Ramon Llull (1232-1316) e a Beleza, boa forma natural da ordenação divina

Ramon, quando vejo um belo objeto, por causa de sua beleza sou naturalmente movido ao deleite, como quando vejo uma bela senhora, um belo leito, uma bela casa, uma bela espada ornada de ouro e prata, um belo cavalo, belos vestidos, uma bela família e coisas desse tipo.

Por isso, naturalmente me comprazem todas essas coisas, pois minha potência visiva e os próprios objetos me movem ao deleite.
Ramon Llull, A disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico (1311), cap. V, 43.

Imagem 1

beleza1.jpg

Detalhe de um dos querubins e a visão do profeta Isaías, da decoração do muro cilíndrico da abside central da Igreja de Santa Maria d'Àneu (Pallars Sobirà, por volta de 1200, atualmente no Museu Nacional d'Art de Catalunya, Barcelona). Esse afresco é uma impressionante mostra da arte catalã medieval. Nesse detalhe se percebe a intensa força dramática do semblante do querubim, especialmente presente na profundidade e na intensidade de seu olhar, um traço característico da arte de seu autor, o Mestre de Pedret. Além disso, naturalmente, chamam muito a atenção do expectador os múltiplos e salientes olhos que integram suas longas asas e suas vestes em forma de couraça: nada escapa aos olhos dos enviados de Deus. A beleza medieval, quando queria, também sabia ter imponência, altivez.

I. O Belo e o Bem

Na Filosofia, o conceito de belo se desenvolveu como um correlato dos transcendentais “uno”, “vero” e “bom” (propriedades que todas as coisas têm em comum). Assim, no plano ontológico, não pode haver beleza em algo que não seja em si completo, uno, pois como poderia o indefinido (ápeiron) e indiscernível ser considerado belo? Daí afirmar Aristóteles que “as formas principais do belo são a ordem, a simetria e a delimitação” (Metafísica, XIII, 3, 1078b).

Já no plano metafísico, o belo é associado à verdade, e, no moral, ao bem. Desvincular a noção de beleza desses três transcendentais (UnumVerumBonum) significa, na prática, tornar possível que se considerem bonitos o disforme, o mentiroso e o mau. Literalmente. Não por acaso, Santo Tomás afirma ser efeito direto do pecado a perda do modo, da ordem e da beleza (Suma Teológica, I, 85, 4), pois o Aquinate tem em vista esse vínculo estreito entre os transcendentais –concernentes, respectivamente, às ordens ontológica (Unum), metafísico-gnosiológica (Verum) e moral (Bonum).

Essa relação do belo a âmbitos diferentes da realidade já se observa claramente em Platão, mas o filósofo da Academia nos aponta também uma gradação de beleza, observável pelos dois níveis que constituem o ser próprio do homem: o sensível (corpo) e o inteligível (alma). Em diferentes diálogos, Platão mostra que a beleza percebida pelos sentidos tem um profundo caráter pedagógico e, por isso, não pode ser má em si mesma, pois educa o homem a ascender à beleza do inteligível (Banquete, 210b-212a), sendo o prazer decorrente da alma superior ao que provém do corpo.

Pois bem, se a beleza física ensina ao homem a percepção da beleza inteligível, não poderia ser má em si mesma. Aqui fica evidente o exagero de alguns intérpretes para quem Platão despreza absolutamente o mundo físico. “Hiperurânio” significa lugar acima do céu, mas se trata de uma imagem que não indica um lugar físico, mas meta-físico e supra-sensível. Lá, reside o Belo propriamente, do qual participa a beleza das coisas materiais.

Plotino (205-270 d.C.), nas Enéadas, também distingue a beleza das coisas materiais daquela que se contempla no mundo supra-sensível. Com os olhos naturais, segundo o filósofo neoplatônico, percebemos a beleza natural; com os olhos da alma, miramos as belezas mais elevadas e abandonamos o ilusório e enganosoterreno dos sentidos (Enéadas, I, 4).

Com Plotino minimiza-se um pouco a idéia de participação e se acentua a dualidade entre o uno, percebido pela inteligência, e o múltiplo, identificado com as coisas materiais. Em Platão, o sensível é mímese do inteligível, porque o imita sem jamais igualá-lo, razão pela qual, em sua Teoria das Idéias, há mais dualidade do que propriamente dualismo entre o sensível e o inteligível, e mais gradação do que separação entre a beleza física e a espiritual.

Em Plotino, o mundo material das belezas corporais parece relegado mais decisivamente a ser imagem, traço, sombra, espectro da verdadeira beleza. Por isso, o homem deve habituar sua alma à contemplação das belas ocupações, das belas obras, e especialmente das almas daqueles que realizam essas belas obras. De toda forma, para Plotino a beleza atrelada ao bem (ordem moral) é também um imperativo. Por isso, o símbolo maior da feiúra é a alma dissoluta e injusta, cheia de concupiscências e desequilíbrios – alma covarde, mesquinha, invejosa, infectada pelo deleite dos prazeres impuros das paixões corporais (Enéadas, I, 5).

Com Plotino já está esboçada a tríade que marcará profundamente todo o pensamento medieval: UnumVerumBonum. A beleza decorre da consideração desses transcendentais. Tais esferas de valor estavam integradas, completavam-se e não podiam separar-se. Por fim, para contemplar retamente a beleza – das criaturas e da natureza – haveria uma única exigência por parte da mente contemplativa (muito mais tarde definida belamente por Dante Alighieri [1265-1321]): um olhar claro e uma mente pura (“con occhio chiaro e con affetto puro”, Paraíso, Canto VI, 87).

II. O Belo e sua leitura pelos medievais

Com incontida satisfação a Idade Média sorveu o tema clássico do belo oriundo desse filtro neoplatônico repassado por Plotino. Somada à filosofia grega, a tradição cristã medieval enriqueceu o tema com suas alusões à beleza do mundo – o mundo é belo porque foi uma criação consciente de um Ser inteligente, e é belo porque foi feito com medida, número e peso (temas pitagóricos, mas também desenvolvidos pela tradição veterotestamentária, especialmente em Gênesis, noLivro da Sabedoria e no Eclesiástico).

Munidos especialmente dessas duas tradições – a grega e a judaico-cristã – os intelectuais medievais desenvolveram com profusão o tema da beleza. Nunca na história da humanidade tantas pessoas se preocuparam com o belo, nunca as sensibilidades foram tão aguçadas em direção ao afeto da beleza, nunca a pulcritude foi tão contemplada e descrita em palavras. O bispo Basílio de Cesaréia (329-379), por exemplo, preocupou-se com a beleza da luz: “Como a noção de beleza conserva seu valor a propósito da luz? Não será porque a proporção da luz se testemunha não em suas próprias partes, mas no aspecto risonho e doce que oferece à vista?” (Homilia in Hexaemeron, II, 7). Alegria e doçura definem o espetáculo da claridade do Sol.

Imagem 2

beleza2.jpg

Evangeliário (c. 1100, Trier, Domschatz). Deus é luz: “Quando, de vez em quando a dileção pelas cores da casa do Senhor ou o esplendor multicolorido das pedras preciosas me distanciam, pelo prazer que produzem, de minhas próprias preocupações, e quando a honesta meditação me convida a refletir sobre a diversidade das santas virtudes, transferindo-me das coisas materiais para as imateriais, parece que resido em uma estranha região do orbe celeste, que não chega a estar completamente na superfície da terra nem na pureza do céu, e que, pela graça de Deus, posso transferir-me de um lugar inferior para outro superior de um modo anagógico” - Suger de Saint Denis, De rebus in administratione sua gestis, XXXIII, 198-199.

Por sua vez, Clemente de Alexandria (†215) reconheceu o deleite provocado pelo olhar da beleza da flor, mas ressaltou que a melhor beleza era a da alma e de seus resplendores (a justiça, a prudência, a fortaleza, a temperança, a benevolência e o pudor), associada à beleza corporal (Paedagogus, II, 8 e III, 11).

Alguns séculos mais tarde, o Pseudo-Dionísio, o Areopagita (séc. V) seguiu a tradição e reafirmou a unicidade do belo e do bem:

Por causa do belo se produzem as harmonias, os afetos e as participações de todas as coisas. Por meio do belo tudo se une. O belo é o princípio de todas as coisas, sua causa eficiente, seu motor e o que as contêm por amor de sua própria beleza. É também o limite que se ama como causa final (pois, por causa do belo, todas as coisas recebem seu ser) e o modelo, porque, segundo ele, tudo recebe sua delimitação.

Por isso o belo também é idêntico ao bem, porque em toda causa, tudo tende ao belo e ao bem. Não há nenhum ser que não participe do belo ou do bem (De divinis nominibus, IV, 7).

Santo Agostinho (354-430) já havia ressaltado a beleza da unidade (“A unidade é a forma de toda a formosura”, Epístola XVIII, 5), e tratou da beleza em suas múltiplas formas (na música, no número, na forma e na proporção, na conveniência e na ordem). A abrangência de suas considerações o coloca como o pilar direito do pensamento ocidental.

Mas embora o tema seja fascinante e rico, não pretendo discorrer sobre todos os autores medievais que trataram do belo. Basta resumir esta introdução com a seguinte linha de força: as múltiplas manifestações de apreço e sensibilidade que os medievais demonstraram em seus escritos e em suas imagens (esculturas, pinturas, iluminuras, vitrais, construções, etc.) tiveram um mesmo princípio norteador, qual seja, o da associação entre beleza e a verdade, a beleza e a ética, a beleza e a moral. O belo era a manifestação do bem. Sem esse pano de fundo ético, a beleza não tinha valor, estava destituída de sentido.

Até mesmo a feiúra se explicava e era “denunciada” por sua carência de harmonia, por ser a perfeita antítese do belo (ECO, 2004: 133). E de todas as belezas, aquela que provinha da verdade do entendimento, da plena capacidade de compreensão, era a mais considerada. Capacidade de entendimento que, em seu cume, poderia chegar a ultrapassar a beleza corpórea e vislumbrar a grande beleza do mundo inteligível.

O próprio Ramon Llull expressou magnificamente essa concepção em seu Livro das Maravilhas (1289), quando, em uma passagem, um eremita explica ao viajante Félix – aquele que é feliz – o significado da beleza divina, a maior e mais perfeita de todas as belezas:

Para que Félix entendesse perfeitamente a beleza divina, o eremita disse que uma alma santa estava em contemplação e via a grande beleza em seu entender e em seu entendimento, pois o entendimento entendia que podia entender Deus e tinha grande beleza neste poder, já que entender Deus é uma grande beleza e tal entender embeleza muito o entendimento. A santa alma via em sua memória e em sua vontade exatamente isso. Ao ver uma beleza de poder tão grande em sua memória, entendimento e vontade, esta alma amou ter aquela beleza em seu poder, e quis lembrar, entender e amar a Deus para que fosse bela em sua essência e em sua obra.

Félix entendeu a semelhança que o eremita disse, e afirmou que, entendendo a beleza do poder de Deus em Sua bondade, infinitude, eternidade e em todas as Suas dignidades, desejava que naquela bondade houvesse beleza de produzir o bom, o infinito, o eterno, e assim de todas, para que a essência fosse bela na bondade, na infinitude e em todas, e também fosse bela na beleza de Sua obra por todas, estando todas as dignidades em uma beleza essencial e sendo belas pelas distintas obras nas pessoas divinas (Livro das Maravilhas, cap. 93).

Percebe, leitor, a forma circular do texto? Ela tem o objetivo de fazê-lo ascender espiritualmente em direção a Deus. Trata-se de uma permeabilidade vocabular, pois ao discorrer sobre um tema, Llull utiliza o mesmo campo semântico de palavras (no caso, entender / entendimento / entendia e beleza / embeleza), e altera o ponto de gravidade textual para assim elevar o espírito do leitor, uma sutilíssima técnica literária medieval que exprime a delicadeza dos escritores de então ao tratarem de um tema tão candente.

Por outro lado, através desse tipo de redação circular – circularidade que a própria hermenêutica moderna ressalta como necessária para o gradativo desenvolvimento da interpretação (GADAMER, 1998: 58) – Llull tenta explicar o inexplicável, isto é, o êxtase místico do contato com Deus. Esse é um tema dificilmente explicável de forma racional para nós (mesmo a filosofia moderna se mostrou incapaz de oferecer um pressuposto antropológico adequado à compreensão do fenômeno místico em sua gênese – a própria experiência do Ser de Heidegger, é considerada uma experiência mística desfigurada) (VAZ, 2000: 25).

Esta forma de redação circular é tipicamente medieval e se explica também pela idéia neoplatônica que o conhecimento da alma – e, portanto, o de Deus – se dava através de um movimento circular, idéia expressa uma vez mais por Plotino: “Quando uma Alma chega a conhecer a si mesma, vê que seu movimento não se dá em linha reta (...), mas que o movimento conforme a sua natureza é como um círculo ao redor de algo – não de algo exterior, mas de um centro, a partir do qual provém o círculo” (PLOTINO, Sobre o Bem ou o Uno, 8).

III. O Livro da contemplação (c. 1274) e o Belo

Essa linha de força que persistiu por toda a Idade Média não poderia passar despercebida ao filósofo catalão. Em muitos de seus escritos há passagens relacionadas ao tema da beleza e da feiúra e a necessidade de o homem alçar vôos mais altos que a primeira beleza visível, a material. Ramon Llull utiliza as palavras bellbellabellamentbelleabellesa para designar essa notável sensibilidade humana.

Dos cinco sentidos, a visão, segundo Llull, é a que proporciona ao ser a recepção das belezas desse mundo – o próprio amor, segundo os medievais, iniciava com a “visão da beleza do outro sexo e da lembrança obsedante dessa beleza” (ANDRÉ CAPELÃO, Tratado do amor cortês, Livro I, cap. 1). Em sua obra Livro da contemplação (OE, vol. II, 1960: 97-1258), um dos primeiros textos de sua pena e escrito em forma de diálogo místico com Deus (COSTA, 2006), há um capítulo dedicado ao tema, e que possui o sugestivo título de “Como o homem se previne nesse mundo de quais coisas são belas e quais são feias” (Llibre de contemplació, L. II, vol. II, XXIII dist., cap. CIV, 1-30, a partir de agora citado como LC). Esse será o documento base que norteará nossas considerações a respeito do belo na filosofia luliana.

Pois bem, para Llull, o homem possui dois tipos de visão: a corporal e a espiritual. Os olhos corporais têm a capacidade de ver a beleza das coisas sensuais, e os olhos espirituais a beleza das coisas intelectuais (LC, Livro II, vol. II, XXIII dist., cap. CIV, 1-2). Aos olhos corporais é agradável ver a claridade do alvorecer e a estrela boreal, os prados, as flores, as ribeiras, os bosques (LC, cap. CIV, 3). A natureza: esse era o primeiro contato do espírito medieval com a beleza. Para as pessoas de então, a natureza era como um imenso e belíssimo livro a ser desvelado pelo homem, mas não por um homem qualquer, mas por aquele que possuísse a sensibilidade para ver o que está visível para todos. Somente uns poucos seriam capazes de desvelar a essência do que vêem (GREGORY, 2002).

Contudo, a alma não deveria se ater a esse primeiro momento fruitivo, a esse primeiro deslumbramento ante o espetáculo da beleza natural criada por Deus. Era imperativo fazer um esforço para elevar seu entendimento em direção à beleza apreendida pela visão espiritual. Assim, apesar da percepção da beleza das flores e das ribeiras, o homem deveria cogitar e ver a beleza das virtudes humanas, como o amor e a paciência, a lealdade e a humildade, a piedade e a misericórdia (LC, cap. CIV, 3).

É nesse constante contraste filosófico de oposições que o texto é construído. A seguir, o filósofo aborda o tema da beleza feminina. É quando seu pensamento segue a tradição monástica mais restrita, e adverte os homens para o perigo que as mulheres representam, o perigo da sexualidade, o perigo do deslumbre que atinge os olhos corporais, e a possibilidade de macular a beleza da carne intocada: “Oh, Senhor, liberal, justiceiro, sábio e verdadeiro em todas as coisas! Se aos olhos corporais agrada ver a bela mulher quando está bem vestida e bem adornada, aos olhos espirituais é coisa muito feia vê-la, pois ela é a mulher horrível e perversa, vil e de más obras e sujeiras” (LC, cap. CIV, 3).

Nesse momento, o discurso luliano se aproxima muito do temor dos clérigos (DUBY, 2001) – no século X, o abade Odo de Cluny já fizera a mesma advertência contra a mulher, contra Eva (DALARUN, 1990: 35). A mulher representava a própria tentação da sexualidade, o oposto que era buscado pelas ordens monásticas. Mas muito pior que ver o outro sexo – e até mesmo ver o próprio ato sexual – era, para Llull, mirar com os olhos espirituais a feiúra dos atos antiéticos praticados pelos homens:

Se aos olhos corporais, Senhor Deus, é coisa feia ver as sujeiras e as feiúras que o homem e a mulher fazem nos lugares sujos que têm, os quais são vergonhosos de se ver, aos olhos espirituais é coisa muito mais feia ver no homem as falsidades, as traições, os enganos, as cobiças e os outros vícios (LC, cap. CIV, 6)

Prosseguindo em seu diálogo com Deus, Ramon aborda, além do tema da sexualidade e da mulher, a questão da beleza da pobreza, sobretudo da pobreza voluntária, um tema muito importante no século XIII. Pois praticamente todas as experiências religiosas daquele tempo foram marcadas pela vontade de voltar à época dos apóstolos e dos mártires (VAUCHEZ, 1995: 71); quase todas as tradições antigas enalteciam o refreamento das paixões carnais, a desvalorização da riqueza material, e o conseqüente enaltecimento do mundo espiritual:

Senhor Deus verdadeiro, que sois elevado e nobre acima de todas as nobrezas e todos os honramentos, o bem-aventurado religioso tem um prazer muito maior em ver seus vis trapos, apesar de serem velhos, despedaçados e de cores feias, que ver os vestidos nobres e honrados, de belas cores, vestidos pelos homens delicados e amantes da vanglória desse mundo (LC, cap. CIV, 7).

Nunca é demais ressaltar que essa perspectiva estética reconhece a intensa beleza das coisas materiais – chegou-se a afirmar, por exemplo, que o discurso de São Bernardo (1090-1154) contra as imagens das igrejas cluniacenses era uma prova da incapacidade dos medievais de apreenderem a fruição estética artística! (COSTA, 2002). Muito pelo contrário, todos os medievais – inclusive Llull, naturalmente – reconhecem a sedução da beleza corpórea, como mostra, espero, essas passagens do Livro da contemplação.

A questão é que a ênfase recai sempre na beleza superior do que é incorpóreo – e nesse ponto eles seguem a tradição platônica e neoplatônica (além da bíblica), como vimos anteriormente. Daí, por exemplo, essa interessantíssima contraposição que, a seguir, o filósofo faz entre a “má fêmea” (a mulher pecadora, adúltera, etc.) e o esterco do jardim (que em catalão se transforma em um verdadeiro jogo retórico de palavras: fems [esterco] / fembra [fêmea, mulher]):

Humilde Senhor, obedecido por todos os povos, bem-aventurado por todas as gentes, é muito mais bela coisa ver o esterco no jardim que a má fêmea na igreja, mesmo que as fezes sejam uma figura feia e a fêmea seja uma bela figura. Isso acontece, Senhor, porque do esterqueiro que existe no jardim nascem folhas e flores, com boas cores, belos odores e bons sabores, e da má fêmea, por mais que esteja adornada, não nasce senão pecado, fedor e sujeira.

A má fêmea, Senhor, coloca cosméticos brancos e coloridos, e tinge seus cabelos, suas sobrancelhas, sua boca e seus olhos, para ser bela às gentes. E a respeito das belas cores e as belas feições que Vós haveis colocado nela, ela, Senhor, coloca cores que são de coisas muito feias e muito fedorentas de ver, de cheirar e de apalpar.

De que vale, Senhor, para a má fêmea, que o homem a veja bela pelos olhos corporais, se os olhos espirituais sabem que toda a sua beleza se tornará fedorenta, com vermes e minhocas, e a terra comerá e apodrecerá todas aquelas feições que ela tinge e colore? (LC, cap. CIV, 10-13).

O leitor moderno que conseguir ultrapassar a impressão do primeiro e mais rasteiro nível de leitura (que é o da indignação e estupefação por um filósofo se valer da mulher para criar uma contraposição tão feia!), verá que a mensagem final do texto, em meu entender, é a seguinte: o homem deve aprender a ver a verdadeira beleza por trás da bela realidade sensível – e de todas as belezas sensíveis, a da mulher é a maior de todas, a mais tentadora de todas! É isso que nos ensina o filósofo.

Além disso, o homem precisa aprender a ver o desenrolar das coisas, o que o bem (que é belo) e o mal (que é feio) fazem. Para isso, Llull recolhe da tradição monástica e misógina medieval o tema da beleza da mulher sedutora, e cria uma antítese entre essa beleza e a feiúra (e o fedor das fezes). Pelo contrário, por trás da belíssima realidade física da mulher pintada e da feiúra e do fedor das fezes, há o oposto: a bela mulher pecadora cria a feiúra da maldade, enquanto o feio esterco produz a bela vida natural.

Por fim, nessa interessante passagem selecionada acima há o tema da morte, uma das questões mais prementes das filosofias antiga e medieval: de que vale fruir a beleza física se ela é tão frágil, já que envelhece e morre? Por que não almejar o vislumbre da beleza espiritual que, ao contrário da beleza física, só se torna mais bela com o passar do tempo, até passar dessa vida para a outra?

Em uma passagem mais adiante, Ramon chega a fazer uma interessante confissão pessoal, lembrança de seus tempos de trovador da corte real: a beleza das mulheres foi a “pestilência e a tribulação de meus olhos, Senhor, porque pela beleza das mulheres eu esqueci Vossa grande bondade e a beleza de Vossas obras” (LC, cap. CIV, 16). E de todas as coisas corporais, a beleza que deve ser apreciada e contemplada não é a feminina, mas a da natureza para, a seguir, elevar o entendimento até o mundo supra-sensível:

Prazeroso Senhor, que é Doçura, Amor, Honra e Prazer. As belas coisas, Senhor, que os olhos corporais podem ver, são as belas flores e os belos frutos, como a bela rosa ou a bela flor do lírio, ou o belo pomar ou a bela cidreira, pois cada uma dessas coisas é muito prazerosa de se ver.

Mas sem qualquer comparação, Senhor, é mais bela coisa e mais prazerosa de ver aos olhos espirituais a grande beleza que existe em Vossa obra, obra que é vista nas criaturas que haveis criado e ordenado. (LC, cap. CIV, 10-13).

A seguir, o filósofo cria uma analogia entre a árvore e seu corpo – um dos temas mais recorrentes na filosofia medieval e na história do conhecimento (BURKE, 2003: 82). A árvore seca não é tão bela de ver como a árvore verde e cheia de folhas e flores. Da mesma forma, um corpo com mais pecados que virtudes é, aos olhos de Deus e à Sua sabedoria, muito mais feio e sujo que belo e virtuoso. Portanto, como uma árvore podada e limpa se renova e dá beleza aos olhos corporais por causa de seus ramos, flores e frutos, Llull diz que se Deus desejasse limpá-lo e purgá-lo de seus pecados, ele poderia ser belo e limpo aos olhos dos homens (LC, cap. CIV, 22-23).

Além da árvore, Llull traz a imagem dos castelos e palácios como metáfora para a antítese beleza física / beleza espiritual. Pois além dos objetivos militares e das funções táticas, aquelas construções eram, por excelência, lugares de fruição que os medievais de todas as ordens sociais compartilhavam. Há, inclusive, aos olhos dos especialistas, uma sutil dialética na arte da construção medieval, um fio tênue entre a virilidade, o poder e a agressividade, de um lado, e a doçura, a beleza e a feminilidade, do outro. Pois aos olhos contemporâneos, o palácio era, por excelência, o lugar do maravilhoso (MESQUI, 1998: 187), portanto, da beleza.

Portanto, Llull diz que o homem que constrói seu palácio ou castelo e tem vontade de fazê-lo belo, bem pintado e nobre, tem antes em sua imaginação a beleza, não a feiúra. E assim como o homem olha no belo palácio ou no belo castelo as coisas que são belas – como as pinturas, os entalhes, os muros, as torres e as barbacãs – de mesma forma deve se proteger das coisas que são feias (LC, cap. CIV, 25-26).

O filósofo conclui sua consideração sobre a beleza com o belo deleite da visão do Cristo crucificado e como a contemplação da cruz lhe traz a visão de sua beleza (virtudes) e feiúra (pecados). A cruz é como o espelho: quando a senhora se olha no espelho, pode ver sua beleza ou feiúra. Da mesma forma, quando Llull olha a cruz, diz que seus olhos espirituais vêem e sabem sua beleza e sujeira (LC, cap. CIV, 28). Claro, Deus tudo sabe. Seus olhos se enchem de lágrimas e seu coração de amor, de devoção e de lembrança da Santa Paixão. Caso contrário, isto é, se seus olhos espirituais não tiverem essa predisposição amorosa, de nada valerá olhar a Paixão de Cristo:

Mas, Senhor, se enquanto estiver diante de Vosso glorioso altar e diante da Santa figura da Santa cruz eu não ver com os olhos espirituais e meus olhos em lágrimas, meu coração em amor, em devoção e lembrando a Vossa Paixão e a Vossa virtude, então, meus olhos espirituais, Senhor, me verão muito vil, muito sujo e muito desfigurado, porque meus pensamentos não estarão nem na beleza, nem na nobreza da Vossa gloriosa deidade. (LC, cap. CIV, 30)

É curioso observar que, na tradição ocidental, o olhar-se no espelho sempre representou metaforicamente o olhar para si, para dentro de si, para a verdade que se esconde por trás da máscara. Ademais, há outro ponto muito importante a ser destacado na pungente passagem acima: o tema das lágrimas. As lágrimas vertidas limpam a alma e lavam o sofrimento. Na filosofia luliana, as lágrimas têm um profundo valor.

A própria Idade Média teve uma propensão às lágrimas (LE GOFF & TRUONG, 2005: 50). Por exemplo, para a tradição monástica beneditina – que o pensamento de Llull, mesmo indiretamente, em muitos momentos pode ser associado – as lágrimas eram uma recompensa, um mérito, uma sanção da penitência (COSTA, 2005: 16). E para contemplar a maior beleza de todas, o Deus encarnado, a substância perfeita (para utilizar a terminologia platônica), nada melhor que a pureza da compunção das lágrimas.

IV. Conclusão

Ao iniciar essa breve investigação sobre o belo, fiz a seguinte pergunta a meu filho (então com nove anos): “Filho, o que combina mais com a beleza, o bem ou o mal?” Com sua maravilhosa pureza e objetividade nata típicas das crianças, ele me respondeu: “Papai, a beleza combina mais com o bem”. Eu retruquei: “E por quê?”. Ele concluiu: “Porque o bem é uma coisa boa, e uma coisa boa é bonita”. Simples, não?

Quando a Filosofia priorizava definir, tinha o frescor da juventude. Esse era o moto perpétuo das filosofias clássica e medieval. O próprio Llull é considerado o filósofo medieval das definições (BONNER & RIPOLL PERELLÓ, 2002: 10). No entanto, hoje, em seu decadente ocaso pós-moderno, a Filosofia não define nada, somente confunde. Está enrugada, senil. Urge retornar aos clássicos, textos escritos em um tempo em que o bem existia e era belo, e o mal, feio.

– Belo filho, disse o eremita, bela coisa é ver todas as coisas corporais que são belas. Mas melhor ainda é ver as coisas espirituais, como a justiça, a caridade, a sabedoria, a temperança e a força de coragem. Mas aqueles que estão em pecado têm maior prazer em ver as coisas corporais que as espirituais.

Logo, é uma maravilha que tais homens tenham maior prazer em ver as coisas belas que as feias, pois assim como estão desordenados em ver com a vista espiritual, deveriam estar desordenados com a vista corporal.
Ramon Llull, Félix ou o Livro das Maravilhas (1289), Livro VIII, cap. 56.

*

Fontes

ANDRÉ CAPELÃO. Tratado do amor cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BONNER, Antoni. Obres Selectes de Ramon Llull (1232-1316). Volum II. Mallorca: Editorial Moll, 1989.

DANTE. A Divina Comédia. Paraíso. São Paulo: Ed. 34, 1998.

PLOTINO. Tratados das Enéadas. São Paulo: Polar Editorial, 2000.

RAMON LLULL. Obres Essencials (OE). Barcelona: Editorial Selecta, 1960.

 

Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

BONNER, A., RIPOLL PERELLÓ, M. I. Diccionari de definicions lul.lianes. Col.lecció Blaquerna 2. Universitat de Barcelona / Universitat de les Illes Balears, 2002.

BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento – de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

COSTA, Ricardo da. “Cluny, Jerusalém celeste encarnada”. InMediaevalia. Textos e estudos 21 (2002). Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 115-137.

COSTA, Ricardo da. Las Definiciones de las Siete Artes Liberales y Mecánicas en la Obra de Ramón Llull. São Paulo / Porto: Editora Mandruvá / Universidade do Porto, 2005.

COSTA, Ricardo da. “A experiência religiosa e mística de Ramon Llull: a infinidade e a eternidade divinas no Livro da contemplação (c. 1274)”. InScintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval. Curitiba: Faculdade de Filosofia de São Boaventura (FFSB), vol. 3, n. 1, janeiro/junho 2006.

DALARUN, Jacques. “Olhares de clérigos”. In: DUBY, Georges, e PERROT, Michele (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2: A Idade Média. Lisboa: Edições Afrontamento, 1990, p. 29-63.

DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona, Lumen, 2004.

FEDELI, Orlando. “As três revoluções na Arte”. InMONTFORT Associação Cultural. Internet.

GADAMER, Hans-Georg (org. Pierre Fruchon). O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

GREGORY, Tullio. “Natureza”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, São Paulo: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 263-277.

LE GOFF, Jacques & TRUONG, N. Uma História do Corpo na Idade Média. Lisboa: Editorial Teorema, 2005.

MESQUI, Jean. “Palácios principescos, residências senhoriais”. In: DUBY, Georges, e LACLOTTE, Michel (coord.). História Artística da Europa. A Idade Média. Tomo II. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1998, p. 186-200.

TARTAKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la Estética. II. La estética medieval. Madrid: Akal, 2002.

VAZ, Henrique C. de Lima. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000.

Aprenda mais