A criação da Ciência Universal
Ramon Llull e as premissas de sua Arte
Ricardo da COSTA
In: SANTIAGO, Homero (coord.). Discutindo Filosofia 3.
São Paulo: Editora Escala, 2006.
Ricardo da COSTA
In: SANTIAGO, Homero (coord.). Discutindo Filosofia 3.
São Paulo: Editora Escala, 2006.
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Representação de Ramon Llull em um manuscrito da obra Árvore da Ciência (Munich, Bayerische
Staatstbibliothek, clm, codex latinus monacensis, século XV, 10498, fol. 44r).
I. A inédita tentativa medieval de criar um sistema científico explicativo e geral a todas as ciências
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A figura A da Arte breve (escrito de 1308), figura que contém os princípios, isto é, as nove dignidades divinas originárias de toda a realidade.
A História da Filosofia registra em seu percurso uma idéia, ou melhor, um projeto que motivou muitos filósofos: a criação de uma ciência universal. E o que seria isso? Uma ciência que criasse uma linguagem simbólica, que atribuísse a cada idéia um sinal e fizesse todas as combinações possíveis entre os sinais para assim obter todas as idéias possíveis. Esse ideal de criar uma ciência única, a ciência das ciências, seduziu muitos filósofos como, por exemplo, Nicolau de Cusa (1401-1464), Pico de la Mirandola (1463-94), Agrippa von Nettesheim (1486-1535), Giordano Bruno (1548-1600) e até o jovem Leibniz (1646-1716). Nesse intento, todos eles tiveram uma raiz comum: o maiorquino Ramon Llull (ou Raimundo Lúlio, 1232-1316) e sua Arte, a primeira tentativa filosófica dessa sistematização combinatória.
II. A originalidade filosófica da Arte luliana
A primeira sensação que o leitor moderno tem quando se interessa pela filosofia de Ramon Llull e ingressa em seu mundo de figuras, círculos giratórios, tabelas, cores e combinações é perplexidade. Por exemplo, ao lermos em uma das versões de sua Arte que “...ao investigar Y através do triângulo vermelho, convém que F discorra por todos os ângulos de T para que G entenda o triângulo vermelho de Y”, temos a impressão de que se trata de um tratado de álgebra, não de filosofia!
Assim, para apresentar ao leitor brasileiro o pensamento de Ramon nesse breve texto introdutório, decidi iniciar com suas premissas, as características mais genéricas utilizadas pelo filósofo, pois assim oferecerei uma contextualização de suas idéias. E sempre que citar sua Arte tomarei como base uma de suas versões mais conhecidas e simples, a Arte breve, de 1308.
III. O entender livre de preconceitos
Para Ramon Llull, o princípio da busca do conhecimento deve ser livre de julgamentos prévios. A verdade é encontrada somente quando se inicia a investigação com uma razão que admita que todas as possibilidades podem ser verdadeiras. Portanto, o entender é superior ao crer. Para se conseguir isso, há ferramentas filosóficas – Ramon afirma que há três espécies de “se”: a que duvida (que ele chama de “duvidativa”), a que afirma (“afirmativa”) e a que nega (“negativa”). O entendimento do investigador deve supor que ambas (afirmativa e negativa) são possíveis, “...e que não se ligue com o crer, que não é seu ato, mas com o entender”. Por esse motivo, os argumentos lógicos nunca podem ser baseados em citações de autoridades, mas somente na razão!
Essa importante premissa metodológica medieval que renegava o princípio da autoridade como fundamento em uma investigação já havia sido afirmada por Tomás de Aquino: “Não importa quem diz, mas a validade do que se diz”, sentenciou o dominicano. De qualquer modo, para um filósofo como Llull, interessado em provar as verdades do cristianismo e converter judeus e muçulmanos – objetivo maior de todos os seus escritos e de sua longa vida – essa premissa era realmente inovadora, pois ao buscar argumentos aceitáveis para os três credos, ele desejava romper a barreira entre a fé e a razão.
IV. A cosmovisão medieval, base de sua construção científica e combinatória
Além de defender a razão, Ramon pensava ser necessário que judeus, cristãos e muçulmanos compartilhassem uma série de outras premissas para que o diálogo fosse iniciado. Assim, ele tomou como base de sua Arte a cosmovisão medieval do universo criado. Pois na Idade Média, havia uma séria de premissas cientificamente aceitáveis a todos os credos, e naturalmente Llull compartilhava essa visão de mundo. Esse arcabouço conceitual dos séculos XII-XIV já foi chamado de substrato comum das três religiões.
As duas primeiras noções aceitas por todos era a idéia que os mundos (tanto o espiritual quanto o físico) eram ordenados e os seres existentes neles haviam sido hierarquizados (ordem e hierarquia). A seguir, se pensava que o universo era constituído por uma série de planos superpostos, todos reflexos imperfeitos de um original divino – e, por isso, conservavam uma relação analógica entre eles (analogia aqui entendida tanto no sentido de proporção e relação quanto no de extensão provável do conhecimento mediante uso de semelhanças genéricas).
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“Mas tudo dispuseste com medida, número e peso”, Sabedoria, 11, 21. Iluminura da Bible moralisée (c. 1250)
Essas idéias que incitavam à investigação da natureza provinham em primeiro lugar da Bíblia (“Mas tudo dispuseste com medida, número e peso”, Sabedoria, 11, 21) e, em segundo lugar, da tradição filosófica e médica grega (como, por exemplo, a idéia que os seres eram constituídos dos quatro elementos – fogo, ar, terra e água – e suas qualidades inerentes – calor, frio, umidade e secura).
Nesse universo entendido como um imenso entrelaçamento de planos superpostos, o homem ocupava uma posição fundamental, pois por ter alma, pertencia ao mundo espiritual (mundo dos anjos e das almas), e por ter corpo, ao mundo material (das plantas, dos animais, etc.). Daí o destaque dado à antropologia pelo humanismo cristão do século XII, corrente da qual Ramon pode ser incluído.
Os cientistas consideravam que o universo estava dividido em duas imensas esferas: a supralunar (ou celestial) e a sublunar. Na primeira havia o céu empíreo, o firmamento astral e o curso dos astros considerados planetas (Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno). A esfera celestial era povoada pelos astros, pelos santos na glória eterna, pelos anjos e por Deus (esfera que Llull chamou de céu imperial).
A esfera sublunar (da Lua até a Terra) continha as substâncias sujeitas à corrupção devido à contrariedade natural existente entre os quatro elementos. Ali os corpos se separavam e se decompunham devido à tendência de seus elementos compostos ocuparem seu lugar próprio. No lugar central e inferior, estava a Terra, elemento frio e seco. Entre a Terra e a Lua, estavam situadas a água, cujas qualidades eram o frio e a umidade; o ar (quente e úmido) e, por fim, na parte mais elevada, o fogo (quente e seco).
V. Princípios metafísicos
Além desse conjunto de teses científicas expostas acima, havia outra importante premissa que Ramon Llull se valia para explicar a realidade física a judeus e muçulmanos: Deus possuía atributos (ou dignidades) que, em sua ação contínua, criavam todo o universo. Em sua Arte Breve Llull afirmou que Deus possuía nove “dignidades”: Bondade, Grandeza, Eternidade, Poder, Sabedoria, Vontade, Virtude, Verdade e Glória, organizadas em letras – B, C, D, E, F, G, I, K (figura 1). Elas, segundo o filósofo, existiam em Deus em grau máximo de perfeição (“Deus é aquilo do qual nada maior pode ser pensado”); eram reais, concordantes entre si, sem qualquer contrariedade, e se convertiam na essência divina – a Bondade é grande, a grandeza é boa, a bondade é eterna, a eternidade é boa, e assim por diante.
Essa ação contínua das dignidades – daí a figura combinatória A – tinha dois movimentos: um interno em Deus (ad intra) e outro externo (ad extra). Quanto ao movimento contínuo interno, ele seria responsável pela existência da Santíssima Trindade: sem ação contínua, Deus seria ocioso, algo impensável e indesejado. Nesse ponto, Llull compartilhava a teoria neoplatônica vigente que defendia que a bondade possuía a ação intrínseca de se difundir (“bonum est diffusivum sui”).
Quanto ao movimento contínuo externo das dignidades (ad extra), ele era responsável tanto pela própria criação quanto pela relação entre o Criador e o que foi criado. Portanto, a natureza possuía uma qualidade ativa inerente – o que hoje denominamos de “ciclo”. Ramon defendia que todos os seres e coisas existentes possuíam em si as duas atividades (ad intra e ad extra). Por exemplo, o fogo queima e aquece: seu queimar é uma atividade ad intra, sua capacidade de aquecer uma atividade ad extra. Assim, ser e ação eram mutuamente convertíveis – aspecto de sua filosofia que posteriormente chamou a atenção de Nicolau de Cusa.
Assim, a base de toda a sua construção combinatória eram as dignidades divinas. A partir da Figura A, Llull criaria mais três figuras combinatórias. A Figura T, possuía três triângulos. O primeiro, com as categorias “diferença”, “concordância” e “contrariedade” (triângulo verde); o segundo, com o “princípio”, o “meio” e o “fim” (triângulo vermelho), e o terceiro, com a “maioridade”, a “igualdade” e a “menoridade” (triângulo amarelo).
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A figura T, com a sistematização dos princípios relacionais.
As Figuras A e T são retomadas em uma Terceira Figura, essa sim de caráter combinatório, e que possui 36 compartimentos, com todas as combinações das letras (BC, CD, DE, etc.), para unir sujeito e predicado.
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A Terceira Figura.
Por fim, a Quarta Figura integra todas as figuras anteriores. Possuindo três círculos giratórios, formava combinações trinas (BCD, CDE, etc.), ampliando assim o conhecimento e a investigação do filósofo. Rodando os três discos, se obtêm 252 combinações ternárias sem repetição. A letra no centro seria o termo médio do silogismo. Por exemplo, na combinação BCD, BC seria a proposição maior, CD a proposição menor, C o termo médio e BD a conclusão.
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A Quarta Figura da Arte luliana.
VI. Conclusão
Nesse breve texto introdutório, oferecemos uma síntese das bases filosóficas da Arte luliana. Para Ramon Llull, arte era o ordenamento e o estabelecimento de respostas para todas as questões possíveis. O objetivo primeiro? Fazer com que o homem pudesse conhecer a finalidade pela qual existe e descobrir porque tinha em si o inesgotável desejo de conhecer.
Como idéia apriorística, a existência da Santíssima Trindade em todas as coisas existentes; como objetivo final, provar que o catolicismo era a verdade e que os outros credos, se estivessem de fato dispostos a investigar a realidade de maneira racional – as famosas “razões necessárias” lulianas – deveriam, ao fim, aceitar Cristo.
Em meio a todos esses pressupostos religiosos, Llull criou o primeiro sistema combinatório através de uma linguagem simbólica. Sua importância para a História da Filosofia hoje está sendo revista: os grandes centros acadêmicos europeus (especialmente na Alemanha) voltam seus olhos para a imensa produção desse filósofo maiorquino. Suas inúmeras versões da Arte (filosóficas e literárias) hoje são estudadas em várias partes do mundo. Assim, através de Ramon percebemos que a Filosofia medieval tentou unir fé e razão, investigar a realidade visível (e invisível) e, principalmente, ofereceu aos pósteros as bases para o desenvolvimento do racionalismo moderno.