A morte em Santo Tomás de Aquino
Ricardo da COSTA
Sidney SILVEIRA
In: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de (org.).
Idade Média: tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus.
Porto Alegre: EST Edições (Escola Superior de Teologia), 2006,
p. 223-229 (ISBN 85-7517-165-8).
In: SANTOS, Franklin Santana (org.). A Arte de Morrer - Visões Plurais - Volume 2.
Bragança Paulista, SP: Editora Comenius, 2009, p. 209-217
(ISBN 978-85-98472-23-2).
Resumo: O presente artigo analisa a doutrina do Aquinate sobre a morte do ser humano. Inicia-se com uma breve contextualização histórica e social da noção da morte na sociedade medieval para, a seguir, abordar, o tema a partir das perspectivas teológica (a morte do homem como um castigo decorrente do pecado original) e ontológica – e por fim, trata ainda acerca da imortalidade da alma humana, devido a sua intrínseca incorruptibilidade.
Abstract: The present article analyzes Saint Thomas Aquinas’ doctrine on the human death. It is initiated with a brief historical and social context of the notion of the death in the medieval society for, as follows, to approach the Aquinas’ doctrine about the theme from the theological (the death of the man as a consequence of the Original Sin) and ontological perspectives, and finally, considers the immortality of the human soul as a consequence of its intrinsic incorruptibility.
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I. A morte na Idade Média
Para os senhores do mundo feudal, a morte era um momento de conciliação. Caso não morressem no campo de batalha, na cruzada ou em alguma peregrinação, eles sucumbiam em casa, no seu leito, junto à família e aos amigos. Era então que deveriam despojar-se de tudo: o moribundo, lentamente, sofria a dor com a chegada da morte e partilhava tudo o que tinha, em uma grande cerimônia pública. Todos os de sua casa, da família, cercavam-no, ouviam as suas decisões, a partilha, o desejo final. E, muitas vezes, a morte era pressentida; aqueles homens, principalmente osoratores, tinham premonições, visões que a anunciavam.1
Assim, tinham tempo para preparar o seu ritual coletivo, pois a boa morte cristã deveria ser lenta, nunca súbita.2 Nessa morte preparada, ninguém morria só. O trespasse desse mundo se transformava em festa, momento máximo da amizade entre os homens, do convívio social e, sobretudo, da confirmação dos votos vassálicos.3 Todos deveriam acompanhar a passagem do moribundo para o além — inclusive as crianças, suas e dos seus.4 Todos contemplavam o fim do corpo e como a morte é justa, pois iguala os diferentes em vida.
Neste cenário, o choro e as lágrimas eram uma atribuição eminentemente feminina: a senhora e as suas damas de companhia deveriam ficar perto do corpo e gritar, rasgar as vestes, arrancar os cabelos, carpir. Era a sua (importante) função pública5, pois o gemido feminino era um gemido ritual. As mulheres eram agentes essenciais do rito funerário6, e esse era um antigo ritual fruitivo que trazia a morte lenta e regradamente. Era mesmo um prelúdio, a mudança para um estado superior7 – no caso, é claro, de aquela alma ser agraciada por Deus e levada ao Paraíso, pois se acreditava que a maior parte delas iria para o Inferno. Portanto, a grande preocupação de todos não era com a morte, e sim com a salvação de suas almas.8 A passagem da Crônica de Hainaut, por exemplo, nos conta a procura do conde Balduíno pelas relíquias e explica: na agonia íntima do último encontro com os seus homens, o conde congregava os seus, e implorava o toque das relíquias sagradas, em busca da salvação de sua alma e do perdão de seus pecados. Mas, principalmente, ele desejava a concórdia feudal para que a congregação de seus homens prosseguisse após sua morte com seus filhos. “As portas do outro mundo começavam a entreabrir-se para ele”.9
Assim, no decisivo momento da morte, aqueles homens, os poderosos, miravam para cima, refletiam sobre quão frágil era a existência, como era pequeno, frívolo e cheio de escândalo o século presente, e como era grande o poder de Deus e pequena a fraqueza dos homens.10 O instante da morte era a última oportunidade de reconciliação com o Criador. Sua presença foi tão forte e constante nas mentes dos homens de então que, entre 1150 e 1250, surgiu a representação da morte sob a forma do esqueleto empunhando a foice.11
Mas cabe indagar: qual o lugar, nessa sociedade eminentemente analfabeta, para os escritores, os pensadores? O que diziam sobre a morte? Como esse era um tema presente no imaginário de todos os medievais, era natural que muitas páginas tenham sido escritas por eles, já que, na Idade Média, os homens viviam para morrer. Para a nossa breve análise deste tema tão caro aos medievais, selecionamos um pensador, talvez, o maior de sua época, Tomás de Aquino (1225-74), cuja obra, embora tenha se alimentado da seiva comum das verdades da fé cristã, alçou-se muito acima do seu tempo, buscando, pelo viés filosófico, a conciliação entre a fé e a razão.
II. A morte de acordo com Tomás de Aquino
No estudo intitulado “Tomás de Aquino e o nosso tempo: o problema do fim do homem”, o filósofo Henrique C. de Lima Vaz adverte que a interpretação de uma experiência que encontrou a sua expressão teórica em textos do passado, pressupõe a possibilidade de referir essa mesma experiência – e também a sua expressão – ao presente, no ato da leitura.12
No caso de Tomás de Aquino, além dos problemas de hermenêutica suscitados pela tentativa de interpretação de escritos compostos em época tão distante da nossa, uma atitude de prudência é aconselhável, se nos aproximamos do Doutor Angélico com o propósito de vislumbrar a harmoniosa justaposição dos elementos de seu vasto sistema, no qual cada parte se ordena e é proporcionada a um fim específico, e cada um desses fins, por sua vez, conduz a outros, no horizonte metafísico que tem Deus como princípio e fim último de todos os entes.
Assim, como metodologia convém seguir o conselho do próprio Tomás, que, no pequeno texto intitulado “O modo de estudar” (De modo studendi), recomenda: os estudiosos não devem pronunciar-se de forma apressada acerca do que pesquisam.13 Feita esta advertência preliminar, registre-se que o presente estudo sobre a morte em Tomás de Aquino buscará orientar-se por duas linhas mestras.
Uma dessas linhas parte do movimento que o teólogo dominicano D. M. Chenu apontou no plano da Suma Teológica: a Prima Pars trata da criação das coisas por Deus; a Secunda Pars refere-se ao retorno de tudo ao seu princípio criador e ordenador, ou seja, o próprio Deus; e a Tertia Pars estuda as condições cristãs para esse retorno, no caso particular do homem.14 O exemplarismo divino e o retorno da imagem (homem) ao seu modelo (Deus) constituem o eixo dos escritos morais de Santo Tomás, e veremos como a morte do homem, para o Aquinate, se insere no contexto moral — que se efetiva a partir dos atos livres do ser humano.
Por esta razão, é conveniente destacar que, segundo Tomás de Aquino, o ato propriamente humano orienta-se pela vontade15, a qual é movida pela razão.16 Sendo assim, como é natural no homem agir com algum grau de conhecimento do fim em vista do qual age, de qualquer um dos seus atos só poderá dizer-se “bom” ou “mau” quando for voluntário, pois uma ação involuntária – não movida pelo apetite racional (expressão com que o Doutor Angélico designa a vontade) – não pode ser considerada boa ou má sob o aspecto moral.17
Aqui nos deparamos com o cerne desta primeira linha mestra: a morte humana como conseqüência do mal moral, que a tradição judaico-cristã convencionou chamar de “pecado original”, um ato de livre escolha para cuja execução houve o concurso da razão e da vontade.
Para Santo Tomás, a vida eterna não é outra coisa senão a própria bem-aventurança18 à qual o homem foi destinado por Deus. Contudo, para alcançá-la, se requer dele a retidão da vontade19, que tem a sua consecução na liberdade e, por isso, o Aquinate afirma que é essencial para qualquer pena (e a morte, para ele, é uma pena, decorrente do pecado original) ser contrária à vontade20 e, por conseqüência, à liberdade, que é o seu sucedâneo.21
No chamado “estado de inocência original” ao homem foram concedidos os dons preternaturais que o auxiliavam a evitar os erros22 e efetivar, a partir do exercício da liberdade, o seu destino à beatitude eterna, escolhendo os verdadeiros bens (e dentre estes, a vida, fonte de todos os demais). Pressuposta esta paradisíaca realidade, perdida com a queda de Adão e Eva, Santo Tomás passa a distinguir — com relação ao mal do ponto de vista ontológico — entre o mal que consiste na privação de uma forma (ato primeiro, que é o simples ato de ser de cada ente) e o mal que consiste na orientação de uma ação (ato segundo, atinente às intenções).23 A morte corresponde à primeira dessas distinções, referente à privação da forma, pois é a privação, no corpo humano, da sua forma substancial: a alma (anima). É o chamado “mal de pena”.
À segunda distinção corresponde o chamado “mal de culpa”, que é uma desorientação da vontade24, ou seja, quando esta escolhe pseudos bens, ou bens contingentes, que obstam a consecução da felicidade perene, embora, sejam portadores de algum quantum de bem e de prazer, pois todos os entes, pelo simples ato de ser (actus essendi), são portadores de algum bem25 e, por isso, são apetecíveis, já que o mal não tem essência, pois é a privação de bem nos entes26 — e, por esta razão o mal, em si mesmo, não pode mover o apetite racional da vontade, pois os homens agem sempre buscando algum bem (real ou aparente) em suas ações. Neste horizonte metafísico, cumpre enfatizar que só o que é pode ser apetecível pela criatura racional que age em vista de um fim que, necessariamente, tenha razão de bem.
Na perspectiva da procedência de tudo a partir de Deus, mencionada acima, dimensionam-se a vida e a morte do homem. Em termos concretos, o homem vive a partir de sua alma, que é princípio do movimento e primeiro ato natural de um corpo organizado27, a qual procede de Deus28, que a cria no momento do nascimento e não antes29, pois, convém-lhe estar unida ao corpo.30
Assim, vivendo a partir de uma alma incorruptível unida a um corpo corruptível, o homem morre, de acordo com Santo Tomás, por ter sido incapaz de manter a justiça original do estado de inocência em que foi criado – no qual operavam, sob o controle da razão, todas as faculdades da alma sem desordem alguma.31 Nesse estado, a ordenação da faculdade intelectiva da alma ao bem supremo, que é Deus, era perfeita. A desordem na vontade e o ofuscamento da razão começam com o pecado original.
Nesta perspectiva, a morte do homem é considerada antinatural, e o filósofo salienta isso frisando que a alma racional, de acordo com a sua incorruptibilidade, está adaptada ao seu fim específico, que é a bem-aventurança perpétua.32 Na economia da salvação das almas e de sua recondução a Deus, insere-se a Encarnação do Verbo, pois é na pessoa do Cristo (que, por união hipostática, reúne em si as naturezas humana e divina, deificando a carne pela união com o Verbo33) que ao homem é dada a oportunidade de recuperar a possibilidade de unir-se ao Criador.
A segunda linha orientadora deste escrito se configura no plano ontológico. Uma das dificuldades de abordar o tema da morte em filosofia e, mesmo em teologia, é que se trata do único evento na vida humana não suscetível de se transformar em experiência. Como frisa Aristóteles, muitas recordações de uma mesma coisa chegam a constituir uma experiência.34 Mas como seria possível recordar de algo irrepetível, justamente o episódio singular que põe fim à existência? Henrique de Lima Vaz salienta que duas coisas concorrem para qualquer tipo de conhecimento e, particularmente, o filosófico: aanámnesis (recordação) e a nóesis (pensamento).35
Por isso, a morte pode tão-somente ser pensada, testemunhada, observada, etc., mas nunca será um experimento, passível de posterior verificação, e isto faz dela, necessariamente, um mistério para qualquer campo de conhecimento.36 Na melhor das hipóteses, o homem está condenado a ter um simulacro de experiência da morte, a partir da que sobrevém aos seus semelhantes. Como frisa José Ignácio Murillo, a resposta ao enigma da morte acaba por se dar, geralmente, no âmbito da religião.37 Mas isto não implica dizer que a filosofia não possa dizer nada a respeito do fato inquestionável da finitude da vida. E o Aquinate o faz.
Para Santo Tomás, a morte pode ser natural com respeito ao corpo, mas não o é com respeito à alma. Na tentativa de dimensionar o problema da morte humana como sendo a do corpo, em Tomás de Aquino, lembremos o seguinte: ontologicamente, o mal físico que decorre da corrupção do corpo e faz o homem sofrer e, cujo grau máximo, é a morte, com a conseqüente destruição do corpo, não é a negação de um bem possível, mas a privação de um bem natural, isto é, de uma perfeição devida à natureza de determinado ser, como escreve Leonel Franca.38
Por esta mesma razão, não é um mal físico para uma pedra não ter pernas, pois naturalmente não as têm. Nela, não ter pernas é negação; mas no homem, não tê-las é privação de um bem específico, integrante de sua natureza.39 Para Leonel Franca, a morte não entrou no mundo pela corruptibilidade intrínseca (e filosoficamente inquestionável) da matéria, mas por uma iniciativa infeliz do espírito, o qual perdeu o dom de preservar a matéria da corrupção.40
Com relação à incorruptibilidade da alma racional, Santo Tomás demonstra-a de várias maneiras, como a partir da premissa de que nenhuma coisa se corrompe naquilo em que se aperfeiçoa, porque as mudanças para a perfeição e para a corrupção são contrárias, e a alma humana se aperfeiçoa pela ciência e pela virtude, às quais tende por natureza; pela ciência, tanto mais a alma se aperfeiçoa quanto mais considera as coisas imateriais; e pela virtude, a perfeição consiste em não seguir as paixões corpóreas, mas em refreá-las.41
Neste horizonte, ele considera o perfectivo próprio do homem, segundo a alma, como algo incorruptível, pois a operação própria do homem é o conhecimento intelectivo, segundo o qual ele se diferencia dos animais irracionais. “Ora, o conhecimento intelectivo tem por objeto os universais e os incorruptíveis como tais. Como as perfeições de um ser são proporcionadas aos sujeitos perfectíveis, também a alma será incorruptível”.42
O filósofo medieval argumenta contra os que dizem que a alma separada do corpo não efetiva nenhuma operação, dizendo que há operações da alma humana, como a intelecção e a volição, que independem daquela situação.43 Para Santo Tomás, o intelecto apreende a coisa abstraindo da matéria, que é princípio da individuação, o que não acontece com os sentidos, pois estes se referem às coisas particulares, e o intelecto chega aos universais pela abstração da matéria individual44, pois, enquanto o intelecto elabora o conceito universal de “homem” e de “cadeira”, os sentidos captam apenas este homem e esta cadeira.
Da total imaterialidade destas duas operações da alma – a intelecção e a volição –, o Aquinate conduz-nos às substâncias separadas da matéria, como a alma dos homens e os anjos.45 A respeito destas últimas, conclui que, se há algo imperfeito em algum gênero, por prioridade de natureza haverá, antes dele, algo perfeito, pois o mais perfeito tem prioridade sobre o menos perfeito.46 No caso dos anjos ou substâncias separadas, a operação máxima – que é a intelecção – não proviria dos sentidos materiais, pois os anjos não estão, substancialmente, unidos a nenhum corpo.47
Um conjunto de artigos da Suma contra os Gentios conduz à demonstração da incorruptibilidade das substâncias intelectuais, a partir de várias premissas, assim como do fato de serem tais substâncias subsistentes. Assim, por exemplo, como o sensível é objeto próprio dos sentidos, o inteligível é objeto do intelecto. Assinala Tomás de Aquino, neste contexto, que os sentidos podem corromper-se pela excelência do seu objeto, como acontece com o olho humano, ao contemplar um objeto excessivamente luminoso. Entretanto, o intelecto jamais se corrompe pela excelência do objeto inteligível, mas, ao contrário, aperfeiçoa-se, sendo o inteligível a própria perfeição do intelecto.48
Todavia, como a substância intelectual, no caso do homem, está unida ao corpo, alguns filósofos anteriores ao Aquinate pensaram que todas as operações da alma humana fossem comuns às operações do corpo, ou ainda que a união corpo/alma não era substancial, mas acidental — como Platão nos induz a concluir, com a famosa proposição de que a alma se encontra no corpo como o piloto em seu navio e, por isso, a alma apenas se serve do corpo — como faz o piloto com o navio, no sentido de que este o conduza ao seu fim.49
Tem-se aqui um esboço sumário da doutrina tomista sobre a morte humana50, a qual se respalda na perspectiva teológica — a da morte como decorrência do pecado original — e se consuma na análise da estrutura ontológica da alma racional, em duas (dentre as várias) obras em que Santo Tomás aborda o tema, com diferentes demonstrações acerca da impossibilidade de sua extinção, pelo fato de ser intrinsecamente incorruptível e subsistente.
Com relação ao destino da alma, após a morte, Tomás aborda a questão em diferentes escritos, mas se trata de um assunto que faz parte de um tema que foge ao escopo deste artigo: o da escatologia.
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Suma contra os Gentios, Capítulo LXXIX – Corrompido o corpo, a alma não se corrompe
1. Depreende-se claramente do acima exposto que se pode demonstrar que a alma humana não se corrompe, após a corrupção do corpo. Com efeito, foi acima demonstrado (c. LV) que toda substância intelectual é incorruptível. Ora, foi também demonstrado que a alma humana é uma certa substância intelectual (c. LVIss). Logo, necessariamente a alma humana é incorruptível.51
2. Além disso, nenhuma coisa corrompe-se naquilo que constitui a sua perfeição, porque as mudanças para a perfeição e para a corrupção são contrárias. Ora, a perfeição da alma humana consiste em certa abstração do corpo. Com efeito, aperfeiçoa-se a alma humana pela ciência e pela virtude, pois, pela ciência, tanto mais é aperfeiçoada quanto mais considera as coisas imateriais, e a perfeição da virtude consiste em o homem não seguir as paixões corpóreas, mas em refreá-las e temperá-las pela razão. Logo, a corrupção da alma não consistirá em ela separar-se do corpo.
3. Porém, se se afirmar que a perfeição da alma consiste em sua separação do corpo segundo a operação, e a corrupção na separação segundo o ser, não se objeta corretamente. Com efeito, a operação da coisa demonstra a sua substância e o seu ser, porque toda coisa opera enquanto ser e a operação própria da coisa segue-lhe a natureza. Por isso, não é possível ser aperfeiçoada a operação de uma coisa se não é segundo a perfeição de sua substância. Ora, se a alma aperfeiçoa-se na sua operação por deixar o corpo, a sua substância incorpórea não ficará menos perfeita no ser por ter deixado o corpo.
4. Além disso, o perfectivo próprio do homem segundo a alma é algo incorruptível, pois a operação própria do homem, enquanto homem, é o conhecimento intelectivo, segundo o qual ele se diferencia dos animais, das plantas e dos corpos inertes. Ora, o conhecimento intelectivo tem por objeto os universais e os incorruptíveis como tais. Como as perfeições de um ser são proporcionadas aos sujeitos perfectíveis, também a alma humana é incorruptível
Notas
- 1. Georges DUBY, O ano mil. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 80-83.
- 2. A melhor narrativa sobre a morte na Idade Média é ainda, a nosso ver, o pequeno livro de Georges DUBY, Guilherme Marechal, ou o melhor cavaleiro do mundo (Rio de Janeiro: Graal, 1987). Também cabe ressaltar que, para toda a tradição assentada desde o protocristianismo, a morte lenta é bem vista, por ser uma oportunidade de santificação para a alma, que, no sofrimento, se torna capaz de se voltar para Deus. Por sua vez, a morte súbita era temida na medida em que reduzia as chances de arrependimento do pecador, chances para que meditasse sobre os seus pecados e os confessasse a Deus, representado pelo sacerdote in persona Christi.
- 3. G. DUBY, “Quadros”. In: G. DUBY, Georges e Ph. ARIÈS, (dir.). História da vida privada 2. Da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 65-66.
- 4. Ph. ARIÈS, Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa: Teorema, 1989, p. 24.
- 5. G. DUBY, Damas do século XII. A lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 20-21.
- 6. E. LE ROY LADURIE, Montaillou. Cátaros e católicos numa aldeia francesa - 1294-1324. Lisboa: Edições 70, s/d, p. 282.
- 7. G. DUBY, Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987, p. 10.
- 8. E. LE ROY LADURIE, op. cit.,p. 289.
- 9. G. DUBY, “Quadros”, op. cit., p. 95.
- 10. Llibre dels fets del rei en Jaume. Barcelona: Editorial Barcino, 1991, vol. II, I, 34-38, p. 6.
- 11. Heitor MEGALE, “Apresentação”. In: HÉLINAND DE FROIDMONT. Os Versos da Morte. Poema do século XII. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 09.
- 12. H. C. de LIMA VAZ, Escritos de Filosofia I – Problemas de Fronteira. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 37.
- 13. “Tardiloquum te esse iubeo et tarde ad locutorium accedentem”. TOMÁS DE AQUINO – De modo studendi, § 3 (tradução para o português do filósofo Paulo FAITANIN [Uff], em versão ainda não editada, gentilmente cedida pelo autor).
- 14. Suma Teológica, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), p. 34. Santiago Ramírez, em outra edição da Suma Teológica da BAC, afirma de modo similar que na Primeira Parte da Suma, Tomás de Aquino apresenta Deus em si mesmo – uno em essência e trino em pessoas –, além de criador, conservador e governador de todas as coisas; na Segunda Parte, investiga e analisa os meios adequados para conduzir as criaturas racionais e livres à posse do fim último e supremo que é Deus, assim como os obstáculos e tropeços que podem apartá-las desse ditoso fim; e, na Terceira Parte, assinala o caminho que conduz a Deus, na pessoa do Cristo. Vide TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Salamanca: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1947, Introdução, p. 2-3.
- 15. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iª IIª, q. 1. a. 1, Resp.; Suma Teológica, Iª IIª, q. 6. a. 1., Resp.
- 16. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iª IIª, q. 9. a. 1. Para Tomás de Aquino, no tocante as suas operações, a vontade humana, que ontologicamente é perfeita para querer o bem, pode dizer-se imperfeita quando a razão, que a alimenta, está em erro e leva o agente a inclinar-se a um bem (ou falso bem) que lhe seja impróprio (“Praecedit igitur in voluntate peccatum accionis defectus ordinis ad rationem”, Suma contra os Gentios, III, cap. 10, 9. A edição que compulsada neste trabalho é a editada em Caxias do Sul, pela Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1990. A tradução desse texto é de lavra de D. Odilão de Moura OSB e D. Ludgero Jaspers OSB.
- 17. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, III, cap. X, 6.
- 18. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 64. a. 2, Resp.
- 19. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iª IIª, q. 4. a. 4. Ressalve-se que, embora necessária à beatitude ou bem-aventurança, a reta vontade é apenas um ponto de partida, pois, para o Aquinate, a bem-aventurança é uma operação da parte intelectiva da alma humana, porque, após alcançá-la, a vontade repousa e como que pára de querer, pois se move buscando o fim somente quando este não está presente. Assim, a essência da bem-aventurança consiste em um ato do entendimento (ver Suma Teológica, Iª IIª, q. 3. a. 4), quando a vontade gozosa descansa no fim já conseguido. A infelicidade máxima, em contrapartida, é a impossibilidade formal de alcançar a bem-aventurança, caso dos demônios e dos condenados à pena eterna, que tanto mais sofrem porque neles ainda permanece a inclinação natural à virtude e o desejo de beatitude. Eis a aflitiva situação dos condenados ao inferno: trata-se da permanência do apetite racional do bem, associada à impossibilidade de alcançá-lo. Ver Suma Teológica, Iª IIº q. 85. a. 2, Ad.3.
- 20. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 94. a. 3, Resp.
- 21. Ao longo da Prima Secundae da Suma Teológica, há uma explicação circunstanciada das causas que constituem o “ato livre”: a razão é causa formal do ato livre humano, enquanto as paixões do apetite sensível influem sobre a maneira pela qual o objeto se apresenta à vontade. Por fim, a vontade é movida em função do fim que persegue, que é a beatitude perfeita, o bem supremo que é Deus. Veja Jean-Pierre TORREL, O. P. Iniciação a Santo Tomás de Aquino – sua pessoa e sua obra. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 285.
- 22. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 94. a. 4.
- 23. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 48 a. 6.
- 24. Há um consenso entre pensadores de orientação tomista de que as paixões diminuem a liberdade humana, pelo ofuscamento da razão, embora os atos continuem sendo voluntários. Neste sentido, diz-se que o ato propriamente humano (voluntário e racional) pode não se dar em sua perfeição, por impedimentos próximos ou remotos. Os impedimentos próximos seriam: a)cognoscitivos (ignorância, inadvertência, erro e esquecimento); b) volitivos (concupiscência, medo, paixões e hábitos); c) executivos (violência). Já os impedimentos remotos seriam: a) naturais(temperamento, caráter, herança, idade e sexo) b) patológicos (neurastenia, histeria, epilepsia, etc.); c) sociológicos (educação, ambiente social, etc.). Antonio Royo MARIN. Teología moral para seglares. Madrid, (BAC), 1957, p. 49-65.
- 25. Dado que para o Doutor Angélico, a culpa consiste em um ato desordenado da vontade, e a pena, na privação de algumas das coisas de que a vontade se utiliza para operar, Santo Tomás diz que a culpa tem maior razão de mal do que a pena, sendo esta uma determinada privação da graça e da glória. Suma Teológica, I, q. 48 a. 6.
- 26. TOMÁS DE AQUINO, De Malo, q.1, a.1, Resp.
- 27. TOMÁS DE AQUINO, A unidade do intelecto contra os averroístas. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 47; e ARISTÓTELES, De anima, II, 1, 412 b.
- 28. Para Santo Tomás, nas procissões divinas, tudo o que procede do Verbo se chama geração. Mas ele adverte que usa o termo em dois sentidos: no primeiro, trata-se da passagem de algo do não-ser ao ser, chamada criação; no segundo, trata-se da origem de um ser vivente a partir do seu princípio vital e de movimento. A este último tipo de geração, dá o nome de nascimento. (“Sciendum est quod nomine generationis dupliciter utimur. Uno modo, communiter ad omnia generabilia et corruptibilia, et sic generatio nihil aliud est quam mutatio de non esse ad esse. Alio modo, proprie in viventibus, et sic generatio significat originem alicuius viventis a principio vivente coniuncto. Et haec proprie dicitur nativitas”). Ver Suma Teológica, I, q. 27. a. 2. Resp.).
- 29. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 90. a. 2. Resp.(“Respondeo dicendum quod anima rationalis non potest fieri nisi per creationem”).
- 30. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 90. a. 4. (“Anima autem, cum sit pars humanae naturae, non habet naturalem perfectionem nisi secundum quod est corpori unita. Unde non fuisset conveniens animam sine corpore creari”). O Aquinate ressalta que, sendo o homem um composto de forma e matéria, no qual a alma é (a única) forma substancial, esta só está em estado de perfeição enquanto unida ao corpo, embora possa subsistir de modo imperfeito sem ele, por ser incorruptível. Por esta razão, não seria congruente que a alma fosse criada antes do corpo, mas juntamente com ele, porque Deus cria tudo sempre visando à perfeição. Ela não recebe o existir antes de estar unida ao corpo (“Non igitur competit naturae ordini quod anima fuerit prius creata a corpore exuta, quan corpori unita”, Suma Contra os Gentios, II, cap. 83, 1660).
- 31. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Iª IIª, q. 85. a. 5. (“...per peccatum primi parentis sublata est originalis iustitia, per quam non solum inferiores animae vires continebantur sub ratione absque omni deordinatione, sed totum corpus continebatur sub anima absque omni defectu, ut in primo habitum est”).
- 32. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, III, q. 2. a. 2. Ad. 3.
- 33. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 48 a. 6.
- 34. ARISTÓTELES, Metafísica, I, 1, 981a.
- 35. “A filosofia assume como tarefa pensar tematicamente o seu próprio passado – unir anámnesis e nóesis – e nesta rememoração pensante, reinventar os problemas que lhe deram origem” – Marcelo PERINE (org.). Diálogos com a cultura contemporânea – homenagem ao Pe. .Henrique C. de Lima Vaz, São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 66.
- 36. Mesmo a Medicina, embora tão próxima do fenômeno da morte, não pode fazer dela uma “experiência”, no sentido aqui mencionado, pois todos os seus avanços dizem respeito antes de tudo à preservação da vida e da saúde humanas, sendo a morte, justamente, a frustração de todos os seus esforços.
- 37. José Ignacio MURILLO. El valor revelador de la muerte – estudio desde Santo Tomás de Aquino. Navarra: Cuadernos de Anuario Filosófico de la Universidad de Navarra. 1999, p. 13.
- 38. Leonel FRANCA. A psicologia da fé – O problema de Deus. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 316.
- 39. José Ignacio MURILLO, op. cit., p. 55: “La naturaleza (...) no es otra cosa que la realidad irreductible de algo, en cuanto principio de actividad. En el caso del hombre, la naturaleza es la unión de un alma espiritual con un cuerpo que necesita para llevar a cabo su actividad propia, entender”.
- 40. Leonel FRANCA, op. cit., p. 327.
- 41. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 79, p. 1599.
- 42. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 79, p. 1601.
- 43. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 79, p. 1624.
- 44. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 82, p. 1641 e 1642.
- 45. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 91.
- 46. É importante observar que, para o Aquinate, no ser humano as operações anímicas do entendimento e da vontade não são a mesma coisa do que se passa com os anjos. Enquanto as primeiras, de acordo com Santo Tomás, são passíveis de demonstração racional, quanto aos anjos, propriamente, o Angélico sublinha que a sua existência não é demonstrável pela razão humana, mas uma verdade de fé ratificada pela autoridade das Escrituras, embora seja um dado razoável e fundamentado, mas não o termo de uma demonstração filosoficamente necessária. Santo Tomás afirma que os anjos são realidades intermediárias entre Deus e as criaturas corpóreas, e estão sempre em movimento porque estão “sempre entendendo”. Ver TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 50 a. 1.
- 47. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 96, 1812.
- 48. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, II, cap. 55, 1306-1307.
- 49. No artigo intitulado “Tese de Platão sobre a união da alma intelectiva com o corpo” (Positio platonis de unione animae intelectualis ad corpus), na Suma Contra os Gentios (II, 57, 1326), Santo Tomás cita ad tertium a tese de Platão de que a alma está no corpo como o marinheiro no navio, concluindo que, sendo assim, a união de ambos se daria por um contato apenas virtual, mas não substancial. Cumpre observar, contudo, que não obstante esta fundamental diferença ontológica, que resultará em teses diametralmente opostas, como a de que a alma é mais perfeita e conhece melhor quando despojada do corpo (Platão), e a de que a alma humana, sem o corpo, subsiste de modo imperfeito (Santo Tomás), há aproximações entre os dois filósofos. Uma delas consiste na tese — desenvolvida n’A República — de que os males próprios de cada ente os corrompe. Mas, no caso da alma humana, o seu mal, que é o vício, por maior que seja, não a destrói nem a corrompe, pois, mesmo na maldade, a alma continua a existir. Por isto, se a alma não pode ser destruída pelo mal do corpo, que lhe é totalmente alheio, nem pelo seu próprio mal, que é o vício, ela será, portanto, indestrutível. Ver, PLATÃO, A República, 610-611a.
- 50. Com respeito à morte dos animais irracionais, o ponto de vista de Santo Tomás é totalmente diverso, pois a alma deles, para o Angélico, não sendo capaz de efetivar nenhuma operação sem a intermediação de algum órgão corporal, é necessariamente, mortal, e se extingue juntamente com o próprio corpo deles.
- 51. Edição citada, vol. I, p. 319.