Codex Manesse

Três iluminuras do Grande Livro de Canções manuscritas de Heidelberg (séc.XIII). Análise iconográfica. Segunda parte

Imagem 1

conrad.jpg

Konrad (1252-1268).

Este não é o rei Conrado IV (1228-1254), como já se pensou, mas seu infeliz filho, Conradino (1252-1268), duque da Suábia e rei de Jerusalém e Sicília – autor de duas trovas convencionais. O jovem rei escreveu os versos antes de sua partida para a desastrosa campanha na Itália, em 1267. Conradino era um jovem de catorze anos (e último dos Hohenstaufen) quando se proclamou rei da Sicília, mas foi derrotado por Carlos de Anjou na Batalha de Tagliacozzo (1268) e por ordem sua, degolado na praça do mercado de Nápoles (RUNCIMAN, 1995: vol. III, 227).

A iluminura mostra o jovem rei sobre um cavalo, em companhia de um amigo, também cavaleiro, na caça com falcão. A caça com o falcão amansado era o tipo de caça mais praticada na Idade Média e era reservada somente à alta nobreza. Essa atividade exigia do falcoeiro inteligência e paciência na domesticação e no cuidado do animal, além de coragem e habilidade corporal. O sentido desse tipo de caça não estava na vitória, mas na arte da caça em si, como foi transmitido por Frederico II Hohenstaufen (1194-1250) em seu famoso livro Sobre a arte de caçar com pássaros.

A importância desse tipo de caça deixa claro, no contexto das canções manuscritas, o motivo pelo qual o iluminista escolheu para uma trova real uma cena de falcoaria. O rei monta um cavalo cinza muito bem cuidado em uma colina verde e ondulada. Dois cachorros saltitantes acompanham-no. Conradino traz sobre seus cabelos encaracolados uma coroa de folhagem de ouro. É o sinal de sua condição real. Seu traje verde, sua sela e arreios são ornados de ouro. A mão esquerda, com luva e esticada para o alto, bem como seu olhar na mesma direção, mostram que o rei acabara de lançar o falcão à caça de um pássaro marrom que voava acima deles.

Seu amigo de caça está trajado de maneira mais simples, ao estilo de um monge. Sentado num cavalo dourado, igualmente bem cuidado, sua sela e arreios também são dourados, o que denota sua alta condição nobiliárquica. Ele usa a luva apenas na mão esquerda, onde segura outro falcão. Sua postura e seus atributos, como o rei, deixam reconhecer seu nascimento. Viu-se nele com clareza o amigo de Conradino, Frederico de Baden, que compartilhou o trágico destino de seu amigo na Batalha de Tagliacozzo. O escudo mostra, num superfície dourada, uma cruz prateada com uma ponta, como uma lança afiada, suspensa. Ela está enegrecida com a oxidação ao longo do tempo, com folhas em forma de trevo em suas pontas. É também chamada Cruz de Maurício. Embora afaste-se da forma da Cruz de Jerusalém, parece remeter à soberania de Conradino sobre Jerusalém.

Imagem 2

otto.jpg

Marquês Otto von Brandenburg (1266-1309).

O enxadrista é o Marquês Otto IV, de Brandenburg (1266-1309). Como trovador, suas canções não são consideradas obras-primas, nem na linguagem, nem na construção das rimas. Provavelmente, a origem das trovas deve-se antes às convenções cavaleirescas de sua corte do que propriamente ao talento poético do marquês. Por esse motivo elas se parecem tanto com as canções de seus príncipes parentes.

Na época, as iluminuras dos príncipes germânicos, com os quais o antigo acervo de miniaturas foi expandindo-se e cuja origem deve-se às mãos do primeiro iluminista, normalmente mostram os trovadores em quatro cenas: 1) batalhas, 2) campanhas militares, 3) na arte da falcoaria e 4) em jogos de xadrez.

Uma das poucas exceções é a iluminura do rei Wenzell sentado em seu trono. Para cada uma daquelas quatro representações cavaleirescas, os medievos utilizavam a designação spil (Spiel, brincadeira), um conceito que abrangia todas as formas alegres e descontraídas com as quais os cavaleiros levavam a vida.

Nesta iluminura o marquês joga xadrez com sua dama. O xadrez (do sânscrito shaturanga, ou as quatro angas – as armas [infantes, cavaleiros, carros e elefantes]) é uma invenção indiana do século VII. Em sua forma original, o rei estava montado em um elefante e não existia a rainha – uma invenção da Europa medieval. Chegou à Sicília e Itália meridional por volta do século XI e difundiu-se pela Europa especialmente a partir da Península Ibérica, regiões limítrofes com o mundo muçulmano).

Na Idade Média, este jogo era reservado somente aos nobres de posição laica. Era expressamente proibido a todos os membros do clero. Num exempla da obra Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289) o filósofo Ramon Llull (1232-1316) faz com que o protagonista da história, Félix, ouça de Blaquerna que o jogo de xadrez é desaconselhável aos reis, pois no ócio os reis deixam de fazer o bem:

– Senhor peregrino, disse um dos capelães, uma vez ouvi contarem que um rei muito honrado e muito rico jogava xadrez. Um sábio homem perguntou àquele rei porque ele estava ocioso e não fazia todo o bem que podia fazer para honrar a Deus, porque Deus havia criado o mundo para que aqui fosse honrado. O rei disse que jogava para que não fizesse e nem cogitasse o mal, e para que passasse o tempo.

Aquele sábio disse ao rei que Deus não fizera os reis para fazer ou cogitar o mal, nem para que estivessem ociosos, antes havia criado os reis para fazer o bem por todo o tempo. Enquanto o sábio dizia essas palavras ao rei, um outro sábio considerava em seu coração como tanta bondade se perdia na ociosidade do rei, e tanta maldade acontecia...
(Ramon Llull, Félix ou o Livro das Maravilhas, Livro Primeiro, 12)

Às mulheres nobres o xadrez era igualmente desaconselhado, apesar de ser um “jogo sutil” – pelo menos esse foi o conselho do abade Adam de Perseigne a Blanche de Champagne (DUBY, 2001: 93). Por outro lado, Afonso X, o Sábio (1221-1284), rei de Leão e Castela considerava o xadrez “...uma atividade bastante apta para as mulheres” e, em sua obra Libro del Acedrex (1283), também afirma que certa modalidade de xadrez foi uma invenção feminina (LAUAND, 1988: 23):

Deus quis que os homens naturalmente tivessem todas as formas de alegria para que pudessem suportar os desgostos e tribulações da vida, quando lhes sobreviessem. Por isso os homens procuram muitos modos de realizar com plenitude tal alegria e criaram diversos jogos e jogos de tabuleiro que os divertissem (...) Alguns desses jogos se praticam a cavalo (...) Há outros que se praticam a pé (...) Há ainda outros jogos que se praticam sentados como o xadrez, tábulas, dados e muitos outros jogos de tabuleiro. E ainda que todos esses jogos sejam muito bons, cada um no seu lugar e tempo adequados, os que se jogam sentados são cotidianos e podem ser realizados tanto de noite como de dia, como podem também ser praticados pelas mulheres - que não cavalgam e ficam em casa (...)

Portanto, Nós, D. Alfonso, pela graça de Deus, Rei de Castela, de Toledo, de Leão, de Galícia, de Sevilha, de Córdoba, de Múrcia, de Jaen e do Algarve, mandamos fazer este livro em que tratamos dos jogos de maior compostura como o xadrez, dados e tábulas. E sendo estes jogos praticados de diversas maneiras, por ser o xadrez o mais nobre e o que requer maior maestria é dele que trataremos primeiramente...
(Libro del Acedrex de D. Alfonso o Sábio. Traduzido em LAUAND, 1988: 65-66)

O exercício do jogo criou uma tradição nobiliárquica, muitas vezes fantástica e lendária, e servia para os iluministas ilustrarem um dos possíveis modos nobres de instrução – sobre a sociedade, um drama moral humano, mas especialmente sobre a arte da guerra (LAUAND, 1988: 24).

Esse é um tema para iluminura muito comum, tanto nas ilustrações épicas quanto em trovas de amores impossíveis, e serviu também como metáfora para a literatura poética da maior parte do século XIV nos livros de xadrez. Através dos gestos das mãos pode-se perceber que o casal discute animadamente a respeito da jogada. No entanto, repare que o indicador da mão direita do marquês – e a posição mais elevada de seu braço – denota a primazia de sua palavra: cabe a ele iniciar o diálogo com a dama.

Em relação à dama, a iluminura pode ter um duplo sentido: o exercício do marquês na arte do amor através do xadrez e a própria imagem da enxadrista associada à peça da dama. Originalmente, a peça utilizada chamava-se firzfarz ou farzin, e designava o conselheiro, um ministro ou mesmo um general. A palavra foi latinizada para fercia, depois fierce, donde, segundo alguns, Virgem. Para alguns, isso constitui um sinal de uma revolução psíquica da Idade Média (ROUGEMONT, 1988: 232-233), pois o jogo de xadrez simboliza uma relação de força que termina com a tomada de controle por parte do vencedor, pois o prêmio estabelecido é sempre alto (CHEVALIER & GUEERBRANT, 1995: 966-967).

Nesta iluminura do Codex Manesse o marquês vence? Toma a dama para si? No tabuleiro percebem-se as peças do cavalo, torre e peões. O marquês tem um cavalo em suas mãos. A peça da dama é mais difícil de precisar. De qualquer modo, eles discutem a jogada, quem foi o vencedor, quem receberá o domínio como prêmio.

O banco em forma de 3 degraus sob o qual senta-se o casal, e o jogo, mostrado de pé para o observador, é revestido com estofamento e almofadas. Ele foi desenhado tão acima da armação inferior do quadro que 4 músicos – retratados em um padrão visivelmente menor – ainda encontram ali espaço. À esquerda de quem observa, dois trompetistas, que geralmente entravam no espaço reservado ao rei num cortejo cavaleiresco, de par em par, e costumavam carregar, além de seus instrumentos, a bandeira de seu soberano. No centro, um percussionista, vestido de verde, e, à direita, um tocador de gaita de fole, com um manto cobrindo seu rosto. Todos os músicos ao pé do quadro têm a função de servirem como representação do louvor ao Príncipe, exatamente como no quadro do rei Wenzell (n. 4).

Por fim, acima da cabeça do marquês encontra-se seu elmo, com um tecido vermelho (que deveria cobrir suas costas) e adornado com penas (um dado muito comum nos elmos dos cavaleiros germânicos). A águia no escudo acima do tabuleiro é o símbolo da região de Brandenburgo.

Imagem 3

meissen.jpg

Marquês Heinrich von Meißen (1218-1288).

O marquês Henrique III, de Meißen (1218-1288) teve contato com a literatura desde criança – o reino do Meißen ficava a leste da Turíngia, na fronteira com o reino da Boêmia. Cortado ao meio pelo rio Elba, suas duas principais cidades na Idade Média eram Meißen e Dresden.

Devido à sua dispendiosa corte, Henrique foi apelidade de illustris. Ele era famoso por patrocinar e organizar luxuosas campanhas militares, além de ter composto música sacra, que obteve inclusive os aplausos do papa Inocêncio IV (1243-1254). As canções de Henrique são geralmente trovas de lamentação ou então expressam a alegria pela graça e benevolência de uma dama, que manda-lhe um beijo ou um sorriso.

Essa iluminura mostra o conde com dois acompanhantes, numa caça à garça, que era uma perigosa variante da caça ao falcão, pois era preciso coragem e rapidez contra o afiado bico da garça. Trajando uma saia verde, um manto de pele vermelho e um chapéu com penas de pavão, o marquês caçador cavalga sobre um prado verde, seguido de perto por dois falcoeiros, vestidos de maneira mais simples e em padrões menores.

O marquês aponta para o céu com o indicador da mão esquerda e mostra os pássaros em luta. Seu olhar também volta-se para cima: vários pássaros marrons de caça perseguem garças azul-cinzentas. Uma garça está sendo atacada no ar. A um dos falcões o jogo parece tão fácil e tranqüilo que o falcoeiro agita um cordão de penas de pavão para que o animal volte à sua mão. À direita da cena, abaixo, está um ajudante de caça com cavalo, desmontado. Ele também tem no braço esquerdo um cordão de penas de pavão e mostra a seu senhor um falcão caído no chão que havia batido uma garça mas fora atingido no peito pelo longo bico desta.

O interesse do iluminista nesse quadro é mostrar detalhadamente todo o seu conhecimento sobre esse tipo de caça. São ao todo quatro falcões, três no ar e um ferido no chão. O escudo de armas do conde mostra um leão rompante negro de pé em superfície dourada. Seu elmo é adornado de penas de pavão.

*

Fonte

CODEX MANESSE. Die Miniaturen der Großen Heidelberger. Liederhandschrift Insel. Herausgegeben und erläutert von INGO F. WALTHER  unter Mitarbeit von GISELA SIEBERT. Frankfurt am Main, Insel Verlag, 1988.

Bibliografia citada

BANN, Stephen. As Invenções das História - Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora Unesp, 1994.

BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.

BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993.

CHEVALIER, Jean & GUEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1995.

CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: HUCITEC, 1996.

DUBY, Georges. A Idade Média na França. De Hugo Capeto a Joana D'Arc. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

DUBY, Georges. Eva e os Padres. Damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1989.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, 02 volumes.

GASKELL, Ivan. “História das imagens”. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. Novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992, p. 237-271.

GENICOT, Léopold. Europa en el siglo XIII. Barcelona: Editorial Labor S. A., 1970.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais - Morfologia e História. São Paulo: Companhia da Letras, 1989.

GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos séculos XIV e XV: os Estados. São Paulo: Edusp, 1981.

HEERS, Jacques. História Medieval. Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 1991.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Editorial Perspectiva, 1996.

LAUAND, Luiz Jean. O Xadrez na Idade Média. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983, vol. I.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1993.

LE GOFF, Jacques. “Realidades sociais e códigos ideológicos no início do século XIII: um exemplum de Jacques de Vitry sobre os torneios”. InO imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

MONNIER, Gérard. “História das Artes e Tipologia”. In: RIOUX, Jean-Pierre e SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 385-399.

NICHOLAS, David. A Evolução do Mundo Medieval. Sociedade, Governo e Pensamento na Europa: 312-1500. Lisboa: Publicações Europa-América, 1999.

OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do Pensamento Social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.

PREVITÉ-ORTON, C. W. Historia del Mundo en la Edad Media. Desde finales del siglo XIII hasta la transición a la Edad Moderna. Tomo III. Barcelona: Editorial Ramon Sopena, S. A., 1967.

RIEGL, Alois. Gesammelte Aufsätze. München, 1929.

ROUGEMONT, Denis de. O Amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas. Lisboa: Livros Horizonte, 1995, vol. III.

THEODOR, Erwin. “A Alemanha no mundo medieval”. In: MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). Mudanças e Rumos: o Ocidente Medieval (séculos XI-XIII). São Paulo: Íbis, 1997.

ZERNER, Henri. “A arte”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (dir.). História: Novas Abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1995, p. 144-159.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz - a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Aprenda mais

Palavras-chave: Codex Manesse., Arte, Iluminuras.