalaria de Satã: a Paz de Deus

Desta forma, o tempo da cavalaria foi também, por excelência, o tempo do feudalismo. Nos reinos nascidos da partilha do império carolíngio (França, Alemanha, Borgonha-Provença e Itália), do século X ao XIII, as duas instituições se desenvolveram e se mesclaram num imbricado sistema de relações pessoais. O serviço militar dos cavaleiros (servitium) era, para o senhor, o principal motivo do contrato vassálico.

Com o armamento completo ou apenas uma parte dele, o cavaleiro deveria tomar parte da cavalgada, integrar um simples serviço de escolta ou mesmo servir de guarda num dos castelos do senhor, o chamado stagium - existiam ainda uma série de pequenos serviços obrigatórios para o vassalo, como, por exemplo, segurar a cabeça do rei quando este, no decurso de uma travessia, aliviava o estômago vomitando (GANSHOF, s/d, 122-140).

A paz que o castelão tinha o dever de manter era como um frágil fio ao sabor do vento. Pois o tempo dos feudais foi, sobretudo, o tempo dos saques, dos ódios atrozes entre as linhagens, violências que as crônicas fartamente ilustram. É por esse motivo que, por volta de 1130, São Bernardo, ao enaltecer as virtudes da nova cavalaria dos templários, não se cansa de criticar a militia saeculari, que ele chama de malícia (malitiae), num jogo de palavras (milícia/malícia) que mostra a plena compreensão dos clérigos a respeito da origem social desse tenso estado de coisas:

Vós, milicianos, como haveis se equivocado tão estupendamente? Que fúria os tem arrebatado para verem a necessidade de combaterem até se esgotarem com tanto dispêndio sem outro salário que a morte ou o crime? Cobristes vossos cavalos com sedas, pendurastes telas belíssimas em vossas couraças; pintastes as lanças, os escudos e as selas; recarregastes os arreios e esporas de ouro, prata e pedras preciosas. E com toda essa pompa se lançastes à morte com um furor cego e néscia insensatez. O que são essas coisas, arreios militares ou vaidades de mulher? Ou credes que pelo ouro a espada inimiga se amedronte para respeitar a formosura das pedras e não transpasse seus tecidos de seda?

Por experiência, vós sabeis muito bem que são três as coisas de que mais necessita o soldado em combate: agilidade com reflexos e precaução para defender-se; total liberdade de movimentos em seu corpo para poder movimentar-se continuamente, e decisão para atacar. Mas vós afagastes a cabeça como as damas, deixastes crescer o cabelo até cair sobre os olhos; vestistes vossos próprios pés com amplas e largas camisas; sepultastes vossas covardes e afeminadas mãos dentro de luvas que as cobrem por completo.

E, o que todavia é mais grave — pois isso os leva ao combate com grandes ansiedades de consciência —, é que guerras tão mortíferas se justificam com razões tão enganosas e pouco sérias. Pois, o que é ordinário, o que só induz à guerra até provocar o combate — a não ser em vosso caso — são sempre paixões de iras incontroláveis, o afã de vanglória ou a ambição de conquistar territórios alheios. E estes motivos não são suficientes para poder matar ou expor-se à morte com uma consciência tranqüila. (BERNARDO DE CLARAVAL, 1983, II, 501-503)

Através dos olhos de quem podemos observar esse mundo, os clérigos, a cavalaria era de Satã, não de Deus. Era necessário civilizá-la, ou, em outras palavras, cristianizá-la. Com o binômio cavalaria/feudalismo, a cristianização da cavalaria veio acompanhada da campanha da Paz de Deus. O objetivo desta campanha era pôr fim às violências exercidas pelos homens da guerra e proteger todo o restante da sociedade não-beligerante (camponeses, mercadores e religiosos não armados — sim, pois muitos clérigos participavam de batalhas e campanhas militares).

Várias assembléias foram reunidas com esse objetivo: Charroux, no Poitou (989), Le Puy (990), Limoges e Anse, no Mâconnais (994) (BONNASSIE, 1985, 163). A melhor descrição dessas grandes assembléias foi feita pelo monge e cronista Raoul Glaber (†1044), considerado a melhor testemunha da primeira metade do século XI (DUBY, 1986, 23):

Foi então [no milésimo ano da Paixão do Senhor], primeiro nas regiões da Aquitânia, que os abades e os outros homens dedicados à santa religião começaram a reunir todo o povo em assembléias, para as quais se trouxe numerosos corpos de santos e inumeráveis relicários cheios de santas relíquias. A partir daí irradiaram, pela província de Arles, depois pela de Lyon; e assim, por toda a Borgonha e até nas regiões mais recuadas da França, foi anunciado em todas as dioceses que em determinados lugares, os prelados e os grandes de todo o país iam reunir assembléias para o restabelecimento da paz e para a instituição da santa fé.

Quando a notícia destas assembléias foi conhecida de toda a população, os grandes, os médios e os pequenos para elas se dirigiram, cheios de alegria, unanimemente dispostos a executar tudo o que fosse prescrito pelos pastores da Igreja: uma voz vinda do Céu e falando aos homens sobre a terra não teria feito melhor. Porque todos estavam sob o efeito do terror das calamidades da época precedente, e atazanados pelo receio de se verem retirar no futuro as doçuras da abundância.

Um documento dividido em capítulos, continha ao mesmo tempo o que era proibido fazer e os compromissos sagrados que se tinha decidido tomar para com o Deus todo poderoso. A mais importante destas promessas era a de observar uma paz inviolável; os homens de todas as condições, qualquer que fosse a má ação de que fossem culpados, deviam a partir daí poder andar sem receio e sem armas. O ladrão ou aquele que tinha invadido o domínio de outrem estava submetido ao rigor de uma pena corporal.

Aos lugares sagrados de todas as igrejas devia caber tanta honra e reverência que, se um homem, punível por qualquer falta, aí se refugiasse, não sofreria nenhum dano, salvo se tivesse violado o dito pacto de paz; então era agarrado, retirado do altar e devia sofrer a pena prescrita. Quanto aos clérigos, aos monges e às monjas, aquele que atravessasse uma região na sua companhia não devia sofrer nenhuma violência de ninguém (citado em DUBY, 1986, 164-165).

O movimento, popular e com o firme apoio dos oratores, se espalhou até o norte da França. Era uma exclusividade francesa, o resultado da impotência do rei francês, pois no Sacro Império o soberano ainda era capaz de manter a ordem e a justiça. A violência dos cavaleiros na França era tanta que à Paz de Deus juntou-se, a partir dos anos 1020-1040, outro movimento: a Trégua de Deus, uma imposição de armistício semanal, inicialmente de dois dias, mas que chegou a quatro (da noite de quarta-feira até a manhã de segunda). Era um remédio, uma tentativa dos clérigos de pôr ordem no caos face à debilidade da autoridade régia. Os poderes eclesiásticos assumiram a tarefa, utilizando a principal arma de seu ofício: a excomunhão.

V. O processo civilizador da Igreja: o juramento do cavaleiro

Esta tentativa de conter a pulsão agressiva dos cavaleiros era sacramentada por meio de um juramento, quando o guerreiro colocava suas mãos sobre relíquias sagradas, mágicas, e fazia uma série de promessas de paz. Lendo inversamente uma dessas promessas, registrada pelo bispo Guérin de Beauvais por volta dos anos 1023-1025, pode-se imaginar o insustentável e sombrio cotidiano das populações que viviam junto aos senhores da guerra e o temor que deveria passar pela cabeça de um camponês ou clérigo ao avistar um enxame daqueles milites gregarii:

Não invadirei de forma alguma uma igreja. Em razão da sua salvaguarda também não invadirei as adegas que estão nos termos de uma igreja, salvo no caso de um malfeitor ter infringido esta paz, ou em virtude de um homicídio, ou da captura de um homem ou de um cavalo. Mas se por estes motivos eu invado as ditas adegas, não trarei nada a não ser o malfeitor ou o seu equipamento, com perfeito conhecimento.

Não atacarei o clérigo ou o monge se não trazem as armas do mundo, nem aquele que caminha com eles sem lança nem escudo; não tomarei o seu cavalo, salvo em caso de flagrante delito que me autorize a fazê-lo, ou a não ser que tenham recusado reparar a sua falta num prazo de quinze dias depois do meu aviso.

Não tomarei o boi, a vaca, o porco, o carneiro, o cordeiro, a cabra, o burro, o feixe que traga, a égua e o seu potro não adestrado. Não agarrarei o camponês nem a camponesa, os sargentos ou mercadores, não ficarei com os seus dinheiros; não os arruinarei tomando-lhes os seus haveres sob o pretexto da guerra do seu senhor, e não os chicotearei para lhes retirar a sua substância.

O macho ou a mula, o cavalo ou a égua e o potro que estão na pastagem, não despojarei ninguém deles, desde as calendas de Março até o Dia de Todos os Santos, salvo se os encontro a causarem-me danos.

Não incendiarei nem destruirei as casas, a não ser que aí encontre um cavaleiro inimigo ou um ladrão; a menos também que estejam adjuntas a um castelo que seja mesmo um castelo.

Não cortarei, arrancarei ou vindimarei as vinhas de outrem, sob o pretexto da guerra, a não ser que estejam sobre terra que é e deve ser minha. Não destruirei os moinhos e não roubarei o trigo que aí se encontre, salvo quando estiver em cavalgada ou em expedição militar pública, e se for sobre a minha própria terra.

Com perfeito conhecimento meu não concederei nem apoio nem proteção ao ladrão público e provado, nem a ele nem a seu empreendimento de banditismo. Quanto ao homem que conscientemente infringir esta paz, deixarei de protegê-lo, desde que o saiba; e se agiu inconscientemente e que venha a recorrer à minha proteção ou bem farei uma reparação por ele, ou bem obrigarei a fazê-la no prazo de quinze dias, depois do que estarei autorizado a pedir-lhes contas ou retirar-lhe-ei a minha proteção.

Não atacarei e nem despojarei o mercador ou o peregrino, salvo se cometerem uma má ação. Não matarei o gado dos camponeses, a não ser para a minha alimentação e da minha escolta.

Não capturarei o camponês e não lhe retirarei a sua subsistência por instigação pérfida do seu senhor.

Não atacarei as mulheres nobres, nem os que circularão com elas, na ausência do seu marido, a não ser que os encontre cometendo alguma má ação contra mim com o seu movimento; observarei a mesma atitude para com as viúvas e as monjas.

Também não despojarei aqueles que transportam o vinho em carroças, e não ficarei com os seus bois. Não prenderei os caçadores, os seus cavalos e cães, exceto no caso de serem nocivos a mim ou a todos aqueles que tomaram o mesmo compromisso e o observam para comigo (...)

Desde o começo da Quaresma até a Páscoa não atacarei o cavaleiro que não use as armas do mundo e não lhe retirarei a subsistência que tiver consigo. Se um camponês fizer mal a um outro camponês ou a um cavaleiro, esperarei quinze dias; depois do que, se não fizer reparação desprender-me-ei dele, mas só tomarei de seus haveres o que está legalmente fixado (citado em DUBY, 1986, 166-167).

Todas essas promessas mostram a virulência cavaleiresca contra a sociedade feudal do século XI. A Paz de Deus, a Trégua de Deus e os juramentos dos cavaleiros sobre as relíquias frearam um pouco as pulsões, os ímpetos agressivos dos guerreiros. Mas ainda faltava cristianizar os rituais cavaleirescos para tornar completo esse processo civilizatório.

Para a consecução deste processo, a partir do século XI elaborou-se o ideal cavaleiresco, sempre baseado nas prescrições da Paz e na Trégua de Deus. Os oratores perceberam que não bastava evitar a brutalidade dos cavaleiros contra os fracos: passaram então a exigir do cavaleiro que protegesse a sociedade não-beligerante com suas armas (PACAUT, s/d, 377).

A sacralização dos gestos pelos quais as armas eram entregues ao cavaleiro recém ingresso na ordem tinha como objetivo estender o reino de Cristo ao mundo dos homens através da espada em forma de cruz  — Ramon Llull não esquecerá essa imagem cristológica da espada:

Ao cavaleiro é dada a espada, que é feita à semelhança da cruz, para significar que assim como nosso Senhor Jesus Cristo venceu a morte na cruz na qual tínhamos caído pelo pecado de nosso pai Adão, assim o cavaleiro deve vencer e destruir os inimigos da cruz com a espada. E porque a espada é cortante em cada parte, e cavalaria existe para manter a justiça, e justiça é dar a cada um o seu direito, por isso a espada do cavaleiro significa que o cavaleiro mantém a cavalaria e a justiça com a espada (LOC, V, 2, 77).

A sacralização do ritual de adoubement pode também ser percebida pela mudança do vocabulário: “...não se arma apenas um cavaleiro. Procede-se à sua ordenação.” (BLOCH, 1987, 329). Os clérigos procuraram assim transformar a entrega das armas num sacramento — então entendido como um ato de consagração.

Em resumidas contas, era este o estado de coisas quando Ramon Llull escreveu o Livro da Ordem de Cavalaria, ou seja, a não ser num curto espaço de tempo e em circunstâncias especiais — como a cruzada, por exemplo (tema que, por sua extensão, propositalmente não tratei aqui) — a ética cavaleiresca forjada pelos religiosos para esse grupo social não vigorou. Talvez o Livro da Ordem de Cavalaria seja, além de uma proposta de entrelaçar a filosofia da Igreja com a prática guerreira das ordens de cavalaria, o registro escrito póstumo de um ideal já há muito abandonado, ou poucas vezes seguido na prática.

De qualquer modo, para compreender o sentido da obra de Ramon e suas propostas utópicas, é necessário vê-la na perspectiva maior do conjunto das obras lulianas, para então tentar precisar o universo de sentidos que Ramon atribui àsvirtudes e vícios.

VI. A produção luliana

A vasta produção luliana — duzentas e quarenta e quatro obras sobreviveram até os dias de hoje — foi dividida pelos especialistas em quatro etapas (Bonner, 1989. Citarei como OS):

1) Fase pré-artística (1271-1274, fim da época de estudo até sua visão no monte Randa),

2) Fase quaternária (1274-1289, subdividida em dois “ciclos” [Ciclo da Ars compendiosa inveniendi veritatem [ca.1274-ca.1283] e Ciclo da Art demostrativa [1283-1289]),

3) Terceira fase (1290-1308, período caracterizado por uma tentativa de facilitar a compreensão de sua Arte) e

4) Fase pós-artística (1308-1315. Já com mais de setenta anos, Llull passou a se preocupar com problemas concretos, filosóficos [campanha anti-averroísta] e lógicos, além de livros polemistas).

Livro da Ordem de Cavalaria se insere no início do ciclo da Ars compendiosa inveniendi veritatem (ca.1274 - ca.1283), isto é, ainda no início de sua produção literária. A obra é uma aplicação prática de sua Arte. Para que o leitor compreenda seu sentido, é necessário explicar o que era a Arte luliana, segundo seu próprio autor.

VII. A Arte luliana

Arte luliana (Ars) era um sistema de pensamento aplicável a qualquer tema ou problema específico, uma tentativa de unificar todo o pensamento da cultura medieval e um instrumento para investigar a verdade das criaturas tendo como pressuposto apriorístico a verdade de Deus, criada com o objetivo de converter os infiéis (PRING-MILL, 1962, 31-32).

Ars luliana era mais que uma doutrina: era uma técnica, um sistema, um modo de exposição técnico de uma ciência (BONNER, OS, I, 64) — uma definição bastante análoga ao período: os medievais consideravam o conceito de ars como uma doutrina do fazer humano. Para os medievos, arte era sobretudo uma técnica, “...a especialização do professor, assim como o têm as suas o carpinteiro ou o ferreiro. Após Hugo de Saint-Victor, São Tomás, no século seguinte, extrairia todas as conseqüências dessa proposição. Arte é toda atividade racional e justa do espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos materiais como intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer.” (LE GOFF, 1993, 57).

 

Arte era uma ordem fundamental do espírito (CURTIUS, 1996, 77). Esta concepção baseava-se em dois fundamentos: um cognoscitivo (ratiocogitatio), outro produtivo (faciendifacctibilium). Arte, para o medievo, era sobretudo um conhecimento de regras, através das quais coisas poderiam ser produzidas. Era uma virtude, uma “...capacidade de fazer algo, e, portanto, uma virtus operativa, virtude do intelecto prático. A arte inscreve-se no domínio do fazer, não do agir (...) a teoria da arte é, antes de mais nada, uma teoria da profissão.” (ECO, 1989, 131-132).

Arte era também a maneira pela qual Ramon Llull enfocava a filosofia ou a teologia: ele quase não discutia um conceito isoladamente (como faziam seus contemporâneos Tomás de Aquino e o franciscano Duns Scotus [c.1265-1308 ]). Em lugar disso, apresentava um grupo de conceitos, onde o que interessava era o lugar que eles ocupavam e a sua relação com os outros conceitos limítrofes (BONNER, OS, vol. I).

Por fim, a aplicação da Arte luliana possuía cinco usos, segundo seu próprio criador:

1) Conhecer e amar a Deus — amar a Deus era um preceito cristão (Mc 12,30 e Lc 10, 27), mas amar e conhecer a Deus era uma característica da teologia muçulmana, o que indica uma influência islâmica no pensamento de Ramon (GAYÀ ESTELRICH, 1974, 47-51),

2) Unir-se às virtudes e odiar os vícios, um processo que, segundo Llull, refrearia as paixões com a virtude da temperança (voltarei adiante a estas questões relativas às virtudes),

3) Confrontar as opiniões errôneas dos infiéis por meio das “razões convincentes”, ou “necessárias”,

4) Formular e resolver questões e

5) Poder adquirir outras ciências em um breve espaço de tempo e tirar as conclusões necessárias segundo as exigências da matéria.

Isto fazia da Arte luliana uma ciência das ciências, proporcionando critérios para um ordenamento preciso e racional de todo o conhecimento (ROSSI, 1960, 44-45; BONNER, OS, 69-71).

VIII. O Livro da Ordem de Cavalaria

Não se sabe o local da redação da obra, nem sua datação é precisa: provavelmente entre os anos 1279-1283. O Livro é apologético e doutrinário, tem conteúdo missional e pretende ocupar espaço na formação dos novos pretendentes à cavalaria, iluminando o caminho dos noviços com valores espirituais, morais e éticos.

Llull inicia seu livro com um pequeno Prólogo, que difere bastante em sua forma literária do restante da obra. A história é simples: vendo a proximidade da morte, um velho cavaleiro escolheu a vida eremita da floresta. Um dia, um escudeiro que viajava adormeceu em seu cavalo e foi levado pelo animal à presença do eremita. O escudeiro tinha o desejo de ser feito cavaleiro, e viajava para participar de cortes reunidas por um grande rei. “Maravilhados um com o outro”, eles conversaram.

Quando o escudeiro disse ao eremita não conhecer as regras da cavalaria, o velho deu a ele um antigo livro, escrito para restaurar a honra, a lealdade e a ordem que os cavaleiros deveriam ter. O jovem, agradecido, chegou à corte do prestigioso rei e presenteou-o com o livro dado pelo eremita, para que todos pudessem lê-lo com freqüência e tivessem sempre presentes em suas almas os ideais da cavalaria 
(LOC, Prólogo, 2-11).

Ramon utilizou neste Prólogo vários motivos novelescos provenientes do chamado Ciclo do Graal - tema desenvolvido por Chrétien de Troyes no século XII na obra Perceval, e se relaciona a crenças célticas (como o caldeirão da abundância, por exemplo). Pouco mais tarde, Robert de Boron compôs uma trilogia na qual o Graal se tornou a taça em que Cristo bebeu na última ceia e que mais tarde continha seu sangue recolhido por José de Arimatéia na crucificação.

No século XIII foram desenvolvidas várias obras anônimas com base no manuscrito de Boron, as quais tratavam da busca espiritual do Graal pelos cavaleiros do rei Artur. O Graal seria o objeto perfeito, capaz de garantir a prosperidade ao reino de Camelot. Só o cavaleiro perfeito, isto é, puro e sem pecados (Galaaz), seria capaz de encontrar o Santo Vaso (ZIERER, 1999).

Dos temas tratados no Ciclo do Graal, Llull utilizou: a floresta como lugar da solidão reflexiva, o velho cavaleiro feito ermitão, a relação cavaleiro-ermitão e o escudeiro que adormece e é levado pelo cavalo (SOLER I LLOPART, 1988, 15).

A forma literária da obra se reduz praticamente ao Prólogo e à aplicação alegórica na quinta parte do tratado: o restante é dedicado à argumentação dialética com um discurso alegórico didático-moral — para Llull, ciência escrita em livros —, se estabelecendo então um claro contraste entre as partes (SOLER I LLOPART, 1989, 21).

Já no Prólogo o leitor percebe os propósitos da obra. A cavalaria e o povo cristão se perderam, é preciso trazer o rebanho de volta, iluminá-lo. A obra possui um sentimento de nostalgia: era necessário fazer-se o soerguimento da cavalaria, já que o quadro era absolutamente decadente: cavaleiros ladrões e traidores de sua causa, reis e príncipes malvados.

Para Llull, as maiores missões do cavaleiro seriam: pacificar os homens, manter e defender o cristianismo e vencer os infiéis. A cavalaria deveria estar a serviço da fé cristã. Para tanto, o cavaleiro deveria imbuir-se dos mais nobres ideais, pois esta era uma missão divina, e só os puros de coração deveriam ter acesso a ela. Sendo assim, a cavalaria deveria escolher seus combatentes entre os nobres.

Llull limita o número de cavaleiros e afirma que os pretendentes devem ser ricos, para poderem possuir todo o armamento necessário ao seu ofício: “...cavalaria não observa multidão de número” (LOC, III, 1, 53). Isto fica ainda mais claro quando da festa que acontece após a sagração do cavaleiro: o nobre que irá armar o cavaleiro noviço deve dar presentes aos convidados, e o novo cavaleiro também:

Naquele dia deve ser feita grande festa de oferecimento, de convites, justas, e das outras coisas que convêm à festa de cavalaria. E o senhor que faz cavaleiro deve presentear ao novo cavaleiro e aos outros novos cavaleiros; e o cavaleiro novo deve presentear, naquele dia, porque quem recebe tão grande dom como é a ordem de cavalaria, sua ordem desmente se não dá segundo deve dar. Todas estas coisas e muitas outras que seriam longas de contar pertencem ao fato de dar cavalaria (LOC, IV, 13, 75).

Na quinta parte da obra (Do significado que existe nas armas de cavaleiro LOC, V, 77- 87), Llull desenvolve uma argumentação alegórica: a atribuição de um significado a cada uma das armas do cavaleiro. Em todos os casos, Llull insiste em explicar uma relação analógica entre signo e realidade, estabelecendo um sentido existente entre o mundo físico e o metafísico, uma transcendência (SOLER I LLOPART, 1989, 12).

As obrigações materiais restringem consideravelmente os nobres que desejam ingressar na cavalaria, tornando-a quase um corpo de elite. A Igreja deve cercar a cavalaria com seus ideais para que ela não se perca nos pecados mundanos. Isto está bem claro quando Llull afirma que a maior amizade existente deve se dar entre clérigos e cavaleiros:

Muitos são os ofícios que Deus tem dado neste mundo para ser servido pelos homens; mas todos os mais nobres, os mais honrados, os mais próximos dos ofícios que existem neste mundo são ofício de clérigo e ofício de cavaleiro; e por isso, a maior amizade que deveria existir neste mundo deveria ser entre clérigo e cavaleiro (LOC, II, 4, 25).

Daí o elogio à milícia dos templários feito cem anos antes por São Bernardo: as ordens militares (templários, hospitalários e posteriormente os cavaleiros teutônicos) seriam a personificação do ideal cavaleiresco: ofício de clérigo e de cavaleiro juntos num só homem, duas bases da pirâmide social unidas no ideal da guerra santa.

Outro ponto que unia as duas instituições (Igreja/Cavalaria) era o cerimonial que antecedia a sagração do noviço. A confissão e a data para a entronização do cavaleiro (qualquer festa honrada do ano cristão) indicavam que se tratava de uma cerimônia de caráter religioso. O jejum em honra do santo do dia e a observância de não participar da festa em si (o cavaleiro não deveria ouvir jograis, considerados transmissores do pecado) eram sinais do sagrado totalmente inseridos neste universo bélico:

O escudeiro deve jejuar na vigília da festa, por honra do santo da festa. E deve vir a Igreja orar a Deus na noite antes do dia em que deve ser feito cavaleiro; deve velar e estar em preces e em contemplação e ouvir palavras de Deus e da ordem de cavalaria; e se escuta jograis que cantam e falam de putarias e pecados, no começo da entrada na ordem de cavalaria começa a desonrar e a menosprezar a ordem de cavalaria (LOC, IV, 3, 67).

Com os dez mandamentos e os sete sacramentos da Igreja, todos eles jurados pelo cavaleiro na missa solene da sagração (LOC, II, 5-8, 69-71), a Igreja revestia o cerimonial militar com uma auréola sagrada indissolúvel. O ideal cavaleiresco luliano — muitas vezes quebrado na prática — tinha assim um propósito firme de entrelaçar a filosofia da Igreja com a prática guerreira das ordens de cavalaria. Tal meta visava o restabelecimento de um passado mítico glorioso, ligado diretamente à nobreza e à cavalaria do tempo de Carlos Magno, rei-perfeito na concepção medieval.

Vimos que, desde o final do século XII, a cavalaria era criticada pelo clérigos, por não cumprir sua missão primeva e adquirir valores mundanos, como, por exemplo, os torneios (LE GOFF, 1994, 267-279). Mas no tempo de Ramon, e especialmente no final de sua vida (séc. XIV), as próprias monarquias, em determinadas ocasiões, também faziam coro aos eclesiásticos: muitos cavaleiros se transformavam em exércitos de mercenários e se aliavam às milícias urbanas: eram as chamadasGrandes Companhias, o terror do século XIV (TUCHMAN, 1990, 205-213).

Diante de tamanha pressão, a cavalaria se refugiou nesta ideologia cavaleiresca que Ramon defende, construída com elementos eclesiásticos e nobiliárquicos. A ideologia é um sistema de representações globalizante, deformante e estabilizador, que pretende preservar as relações sociais. Ela não é um reflexo do vivido, mas um projeto de agir sobre a realidade social (DUBY, 1982, 21), permitindo ao grupo criar uma identidade comum que coordene suas ações e faça-o agir coletivamente. Numa mesma sociedade coexistem várias ideologias concorrentes, correspondendo a diferentes estratos culturais, étnicos e de relações de poder (DUBY, 1995).

Associada a um sistema de crenças, a ideologia medieval baseava-se em textos da teologia cristã. A Igreja pretendeu, a partir do século XI, moralizar o mundo militar, moldar a cavalaria a um código ético particular. Através da literatura clerical composta para um auditório guerreiro, pouco a pouco foi tomando corpo uma ideologia própria ao grupo de cavaleiros, a ideologia cavaleiresca, realização do esquema ideológico das três ordens do feudalismo (DUBY, 1995, 144).

Os eclesiásticos ofereciam uma ideologia cavaleiresca baseada em sua própria concepção de sociedade. Apesar de matizações diversas, percebo duas tendências básicas da atuação da Igreja sobre a cavalaria. A primeira, mais antiga e radical, pretendia a integração da cavalaria na instituição eclesiástica. Vimos que seu maior representante foi São Bernardo, que justificava a violência dos cavaleiros templários através de uma finalidade correta:

Mas os soldados de Cristo (os templários) combatem seguros nas batalhas do Senhor, sem temor algum por pecar ao se colocarem em perigo de morte e por matar o inimigo. Para eles, morrer ou matar por Cristo não implica criminalidade alguma e reporta a uma grande glória (...) o soldado de Cristo mata com segurança de consciência e morre com mais segurança ainda (BERNARDO DE CLARAVAL, BAC, 503).

É curioso o fato de Llull ignorar completamente esta obra de São Bernardo — embora o catalão trate do cavaleiro secular, e o santo, do monge-cavaleiro (OLIVER, 1958, 175-186).

De qualquer modo, visto em retrospecto no conjunto da cavalaria medieval, esta corrente de intervenção eclesiástica demonstrou pouca eficácia. Apesar de seu ímpeto inicial, levado a cabo através das ordens militares (na Europa, principalmente com a expansão para o Leste — Drag Nach Osten — promovida pelos cavaleiros teutônicos na Prússia [MILITZER, 1993, 165-193]), ela fracassou definitivamente com a decadência dessas mesmas ordens militares (templários [BARBER, 1991], hospitalários e teutônicos) e com a perda definitiva da Terra Santa em 1291 (NICHOLSON, 1995, 125-128).

A segunda linha ideológica, mais moderada e de maior alcance temporal, legitimava a função da cavalaria na sociedade e reconhecia sua violência, em determinadas condições, como o meio lícito para um fim. Por exemplo, o papa Gregório VII (1073-1085) pretendia submeter a cavalaria a seu programa de reforma, fundando uma militia Petri (DUFFY, 1998, 94-99).

No entanto, tal corrente ideológica desejava controlar os cavaleiros por meio de uma ética, atribuindo à cavalaria ideais, objetivos e normas de comportamento — sacralizando o grupo com um cerimonial e a criação do conceito de ordo. O Livro da Ordem de Cavalaria se insere nesta segunda tradição ideológica. Era sua proposta oferecer uma ideologia cavaleiresca com o objetivo de formar um projeto social coerente através de cinco pontos:

1) Função
2) Determinação da posição social
3) Construção de um sistema ético, baseado na antítese virtude – vício
4) Proposta de mecanismos de reforma e
5) Oferecimento de um esquema tipológico imaginário (SOLER I LLOPART, 1988, 47).

A principal finalidade da obra era instruir os cavaleiros nas virtudes próprias da ordem de cavalaria, tema que passo agora a analisar.

IX. A oposição virtudes/vícios no Livro da Ordem de Cavalaria

Ramon desenvolve o tema virtudes/vícios praticamente em todas as sua obras, pois, como vimos, este era um dos cinco usos possíveis de sua Arte. No Livro da Ordem de Cavalaria, Llull trata do tema com o objetivo de legitimar a ordem cavaleiresca, ou, em suas palavras, “torná-la bem acostumada” (LOC, V, 1, 89). Ramon inicia então com as virtudes teologais e cardeais:

Todo cavaleiro deve conhecer as sete virtudes que são raiz e princípio de todos os bons costumes e são vias e carreiras da celestial glória perdurável. Das quais sete virtudes são as três teologais e as quatro cardeais. As teologais são fé, esperança, caridade. As cardeais são justiça, prudência, fortaleza, temperança (LOC, V, 2, 89).

Virtude (virtus) deriva de vir (virilidade, vigor, homem, masculinidade). O século XIII é considerado o tempo da virtus por excelência, isto é, o tempo da vontade como potência da vida. Para os filósofos medievais, o racionalismo deveria ceder terreno ao voluntarismo, pois se pensava o divino como um ser volitivo (BÜHLER, 1983, 96).

Por outro lado, conceitualmente, virtude significa força, poder, eficácia de uma coisa (FERRATER MORA, 1982, 419), algo merecedor de admiração, que tornaria seu portador uma pessoa melhor, moral ou intelectualmente (BLACKBURN, 1997, 405).

Desde Platão e Aristóteles, o conceito foi entendido, para o primeiro (virtudes cardeais), como uma capacidade de realizar uma tarefa determinada (PLATÃO, A República, Livro I, 353a, 49-50); para o segundo (virtudes morais ou excelência moral), como um hábito racional, que tornaria o homem bom (ARISTÓTELES, Ética a Nicômanos, Livro II, 2, 1103b, 35-36 e Livro II, 6, 1106, 40).

Estas quatro virtudes cardeais (prudênciajustiçafortaleza e temperança) — pontos referenciais para a potência do homem —, eram utilizadas por todos os pensadores medievais. Tomás de Aquino, ainda defendeu o conceito de virtude aristotélica como uma conseqüência dos hábitos humanos, mas sobretudo como perfeição da potência (capacidade de ser alguma coisa) voltada para seu ato (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, volume III, q. 55).

São Tomás ainda aproveitou este sistema referencial para demonstrar que só as virtudes morais poderiam ser chamadas de cardeais, pois exigiriam a disciplina dos desejos (rectitudo appetitus), virtude perfeita (Suma, II, 1, q. 52). De fato, esta é a base de todas as citações medievais posteriores sobre as virtudes cardeais, inclusive Ramon Llull, que se vale principalmente da idéia de virtude como hábito.

Por outro lado, as virtudes teologais. Elas se encontram em São Paulo (c.10-66 d.C.), em sua Primeira Epístola aos Coríntios, escrita por volta dos anos 50-57 d.C. Ao comentar o uso e a hierarquia dos carismas — um dos problemas cruciais do cristianismo primitivo — São Paulo, trata da importância da caridade (“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como um bronze que soa ou como um címbalo que tine”) (Bíblia de Jerusalém, 1991, 1Cor, 13, 1, 2.164).

No final desta passagem, São Paulo fala das três virtudes teologaisesperança e caridade, sendo que a caridade — no sentido grego de ágape, um amor de dileção, que quer o bem do próximo, sem fronteiras, que busca a paz no sentido mais puro, o amor que é a própria natureza de Deus — é a maior delas (Bíblia de Jerusalém, 1Cor, 13, 13, 2.166).

Sempre junto dessas virtudes, o pensamento em Deus. Estes atributos (imperativos) deveriam ser encadeados. Também para Ramon Llull as virtudes deveriam ser ativas: através de sua ação, de sua prática social, a ordem dos cavaleiros seria reconhecida pelo restante do corpo social.

E o que Llull entendia exatamente por virtude? O estudo das virtudes lulianas se insere no âmbito da ética, de uma ética das virtudes. A Ética, junto com a Metafísica e a Epistemologia, é considerada um dos três pilares da Filosofia, e estuda a natureza e os fundamentos do pensamento e da ação moral, em geral, ciência da conduta.

ética luliana possuía base aristotélica, privilegiando as virtudes. Ramon comparava as correspondências e contrariedades entre virtudes e vícios, típica de seu tempo, partindo de uma gênese filosófica de cunho psicológico: o que impulsionava o homem a filosofar era a admiração, o ato de maravilhar-se, pelo assombro do espetáculo da natureza e pela falta de caridade e devoção a Deus por parte dos homens de seu século.

Esta estupefação dava lugar a uma consciência moral que justificava uma atitude apologética: o homem cristão deveria difundir a fé. Assim, a ética luliana estava dividida em quatro segmentos:

1) a chamada “primeira intenção” (a preocupação com a solução do problema da finalidade do universo)
2) os dois movimentos da alma (para o bem e para o mal) em relação à liberdade
3) a consciência como diretriz da conduta prática
4) o sentido correcionista da ética (TOMÁS Y JOAQUÍN CARRERAS Y ARTAU, EL, vol. I, 1, 1957).

Mas o que interessa ressaltar na ética luliana é sua montagem através de contrários. Seria mesmo uma ética da polaridade: os princípios de concordância e contrariedade, de perfeição e imperfeição, cuja explicação pode encontrar-se no substrato ideológico da época. Os pensadores medievais pensavam suas idéias em termos dualistas; o século XIII realizou um esforço intelectual de síntese de contrários (ROBERT LOPEZ, 1965, 359).

Esta polaridade está assim expressa no capítulo VI do Livro da Ordem de Cavalaria (LOC, VI, 89-107): virtudes teologais (esperança e caridade), virtudes cardeais (justiçaprudênciafortaleza e temperança) e os vícios, ou sete pecados capitais (glutonialuxúriaavarezapreguiçasoberba, inveja e ira).

 é o alicerce do cavaleiro: dela decorrem a esperança e a caridade. Sete são as qualidades decorrentes da , quatro da esperança, quatro da caridade:

 

 

As Virtudes Teologais e suas qualidades no Livro da Ordem de Cavalaria

EsperançaCaridade
Com a Fé o cavaleiro tem a Visão de Deus e de Suas obrasCom a Esperança o cavaleiro tem coragem Com a Caridade o cavaleiro tem amor a Deus
Esperança O cavaleiro se lembra de Deus na batalha O cavaleiro tem piedade dos despossuídos
Caridade O cavaleiro vence a batalha O cavaleiro tem misericórdia dos vencidos
Verdade O cavaleiro suporta fome e sede Com a caridade o cavaleiro suporta o peso de seu nobre coração
O cavaleiro vai para a cruzada --- ---
O cavaleiro torna-se mártir --- ---
O cavaleiro defende os clérigos --- ---
 

Para Ramon, o cavaleiro adquiria todas as virtudes teologais, necessárias e fundamentais ao seu ofício, através da . E de todas as qualidades decorrentes da , as duas obrigações mais importantes para o cavaleiro do século XIII: a peregrinação à Terra Santa e a luta na cruzada. Da  decorreriam também as outras duas virtudes teologais (caridade e esperança), o que fazia o sistema luliano ser entrelaçado por um profundo sentido unitário.

Esse mesmo entrelaçamento acontecia com as virtudes cardeais e os vícios que elas combateriam:

 

As Virtudes Cardeais, suas qualidades e os Vícios (os Sete Pecados Capitais) no Livro da Ordem de Cavalaria

JustiçaPrudênciaFortalezaEsperança
Com a Justiça o cavaleiro evita as injúrias e as coisas tortasCom a Prudência o cavaleiro tem conhecimento das coisas vindourasVirtude com a qual o cavaleiro combate os 
sete pecados capitais: 
Inveja, Acídia, Luxúria, Glutonia, Avareza, Soberba, Ira
Virtude que está no meio de dois vícios: o excesso e a falta
---O cavaleiro se esquiva dos danos corporais e espirituais------
---O cavaleiro vence as batalhas------
---
cavaleiro conhece o bem e o mal
------


Através da justiça, o cavaleiro teria o conhecimento do mal e a possibilidade de evitar as injúrias. A justiça serviria ao cavaleiro em seu dia-a-dia, não em combate. Já a prudência sim, seria a virtude necessária na guerra. Com ela, o cavaleiro conheceria os presságios, o bem e o mal, se esquivaria dos golpes e venceria as batalhas.

Com a temperança, o cavaleiro viveria na perfeição filosófica, sem excessos nem faltas. Mas seria com a fortaleza que o cavaleiro combateria todos os vícios, os sete pecados que poderiam levá-lo aos caminhos do Inferno, “...carreiras pelas quais vai-se aos infernais tormentos que não têm fim” (LOC, VI, 95) .

No mesmo capítulo, Llull ainda opõe diretamente as virtudes aos vícios, alterando um pouco a relação acima e criando uma série de binômios contrários:

Glutonia – Abstinência
Luxúria – Fortaleza
Avareza – Fortaleza
Acídia – Fortaleza
Soberba – Fortaleza e Humildade
Inveja – Fortaleza
Ira – Coragem, Caridade, Abstinência e Paciência

De todas as virtudes, a fortaleza seria a mais necessária ao cavaleiro, pois ela combateria a luxúria, a avareza, a preguiça, a soberba e a invejapecados mortais que provavelmente assolavam a cavalaria da época. Na descrição de todos os vícios, Ramon dá exemplos de como os cavaleiros eram tentados. Por exemplo, por causa de sua riqueza, necessária ao seu ofício (LOC, III, 16, 61), a soberba tentava o cavaleiro, montado em seu grande cavalo, guarnecido com todas as suas armas. Ele só teria forças para combatê-la através da fortaleza e humildade, que o lembrariam a razão pela qual era cavaleiro (LOC, VI, 14, 99).

Assim, através de séries de binômios contrários, submetidos a uma lei de formação, o sistema luliano de virtudes e vícios formava um todo unitário. Seu objetivo era reproduzir no ser humano a imagem da Divindade, traduzindo as dignidades divinas em virtudes humanas (S. TRÍAS MERCANT, 1969, 119-121).

Esta unidade do sistema luliano de virtudes se baseava em dois pólos: o amor (as virtudes, intenção final do homem) e o pecado (os vícios, força desviadora da intenção final para qual cada homem foi criado) (S. TRÍAS MERCANT, 1970, 135).

Por fim, o que é mais importante destacar é que, para Ramon Llull, através do conhecimento das virtudes, raciocinando-as, é que nossa inteligência se elevaria à de Deus (LEOPOLDO EIJO GARAY, 1974, 25). Com esse conhecimento, o cavaleiro viveria de acordo com a nobreza de seu ofício: manter, defender e multiplicar a fé católica, reger as terras e gentes “pelo pavor”, vilas e cidades, defender seu senhor, proteger as viúvas, órfãos e despossuídos, fazer justiça, defender os caminhos e lavradores, cavalgar, caçar, esgrimir, justar e fazer távolas redondas (LOC, II, p. 23-51).

A proposta utópica do Livro da Ordem de Cavalaria nunca pôde realizar-se. O século XIV, com o fortalecimento das monarquias européias, a Guerra dos Cem Anos e a Grande Peste, viu o fim de todos os projetos cavaleirescos e dos sonhos de harmonia do sistema feudal baseado no conhecimento das virtudes e vícios criados pelos clérigos — e leigos como Ramon Llull. Terminava a Idade Média (DUBY, 1992).

Na verdade, este tratado, além de ser um projeto civilizador cristão, é um registro tardio de um ideal, o ideal cavaleiresco, um sonho na maior parte das vezes aviltado pelos homens de então.

 

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