Uma jóia medieval no alvorecer do Humanismo

A novela de cavalaria Curial e Guelfa (século XV)

Ricardo da COSTA

Apresentado no Congresso Internacional sobre Matéria Cavaleiresca (USP)
no dia 09 de maio de 2011.

In: MONGELLI, Lênia Márcia (org.).
De cavaleiros e cavalarias. Por terras de Europa e Américas.
São Paulo: Humanitas, 2012, p. 539-549

(ISBN 978-85-7732-186-5).

 

Resumo: Apresentação à comunidade acadêmica brasileira da tradução da novela de cavalaria Curial e Guelfa, realizada sob a direção do Institut Virtual Internacional de Traducció (IVITRA), da Universitat d’Alacant (Espanha), seu conteúdo, estilo, além de nossa proposta de tradução.

Abstract: Presentation to the Brazilian academic community of the translation of the novel of chivalry Curial and Guelfa, held under the direction of Institut Virtual Internacional de Traducció (IVITRA) of the Universitat d'Alacant (Spain), its content, style, and our proposed of translation.

 

No século XV um ilustre desconhecido escreveu, em catalão, não se sabe onde, uma belíssima novela de cavalaria – sem título! O único manuscrito desse texto só foi descoberto no século XIX pelo filólogo Manuel Milà i Fontanals (1818-1884), e sua primeira edição (1901) ficou a cargo do historiador Antoni Rubió i Lluch (1856-1937), quem lhe conferiu o título de Curial e Guelfa.

Apesar de escrito no século XV, seu autor anônimo situou a narrativa de sua novela no XIII, durante o reinado de Pedro III, o Grande (rei de Aragão, Valência, Sicília, e conde de Barcelona, 1240-1285). A obra se divide em três livros.1O Livro I narra a infância de Curial, seu ingresso na casa do marquês de Montferrat e sua refinada educação (calcada no estudo do Trivium e da Filosofia).2A irmã do marquês, Guelfa, senhora de Milão e viúva, se apaixona por Curial e decide patrociná-lo financeiramente. Para isso, ordena que seu procurador, Melchior de Pandó (alter ego literário de nosso desconhecido autor), sem que Curial o saiba, coloque seu tesouro à disposição do jovem.

Contudo, dois cavaleiros invejosos fazem intrigas junto ao marquês, o que obriga Curial a se afastar de Montferrat. Seu primeiro feito cavaleiresco é defender em um duelo a duquesa da Áustria, acusada de adultério.3Curial vence o desafio e o duque da Baviera, agradecido, oferece a mão de uma filha sua, Láquesis, que logo se apaixona por Curial. Este sente remorso por causa de Guelfa e regressa a Montferrat, quando o marquês organiza um torneio em sua homenagem. Surge então a figura de Boca de Far, cavaleiro que se enamora por Guelfa. O marquês reconhece Boca de Far como o melhor cavaleiro do torneio, e Boca de Far desafia Curial e seu companheiro de armas para um duelo. Entrementes, Guelfa havia se internado em um mosteiro feminino, angustiada por não ter notícias de seu amado. Ali faz amizade com sua abadessa. Ao saber da proposta de casamento feita a Curial, Guelfa decide testá-lo, não sem sentir remorso. No duelo, Curial derrota Boca de Far, quem morre em decorrência da queda de seu cavalo. O Livro I termina com uma festa oferecida pelo rei Pedro III em seu palácio aos cavaleiros catalães que participaram do duelo ao lado de Curial.

O Livro II é dedicado ao deus Marte e à cavalaria. O autor da novela adverte o leitor que, devido aos efeitos de Marte, seu protagonista se comportará de modo soberbo. Assim, a narrativa flui através de feitos de cavalaria, já que Curial se torna um cavaleiro andante – expressão literária que designa tanto um personagem social real quanto fictício, por também ser um modelo ideal de comportamento. O historiador José Mattoso tratou dos cavaleiros errantes portugueses (como Gonçalo Rodrigues Ribeiro, aliás, citado em Os Lusíadas [VIII, 27]), e chegou a afirmar que, com “a ridicularização do cavaleiro andante”, o mundo ocidental perdeu um de seus mais belos ideais (MATTOSO, 1980: p. 370). Essa “ridicularização” levada a cabo por Cervantes, não obstante, proporcionou uma bela e famosíssima definição descrita em Dom Quixote: o cavaleiro andante é aquele que vai pelas “solidões e despovoados” em busca de aventuras, com ânimo deliberado de oferecer seu braço e sua pessoa aos perigos da sorte, sempre em socorro dos fracos e desvalidos (Volume I, Segunda Parte, XIII).

Após algumas façanhas cavaleirescas – entre elas um combate com o Javali de Vilahir, fortíssimo cavaleiro bretão – Curial participa do torneio de Melun, recriação literária do frustrado desafio de Bordéus, feito ocorrido em 1283 entre Pedro III e Carlos de Anjou (1226-1285). À medida que crescem as vitórias de Curial em campo de batalha, em contrapartida, os desafios a ele se multiplicam e a Inveja não pára de crescer. Essa deusa mitológica pede à Fortuna que submeta Curial a novos tormentos. Esta chama os Infortúnios que, por sua vez, invocam a Juno. Todos esses deuses decidem que nosso protagonista deve vagar pelo mundo até que a Fortuna fique satisfeita com sua vingança. Por isso, os cavaleiros invejosos do Livro I retornam à narrativa e, com suas intrigas, fazem com que Guelfa se indisponha e não favoreça mais a Curial. O cavaleiro, perdido, tenta conseguir o amor de Láquesis, mas é tarde, pois ela se casa com o duque de Orleães. Desesperado, Curial retorna a Montferrat para rogar por Guelfa, mas esta o afasta. Então ele roga às Parcas que cortem o fio de sua vida.

O Livro III principia com uma digressão sobre as Musas, e afirma que este livro, que tratará da queda de Curial, será mais intrincado que os anteriores, pois haverá transformações no enredo, além de poéticas ficções, escritas, “...não da maneira que diz respeito à matéria, mas rude e grosseiramente como tenho sabido fazer” (III.0). Como os antigos poetas começavam suas obras com uma invocação às Musas4, entende-se que o autor da novela se esmera ao máximo neste Livro, e provavelmente o considera o clímax literário de sua novela.

Assim, o protagonista embarca para o Oriente, vai à Messina e Nápoles, se encontra com o Javali, que se convertera e tomara o hábito de frade menor. É nesse momento que acontece o grande anticlímax medieval de nossa novela pré-Humanista: um sermão do Javali a Curial, sublime admoestação do agora freire contra a mundanidade do mundo. Enquanto isso, a Fortuna procura Netuno, Juno e Dione, em busca de mais sofrimento para Curial. Este visita Atenas, Tebas e o monte Parnaso, e ao visitar o templo de Apolo, adormece. Nesse momento, acontece um dos sonhos da novela, talvez o mais significativo: Curial é nomeado juiz de um litígio entre Dictes e Dares, de um lado, e Homero, de outro.5O juízo se fará a respeito da veracidade da Aquileida (obra que, na verdade, foi escrita por Estácio, não por Homero!).6Dictes e Dares acusam Homero de enaltecer Aquiles em detrimento de Heitor.

Assim, na presença de Apolo e das nove musas7, Curial emite seu juízo:

“– Yo trobe Hèctor ésser lo millor cavaller que fos entre los troyans, e Achil.les lo millor que fonch en los grechs; e que Hèctor féu més, pus solemnes e majors coses, hach més virtuts e fonch menys viciós; Achil.les ferí bé a Hèctor, car en batalla cascú deu cercar son avantage. Homero ha escrit libre que entre los hòmens de sciència man que sie tengut en gran estima; Dites e Dares scriviren la veritat, e axí ho pronuncie.

E baixants tots los caps, loants la sentència, d’aquell loch desparexerent se partiren.

“– Considero Heitor o melhor cavaleiro que houve entre os troianos, e Aquiles o melhor entre os gregos; que Heitor fez mais, mais solenes e maiores coisas, teve mais virtudes e foi menos viciado; Aquiles feriu bem a Heitor, pois em batalha cada um deve procurar a sua vantagem. Por sua vez, Homero escreveu um livro que, entre os homens de ciência, eu ordeno que seja tido em alta estima; Dictes e Dares escreveram a verdade, e assim o declaro”.

 Todos baixaram suas cabeças e louvaram a sentença, daquele lugar se distanciaram e partiram (III.34).

Após isso, Curial despertou de seu sonho. Seus companheiros perceberam que ele estava coroado de louros, e que tinha em sua fronte uma inscrição: “O melhor e mais valente dentre todos os cavaleiros, e o maior de todos os poetas e oradores que existem hoje” (III.35).

A narrativa prossegue. Netuno faz com que o navio que Curial conquistara do corsário Ambrosino soçobre às costas de Trípoli, na Berbéria. Ali eles são atacados por muçulmanos, que matam a todos, exceto Curial e Galceran de Madiona. Estes são vendidos como escravos a um mouro estrangeiro, quem, por sua vez, os revende a um jovem cavaleiro de Túnis chamado Faraig. Os dois são levados acorrentados e desnudos a Túnis. Nosso protagonista passa sete anos em cativeiro.

Guelfa, por sua vez, sofre com a ausência de notícias do paradeiro de Curial. Aos prantos, Melchior de Pandó lhe conta sobre o naufrágio da embarcação e recrimina sua senhora, acusando-a de vingativa e impiedosa. Inconsolável, mas exteriormente sem expressar qualquer sentimento, Guelfa procura sua confidente, a abadessa, e abre seu coração, quando exclama:

“– Curial meu! ¿On est? ¿On vas, Curial? Apareix-me. Vine a mi. Vege yo la tua cara. Spera’m, que yo .t seguiré. Tu est vengut a la mort per mi; yo he partida la companya de la ànima e del cors; yo he donades les tues carns a cans e a leons, e los teus ossos estan sens sepultura. O, honor de tots los cavallers del món! ¿On ne vas? Mostra1m lo camí. Digues-me: ¿per on te seguiré? ¿On est, ànima mia, vida mia? ¿En quals lochs habites e quals palaus són dignes a tu? O, Güelfa bròfega e cruel! ¿E com te tolguist la lum dels teus ulls? ¿E per què no.ls me arranque en manera que altre home no sie vist per mi? O, Edipo! Prech-te que .m prests los teus dits amaestrats e ardits! Ay de mi! ¿E com viuré sens Curial? O, falsa e cruel! Yo he mort aquell que los cavallers no podien matar; yo he vençut lo vencedor de tots, donant a exili lo pus virtuós e millor cavaller del món”.

“– Meu Curial! Onde estás? Aonde vais, Curial? Aparece-me. Vem a mim. Que eu veja novamente o teu rosto. Espera-me, que eu te seguirei. Tu foste para a morte por mim, eu separei a união de tua alma com teu corpo, dei tuas carnes aos cães e leões, e teus ossos estão sem sepultura. Ó honra dos cavaleiros do mundo! Aonde vais? Mostra-me o caminho. Diz-me: por onde te seguirei? Onde estás, alma minha, vida minha? Em quais lugares habitas e quais palácios são dignos de ti? Ó Guelfa, soberba e cruel! Como arrancaste a luz dos teus olhos? Por que não os extirpas de modo que nenhum outro homem seja visto por mim? Ó Édipo, rogo-te que me emprestes teus treinados e corajosos dedos!8Ai de mim! Como viverei sem Curial? Oh, falsa e cruel! Eu fulminei aquele a quem os cavaleiros não conseguiam matar; eu venci o vencedor de todos, dei exílio ao melhor e mais virtuoso cavaleiro do mundo” (III.40).

Enquanto Guelfa sofre por ter dado ouvidos aos intrigantes e pensa que seu amado encontrou a morte, em Túnis, a jovem filha de Faraig, Camar, se apaixona por Curial – e a esposa do mouro, Fátima, solitária com as frequentes ausências do marido (“homem luxuriosíssimo e viciado, enlameado e emporcalhado naquele pecado” [III.42]), se enamora por Galceran de Madiona – ambos os cativos, ao serem interrogados, afirmam que se chamam João e Berenguer, respectivamente. Por isso, mãe e filha tratam bem os escravos, apesar de estes trabalharem no horto de seu amo sempre acorrentados.

A narrativa da novela, a partir de então, centra-se no mundo islâmico, particularmente em sua principal diferença em relação ao mundo cristão: a sensualidade. Quando Faraig está presente, Fátima fala mal dos escravos, para que seu marido os trate bem. Contudo, o rei de Túnis, ao saber da beleza da jovem filha de Faraig, a pede em casamento. Para não ser mais desejada pelo rei, Camar crava uma adaga em seu peito. O rei, pensando que tal ato fora cometido por Faraig para não entregar sua filha, ordena que o decapitem.

No entanto, o rei não desiste de seu intento e visita Camar durante seu restabelecimento. Isso obriga Camar a abrir seu coração para João (Curial), e confessar-lhe o seu amor. Como João delicadamente a afasta, a menina decide se suicidar, não sem antes indicar a João o esconderijo do tesouro de seu pai. Faz então uma defesa do suicídio à mãe, confessa que se converteu ao cristianismo e se joga da janela de seu quarto. O rei é inteirado do ocorrido, e ordena que joguem Curial aos leões, juntamente com o cadáver de Camar. Um embaixador do rei de Aragão, Ramon Folch de Cardona, presente, pede para dialogar com Curial, que revela seu nome. Ramon roga ao rei que permita que Curial porte alguma arma para se defender contra os leões. Assim, Curial mata um leão após o outro, protege o cadáver de Camar da profanação e consegue a libertação do rei.

Livre e com o tesouro de Faraig, Curial retorna a Montferrat, após sete anos, mas disfarçado. Depois de confirmar o amor de Guelfa e cantar a Canção do Elefante9, Curial se revela a ela, quem, no entanto, o rechaça novamente. Apesar dos rogos da abadessa, Guelfa está determinada: só perdoará Curial caso a corte do Monte de Nossa Senhora e seus leais amantes, além do rei e da rainha da França, o perdoem.10Curial entrega seu tesouro aos cuidados de Melchior de Pandó e parte para a França, quando se entrega a uma dissoluta vida de prazeres e deixa de lado a ordem da cavalaria e os estudos. Nesse momento, há uma das cenas mais inusitadas da novela: em sonho, surge o deus Baco – chamado de “deus da ciência” (!) – a Curial, juntamente com as sete Artes Liberais (Gramática, Dialética, Retórica, Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), além de Prisciano de Cesaréia11, os bispos Papias de Hierápolis12e Isidoro de Sevilha13, e Hércules. Baco admoesta Curial a abandonar o vício e a corrupção e a não trocar o dom divino da ciência pelo que é material e terrenal:

“– Curial, tu has reebudes per mi honors e molts avançaments en lo món, e per mi has sentit què és rahó e juyhí, e yo en lo teu studi fuy a tu molt favorable, e, veent la tua disposició, volguí habitar en tu e fiu que aquestes set deesses que ací veus t’acompanyassen e .t graduassen cascuna en la sua dignitat; e, mentre tu les amist, no lexaren la tua companya. És ver que ara, ab vituperi, les has foragitades de ta casa e, metent-les en oblit, los has mostrades les feres e ingrates espatles, donant la tua vida a coses lascives e no pertinents a tu, e, vivint viciosament, te est fet sepulcre podrit e plen de corrupció. E tu, qui en lo món, axí per cavalleria com per sciència, resplandies, ara est difamat ací on novament te conexen, e ho series molt més si a la primera vida no tornaves. Yo .t prech requir e amonest que torns al studi e vulles honrar aquestes dees que t’an honrat e favorit, e lexa aquexa vida, qui porta l’ome a fretura, vituperi e desonor; e la sciència, que és don divinal e eternal, no la vulles cambiar per la brutura e sutzura, terrenal e temporal. Car, si ho has legit, sant Gregori t’à dit: ‘Vilescunt temporalia cum considerantur eterna’. E d’ací avant aquestes dees, que .s clamen rahonablement de tu, no tornen per aquesta causa davant mi, sinó sies cert que no t’aprofitarà tant lo thesor de Càmar com te nourà la tua desconexença e ingratitut”.

“– Curial, graças a mim tu recebeste muitas honras e muitos progressos no mundo, e por mim soubeste o que é a razão e o juízo; eu te fui muito favorável em teu estudo e, ao perceber a tua disposição, quis habitar em ti e fiz com que estas sete deusas que aqui vês te acompanhassem e te graduassem cada uma em sua dignidade; enquanto tu as amaste, elas não abandonaram a tua companhia. É verdade que agora, com vitupérios, tu as expulsaste de tua casa e, colocando-as no esquecimento, mostraste-lhes tuas duras e ingratas costas, dando a tua vida a coisas lascivas e impertinentes a ti, e, vivendo viciosamente, te transformaste em um sepulcro fétido e cheio de corrupção. Tu, que no mundo, tanto pela cavalaria quanto pela ciência, resplandecias, agora és difamado justamente aqui, onde te conheceram pela primeira vez, e o serás ainda mais caso à tua primeira vida não retornes. Rogo-te, requeiro-te e admoesto-te a que retornes ao estudo e desejes honrar estas deusas que tanto te honraram e favoreceram, e abandones essa vida que conduz o homem à necessidade, ao vitupério e à desonra, enquanto a ciência; não queiras mudar a ciência, que é dom divino e eterno, pela imundície e excremento. Pois, se tu leste, Gregório te disse: ‘As coisas temporais se envilecem quando se consideram as eternas’.14 Que agora, diante dessas deusas que razoavelmente reclamam de ti, elas não voltem a mim por essa causa, caso contrário, estejas certo que tu não aproveitarás tanto o tesouro de Camar, e teu desconhecimento e ingratidão te prejudicarão” (III.79).

Curial decide retornar à sua vida de cavaleiro: as armas e o estudo (o ideal cavaleiresco do século XV já não admitia apenas o exercício das armas, mas a busca do conhecimento e a polidez do bom trato). Por sua vez, a Fortuna se cansa de perseguir Curial: vai até Vênus, pede perdão e afirma que decidiu girar sua roda e novamente elevá-lo até seu ponto mais alto. Mais: roga ao filho de Vênus que fira Guelfa com sua flecha de ouro para que nela novamente renasça o fogo do amor.

Curial é desafiado a duelar em Londres. Após vencer seu oponente, vem a notícia: os turcos invadem o Império. Curial se apresenta e é nomeado grande condestável e capitão do exército cristão.15Curial derrota o capitão dos turcos, Critxi, e suas forças vencem o combate contra o Islã. Guelfa, em sonho, é avisada pela Fortuna e pela Inveja de que tudo o que os dois anciãos falaram sobre Curial é mentira, e que elas são as responsáveis por toda a cizânia contra seu amado. A seguir, surge Vênus, quem critica Guelfa por ter dado ouvidos àqueles rumores, e então Cupido a fere com uma flecha de ouro. A novela termina com o perdão da corte de corte do Monte de Nossa Senhora a Curial e o casamento de Curial, agora príncipe de Orange, e Guelfa, com a aprovação do imperador.

*

Em termos gerais, traduzir significa transpor determinado conteúdo de uma língua para outra, isto é, dizer a mesma coisa em outra cultura. O problema é que, muitas vezes, surgem inúmeros contratempos nessa operação mental-linguística, especialmente quando se traduz um texto longínquo no tempo. O medievalista Umberto Eco (1932- ) definiu muito bem esse problema: em uma tradução, dizer a mesma coisa, na verdade, é dizer quase a mesma coisa.16

Por sua vez, o teólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) parece ter proporcionado a linha divisória teórico-metodológica padrão a ser escolhida pelo tradutor: ou nós 1) deixamos o escritor em paz e levamos o leitor ao seu encontro, ou, pelo contrário, 2) deixamos o leitor em paz e levamos ao seu encontro o escritor.17Essa parece ser a mesma decisão que o historiador tem de tomar quando se defronta com os documentos de uma época para construir sua interpretação: ou “sai de si” e se transporta àquele tempo escolhido, diminuindo sua perspectiva e aumentando sua compreensão, ou “traz o tempo para si”, aumentando a perspectiva, porém diminuindo sua capacidade compreensiva.

Como em minhas opções historiográficas – e agora filosóficas – sempre considerei o aprofundamento da capacidade compreensiva o verdadeiro exercício do historiador, nas traduções de textos medievais que realizei eu preferi a primeira opção de Schleiermacher: deixar o escritor em paz e levar o leitor ao seu encontro, ou, para me expressar em termos historiográficos (e um tanto melancolicamente), deixar os mortos em paz e ir pessoalmente ao cemitério. Isso porque, no fundo, considero que todo historiador é um necrófilo par excellence, como já afirmei em outra oportunidade18, e reitero agora.

Essa foi a mesma opção metodológica que escolhi para traduzir a novela de cavalaria quatrocentista Curial e Guelfa, a convite da Universitat d’Alacant (dentro do projeto internacional de tradução IVITRA19): levar o leitor ao encontro do escritor (anônimo) da novela e, hermeneuticamente, compreender a palavra alheia, por mais estranha que ela seja ao leitor, já que este vive no século XXI e está imerso na cultura do âmbito lusófono contemporâneo, enquanto seu autor viveu no século XV e estava inserido no mundo cavaleiresco ibérico-catalão, banhado pelo Humanismo proveniente das terras italianas, aspecto da novela muito bem estudado por Julia Butiñá Jiménez.20Ademais, não é precisamente essa incômoda estranheza o sentimento costumeiro do verdadeiro historiador?

Em comum, ambas as culturas têm suas raízes na tradição românica, pois são filhas do latim. Além disso, por sorte, a língua portuguesa tem muitas afinidades expressivas com o catalão, particularmente o português do mesmo período, o que, sem dúvida, permitiu manter na tradução uma linguagem muito próxima do original. Por esse motivo, e pelas mesmas alusões à mitologia grega, sempre que possível eu relacionei nas notas explicativas ao fim da novela as partes de Os Lusíadas (1556)21de Camões (c. 1524-1580) que tinham pontos em comum com a novela.

Curial e Guelfa é o que hoje chamaríamos de “novela histórica”.22Mas antes de tudo, é uma novela cavaleiresca, gênero literário distinto dos livros de cavalaria por seu realismo e sua vinculação a fatos reais da época de seu autor (os livros de cavalaria, pelo contrário, situam suas narrativas em tempos fantásticos e terras maravilhosas, com dragões, magos etc.). Essa notável distinção foi estabelecida por Martí de Riquer (1914- ), quem classificou Curial e Guelfa e o Tirant lo Blanc como as duas únicas novelas de cavalaria!

Novela histórica, nela, em primeiríssimo lugar, os ricos eram muito mais ricos – ou nunca foram tão ricos até aquele momento. Um luxo – e um ponto que diferencia bastante o contexto histórico quatrocentista retratado na novela em relação à Idade Média, quando a distância material entre senhores e camponeses era muito menor. No mundo medieval, a nobreza era muito mais rude e bem menos opulenta. Pois não há pobres em nossa novela. O mundo cortesão não olhava para baixo. Os homens disputavam um lugar ao Sol ao redor das casas nobiliárquicas, como a do marquesado de Montferrat. Nesse luxo só, todos estavam deslumbrados. Exibicionistas, pavoneavam-se com suas pérolas e pedras preciosas, diamantes e safiras, broches, correntes de ouro e cintos ornamentados. Pois sua honra se traduzia também no brilho de seus ornamentos. Nas tendas. Nos cavalos. Deveria reluzir.

Esse é um traço marcante na novela e, segundo Antoni Ferrando, completamente ausente tanto da literatura castelhana quanto da catalã do século XV. Por esse motivo, Ferrando considera que esse refinamento de Curial é tipicamente italiano – o mesmo da novela Le Petit Jehan de Saintré (1448), de Antoine de la Sale (c. 1385-1461).

Ele é tão marcante que, para imaginá-lo de um modo mais ideal, regularmente eu recorria às imagens da época registradas na Arte – vali-me então das propostas metodológicas de John Lewis Gaddis (1941- )23e de Peter Burke (1937- )24(o passado como uma paisagem a ser descortinada e o uso das imagens como fontes históricas complementares aos textos) – para assim melhor representar mentalmente as cenas, os personagens e suas vestimentas descritos em Curial, em que pese o notável caráter imaginativo da novela, isto é, sua enorme capacidade de criar imagens em seus leitores, decorrente da fluente prosa de seu autor.

Por isso, Curial tem um brilho tão intenso em sua prosa que quase ofusca seu leitor, embora seja uma beleza vã, estética efêmera, fugaz como o falatório que envolve o protagonista no dia seguinte às suas vitórias cavaleirescas. Beleza transitória como a vida, ela transparece em Curial no tom quase poético com que o autor descreve as luxuosas vestes dos personagens, além de toda a simbologia relacionada à cavalaria.

A estética inconsequente de Curial ressalta aos olhos do leitor quando surge o único momento verdadeiramente transcendente de toda a novela, anticlímax de sua narrativa: a exortação do Javali, belíssimo discurso-puro medieval inserido na mundanidade humanista cortesã. Paródia, como pensa Julia Butiñá – ou apenas um contraste à mentalidade moderna que preside a muitas ações dos protagonistas, como afirma Antoni Ferrando – o efeito foi, creio eu, o inverso do pretendido pelo autor da novela. Em Curial, elas foram o canto de cisne literário da filosofia medieval, transcendência per se, que deu lugar à transitoriedade da vida, à beleza pela beleza, à alegria vã e inconsequente de viver.

Nesse fútil burburinho das cortes quatrocentistas em Curial a natureza feminina é elevada à condição suprema de fio condutor das ações masculinas. Na vida, tudo gira ao redor delas. Os homens são joguete em suas mãos. Desde Melchior de Pandó até Curial, do imperador teutônico ao Javali, todos são marionetes – exceto quando estão no testosterônico mundo da guerra. O consolo é perceber que “eles” já não têm medo “delas”, como certa vez afirmou Georges Duby (1919-1996) em relação aos feudais (embora eu não tenha tanta certeza disso).25

Nesse sentido, trata-se de uma novela sentimental, tão sentimental quanto cavaleiresca (influência de Boccacio). Seu título deveria ser Guelfa e Curial, ou Guelfa, Camar e Curial, ou simplesmente Guelfa, pois, de fato, além de as mulheres serem o pano de fundo do palco da vida em que o protagonismo é a inconstância da existência masculina, os homens passam maus bocados por sua causa – Curial que o diga. Mas por que não Guelfa e Curial? De minha parte, sempre desconfiei dessa história do gênero atualmente em voga que vitimiza as mulheres do passado. Mesmo a historiografia mais recente, como um texto de Claudia Opitz (1955- ), apresenta sempre o mesmo quadro: os homens desprezavam as mulheres, que, por sua vez, eram “dominadas” e “submetidas” contra a sua vontade.26Na contramão dessa corrente, certa vez, a grande historiadora Barbara Tuchman (1912-1989) escreveu: “A tirania dos homens não era tão total quanto as feministas de hoje nos querem fazer crer” (e isso em 1989!).27Nada mais verdadeiro em relação a Curial.

A historiografia – ou uma parte dela – já percebeu que o amor cortês medieval operou uma verdadeira revolução nos hábitos masculinos nobiliárquicos. Eles (lentamente, é verdade) aprenderam a aceitar a vontade feminina. Nesse aspecto, a posição jurídica feminina diante da Igreja foi fundamental: ela podia dizer não, e um padre não poderia obrigá-la a se casar! Ademais, como eu mesmo afirmei certa vez, a elevação da condição feminina nos círculos aristocráticos fez com que elas protagonizassem o processo de domesticação dos impulsos e a gradativa transformação do cavaleiro em cavalheiro. E Curial não é exatamente isso? Cavaleiro e cavalheiro. Mais: cavaleiro-perfeito, rude e gentil, agressivo e doce, ele reúne todas as qualidades necessárias (e exigidas) para ingressar no mundo nobiliárquico moderno. Homem da guerra, Curial sabe ser duro quando necessário, mas também preenche perfeitamente os requisitos exigidos em qualquer corte europeia: não só dança graciosamente, mas também canta, além, é claro, de ser um homem de letras (característica do nascente Humanismo).

Outro notável traço da novela é a forma com que seus atores sociais manifestam seus sentimentos, de modo intenso e profundo. Tem-se a nítida impressão de que nós, no alvorecer do século XXI, ficamos mais insensíveis, embrutecidos tanto pela sociedade de massa surgida no século passado quanto pelas tradições interpretativas histórico-materialistas que atualmente ainda dominam em muitos círculos a compreensão do passado. Seja como for, ao ler Curial é impossível não se lembrar do primeiro capítulo do clássico O Outono da Idade Média, de Johan Huizinga (1872-1945) (“A veemência da vida”): tudo que o homem vivia ainda era revestido de um teor imediato e absoluto que, no mundo atual, só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor.28

Em contrapartida, em Curial as pessoas sentem verdadeiramente as coisas: choram e se alegram intensamente – Curial chega a ser advertido por Melchior de Pandó por chorar como uma mulher! O historiador holandês já o sabia: é enorme o contraste entre a sensibilidade do século XV e a de nosso tempo, algo normalmente olvidado por boa parte dos historiadores profissionais, afeitos que estão à análise de fontes “oficiais”, quando já não estão com suas percepções amortecidas a respeito de quão maravilhoso é o debruçar-se sobre a “carne” humana − característica do historiador par excellence, já destacada por Marc Bloch (1886-1944). Mas, para esses espíritos menos sutis, só há um remédio: debruçarem-se sobre as Crônicas. Em nosso caso, sobre as novelas cavaleirescas. Sobre Curial e Guelfa. Pois são novelas como essa que resgatam em nosso espírito o vigoroso pathos das sociedades pré-industriais como a medieval (e a moderna): as paixões. Foram elas que impulsionaram as pessoas; elas são o traço mais marcante de seus comportamentos. Como tudo na vida era feito com o suor das mãos (e do coração), tudo também era mais valorizado, apreciado, sentido.

São novelas como essa que expressam as paixões e, assim, atenuam a terrível sombra que a historiografia projetou sobre esse período: desde a notável Barbara Tuchman29até Henri Pirenne (1862-1935)30e Luis Suárez Fernández (1924-)31, mas principalmente pela opressiva tradição marxista, que só viu crise após crise (como, por exemplo, nas obras de A. H. de Oliveira Marques [1933-2007]32e Guy Bois33). A imagem tenebrosa da vida dos séculos XIV-XV exposta por essa tradição historiográfica não poderia ser mais contrastante com a leveza e a delicadeza de Curial. Aqui não há crise, só fartura, opulência, esbanjamento. Seria isso uma fuga literária do mundo? Ou será que os homens de então não perceberam que viviam em uma depressão? Ou ainda: será que existia realmente uma depressão?

Atualmente os historiadores econômicos, como Philippe Contamine (1932- ), consideram o período de 1460 a 1492 como o de uma fase de reconstrução, uma pós-crise, mas isso ainda é muito pouco para explicar a fulgurante vida social que brota das páginas de Curial, mesmo que seja apenas na (pequena) camada superior daquela sociedade.34Ao ler Curial, percebe-se que era a vida uma obra de arte, e não o Estado, como pensava Jacob Burckhardt (1818-1897).35E embora a novela seja muito mais fruto de suas influências de além-Pireneus (francesa, italiana e occitana) do que propriamente castelhana – não nos esqueçamos que a construção da Espanha foi um processo pluralíssimo! – ela é hispânica, uma de suas mais originais e diversificadas vertentes, mas hispânica. Não é à toa que esse período é considerado o Grande Século da História da Espanha, o centro do tempo histórico de sua cultura, a essência do resplendor de sua amplitude cósmica, como frisou o grande historiador José Enrique Ruiz-Domènec (1948- ).36Curial e Guelfa expressa muito bem esse extraordinário sentido poético da vida percebido pelos homens (e mulheres) de então, naquele cadinho tão cosmopolita e europeu no sentido mais generoso da palavra como o é a Catalunha.

Notas

  • 1. Farei aqui um breve resumo do conteúdo da obra, baseado no excelente “Guía de Lectura” de Julia Butiñá Jiménez, em Tras los orígenes del Humanismo: El Curial e Güelfa. Madrid: UNED, 2000, p. 359-420. 
  • 2. Para a importância das Artes Liberais na Educação Medieval, ver COSTA, Ricardo da. “Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramon Llull”. In: Revista Anales del Seminario de Historia de la Filosofía. Madrid: Publicaciones Universidad Complutense de Madrid (UCM), vol. 23 (2006), p. 131-164. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/ASHF0606110131A.pdf 
  • 3. duelo judicial era também chamado de direito de desafio ou julgamento por combate. Era um tipo de ordálio bilateral, onde as duas partes em litígio desempenhavam uma determinada função. Este tipo de julgamento teve origem na tradição germânica. Com o passar do tempo, gradativamente o costume medieval colocou restrições ao desafio: várias comunidades concediam à corte o direito de proibir um duelo. A partir do século X, campeões pagos eram utilizados substituindo uma das partes do litígio – decorrência natural da idéia que Deus decidia com Sua justiça o caso. Por exemplo, o imperador Oto I (912-973) decidiu a questão da castidade de sua filha num duelo de campeões. Para o tema, ver GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste, Gulbenkian, 2001. 
  • 4. “Isso porque tudo o que se nos dá sem explicação nem justificação razoável parece-nos depender da graça. Porque o entendimento não consegue explicar a arte completamente, procura a sua fonte numa divindade qualquer.” – GILSON, Étienne. Introdução às Artes de Belo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 64.
  • 5. No século IV, um certo P. Sétimo compôs uma obra em prosa intitulada Ephemeris belli Troiani (Efemérides da Guerra de Troia) em seis livros, afirmando (falsamente, hoje se sabe) que se tratava de uma tradução de outra obra escrita em grego por um cretense chamado Dictes, que teria participado da própria guerra, do lado grego, e feito uma espécie de diário dos principais acontecimentos. Dois séculos depois, surgiu outro livro, também em prosa, De excidio Troiae historia (História da destruição de Troia), que também seria a tradução de uma narrativa composta por Dareso Frígio, sacerdote de Hefesto em Troia, personagem que estaria presente no cerco da cidade e narrado os acontecimentos, mas a partir do lado troiano. Ambas as obras reclamaram para si a verdade históricaDares do lado troiano, Dictes do lado grego; ambos os autores introduziram uma inovação: a epopeia transformou-se em romance em prosa. E uma das características mais importantes de ambas as obras: a afirmação de que tudo que ali se encontrava era literalmente verdadeiro por se basear em escritos de testemunhas oculares (CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: HUCITEC, 1996, p. 232). Martí de Riquer (1914- ) já destacou que se desenvolveu na Idade Média uma “significativa atitude historicista” (DE RIQUER, Martí. Historia de la literatura universal. Barcelona: Planeta, 1985, vol. III, p. 111). Somado a isso, o fato de existir um respeito pelos auctores que qualquer fonte era considerada boa (CURTIUS, Ernst Robert, op. cit., p. 89), além da ampla difusão das obras de Dictes e Dares, todos esses fatores fizeram com que se desenvolvesse nas elites cultas medievais uma decepção com a Ilíada, até então considerada uma obra-prima, e certo desprezo por Homero, porque, como poeta, ele teria desfigurado o que realmente acontecera na guerra de Troia, favorecendo os gregos, e a leitura daquelas duas obras mostrara a verdade dos fatos. Seja como for, como o conhecimento do grego pouco a pouco diminuiu até quase desaparecer na Europa Ocidental, as Efemérides da Guerra de Troia História da destruição de Troia, de Dictes e Dares, respectivamente, foram praticamente as únicas fontes que transmitiram as lendas homéricas para a literatura românica da Idade Média. 
  • 6. Estácio (Públio Papínio Estácio, c. 45-96) foi um poeta romano, autor da Tebaida (coletânea de poemas), Silvae, e um épico inacabado, Aquileida. Sua obra foi lida na Idade Média e inspirou Boccaccio (1313-1375) e Chaucer (1343-1400). Estácio ainda foi elogiado por Dante (1265-1321). Na Idade Média, acreditava-se que Estácio havia se convertido ao Cristianismo. Dante, por isso, encontra Estácio no Purgatório (Canto XXI) e o poeta lhe diz que se converteu secretamente ao Cristianismo (Canto XXII). Ver DANTE. A Divina Comédia. Purgatório (trad. e notas de Italo Eugenio Mauro). São Paulo: Editora 34, 1998, Cantos XXI e XXII, p. 137-148. 
  • 7. As Musas eram filhas de Júpiter e Mnemósine (filha do Céu e da Terra, Mnemósine era a personificação da Memória), ninfas que habitavam as montanhas, as margens dos rios e das fontes. Elevadas a divindades inspiradoras da Poesia e do Canto, as Musas entretinham os deuses no Olimpo com seus coros e danças; presidiam a todas as formas de pensamento (eloquência, persuasão, sabedoria, história, matemática e astronomia). Habitavam o monte Helicão, e ali estavam sob a dependência de Apolo, que dirigia seus cantos junto à fonte de Hipocrene. Eram representadas como virgens de comprovada castidade. As Musas foram objeto de muitas representações artísticas. Rafael (1483-1520) representou-as com Apolo em seu afresco “O Parnaso” (Stanza della Segnatura do papa Júlio II, 1511, Vaticano, c. 670 cm). Junto a elas, devido ao seu talento poético, Homero, Virgílio e Dante. Eram essas: 1) Calíope – Musa da eloquência e da poesia épica. A ela os poetas se dirigem buscando inspiração; 2) Clio – A que celebra. Canta a glória dos guerreiros e as conquistas de um povo. Patrona da História; 3) Euterpe – A doadora de prazeres. Musa que preside à Música. Inventora da flauta e de outros instrumentos de sopro; 4) Tália – Musa que preside à Comédia e à Poesia; 5) Melpômene – Musa da Tragédia, mas também do canto e da harmonia musical; 6) Polímnia – “A de muitos hinos”. Musa da Oratória e do Ditirambo (canto coral ao deus Dionísio); 7) Erato – “A amável”. Musa da poesia lírica; 8) Terpsícore – Musa da dança e dos coros dramáticos, e 9) Urânia – Musa que presidia à Astronomia e às Ciências Exatas.
  • 8. Guelfa cita Édipo porque, no mito, ele vaza os próprios olhos após ver Jocasta, sua mãe e esposa, enforcada. 
  • 9. O autor anônimo de Curial e Guelfa se apropria do primeiro verso da canção Atressí com l’aurifany, de autoria de Rigaut de Berbezilh (c. 1140-1163), trovador da pequena nobreza de Saintonge, região da costa atlântica da França (sudoeste, região administrativa de Poitou-Charentes, atual Departamento de Charente-Maritime).
  • 10. Monte de Nossa Senhora está localizado em Puy-en-Velay, atualmente uma comuna francesa na região administrativa de Auvergne, departamento do Haute-Loire, lugar tradicionalmente católico e de forte culto mariano. No monte foi erguida no século XIX uma imponente estátua da Virgem, construída entre 1856 e 1860 com o metal de canhões russos capturados na Guerra da Crimeia (1853-1856).
  • 11. Prisciano de Cesareia (séc. IV) foi um importante gramático devido à grande repercussão de sua Institutiones Grammaticae, obra em dezoito volumes que era a base do ensino do latim nas escolas medievais.
  • 12. São Papias de Hierápolis (c. 69-155) foi bispo de Hierápolis (Frígia Pacatiana) e um dos padres apostólicos da Igreja Católica. Sua principal obra é a Interpretação das Palavras do Senhor (ou Exposição dos Oráculos do Senhor). Santo Ireneu de Lião (c. 130-202) afirma que ele foi companheiro do bispo Policarpo de Esmirna (c. 70-155), consequentemente discípulo do apóstolo João. Conforme a tradição, Papias foi martirizado com Policarpo.
  • 13. Isidoro de Sevilha (560-636) está na cena com a rainha Gramática certamente por suas Etimologias (627-630): seus três primeiros livros apresentam o Trivium e o Quadrivium. Ver SAN ISIDORO DE SEVILLA, EtimologíasBiblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2004.
  • 14. A frase é de São Gregório Magno (540-604), “Index sententiarum memorabilium III”. Patrologia latina 220, col. 745. Trata-se da segunda citação, em Curial e Guelfa, de São Gregório, “...justamente uma das bestas negras do medievalismo combatido pela nova corrente, como bem mostram as mordazes chacotas de Bernat Metge (c. 1340/46-1413). Que sua citação marque o cume na resolução da novela – já que são as palavras que determinam a conversão moral do protagonista – apesar do respeito que demonstra o autor catalão, é, no mínimo, chocante. Mais ainda quando a citação de São Gregório Magno é formulada na boca do deus pagão Baco, algo insólito na Literatura, embora um pouco antes Apolo citara São Jerônimo. Deve-se observar também que é a única referência religiosa do sermão de Baco, que convence o cavaleiro com argumentos preferencialmente do âmbito do novo cariz humanista, como os studia humanitatis, assim como da mescla da vida digna com o domínio das paixões. Tudo isso exige que se analisem as possíveis razões de sua desfigurada presença. É sabido que o santo defendeu o estudo das Artes Liberais – o que estaria de acordo com a cenografia do sonho – e que foi peça-chave na confecção da ideia de Purgatório – aspecto que não contraria a dinâmica deste Livro III – e estendeu o valor sagrado dos textos em função de sua utilidade moral – como recordava o Trattatello de Boccacio – dados que o novelista deve ter levado em conta. Mas, apesar dos malabarismos do autor de Curial para unir tradição e classicismo, nesse caso ele efetuou uma verdadeira pirueta (...) Baco atua verdadeiramente como um deus porque responde a uma concepção teológica de um poder fulminante (...) Em um clímax de conversão, a reação do protagonista tem uma clara explicação dentro de um contexto dantesco (...) Trata-se de um milagre ao estilo humanista.” – BUTIÑÁ JIMÉNEZ, Julia. Tras los orígenes del Humanismo: el “Curial e Guelfa”, op. cit., p. 139-140.
  • 15. Grande condestável – O condestável (comes stabuli – literalmente “conde do estábulo”): “Quanto aos títulos prestigiosos de condestável e marechal, lembremos que significavam então responsável pelas estrebarias e cavalariço (comes stabulimaris kalk). Em suma, eram o chefe palafreneiro e o ferrador, espertos companheiros indispensáveis nas viagens.” – ROUCHE, Michel. “Alta Idade Média Ocidental”. In: ARIÉS, Philippe e DUBY, Georges. História da vida privada I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 411. Com o passar do tempo, o cargo de condestável converteu-se em uma função meramente cortesã, embora diretamente relacionada a um status militar e a uma posição aristocrática predominante. Por sua vez, no Império Bizantino, o cargo de grande condestável equivalia ao comando de um corpo de cavaleiros mercenários ocidentais (não de gregos). Em Castela, o cargo de condestável foi criado em 1382 por João I de Castela (1385-1390) para substituir o de alferes-mor do reino. Tratava-se, portanto, do representante da monarquia na ausência do rei. Em 1473, o cargo transformou-se em hereditário por Henrique IV de Castela (1425-1474), e a partir de então se tornou um título aristocrático. À semelhança do Império Bizantino, a coroa de Aragão também teve um grande condestável, mas com características distintas das do Império Bizantino. Em Portugal, foi segundo condestável do Reino São Nuno Álvares Pereira (1360-1431), vencedor, entre outras, da célebre Batalha de Aljubarrota (1385) contra as tropas de D. João I de Castela (1358-1390). Assim, parece que o autor de Curial faz essa citação com base no título de grande condestável da coroa de Aragão, mas com a estrutura do bizantino – pois as características das forças militares de Curial na narrativa se assemelham mais a este último.
  • 16. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Experiências de tradução. São Paulo: Editora Record, 2007.
  • 17. SCHLEIERMACHER, Friedrich.“Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens”. Citado em ECO, Umberto. Quase a mesma coisaop. cit.
  • 18. COSTA, Ricardo. “O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras”. In: ZIERER, Adriana (coord.). Revista Outros Tempos. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), volume 1, 2004, p. 53-65. Internet, www.ricardocosta.com/pub/conheci_historico.htm
  • 19. Internet, http://www.ivitra.ua.es, tradução que contou com o luxuoso auxílio das correções, comentários e sugestões dos professores Antoni Ferrando (Universitat de València), editor do texto quatrocentista, Vicent Martines (Universitat d’Alacant), diretor do Projeto IVITRA, Julia Butiñá (UNED) e Maria Ángeles Fuster Ortuño (Universitat d’Alacant), estas últimas tradutoras de Curial e Guelfa para o espanhol.
  • 20. BUTIÑÁ JIMÉNEZ, Julia. Tras los orígenes del Humanismo: El «Curial e Güelfa». Madrid: UNED, 2000.
  • 21. LUÍS DE CAMÕES. Os Lusíadas (leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão). Instituto Camões, 2000. Internet, http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/literatura/lusiadas; LUÍS DE CAMÕES. Os Lusíadas. São Paulo: Abril, 2010.
  • 22. SOLER LLOPART, Albert. Literatura catalana medieval. Barcelona: Editorial UOC, 2003, p. 194.
  • 23. GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
  • 24. BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e Imagem. Bauru, São Paulo: Edusc, 2004.
  • 25. DUBY, Georges. Eva e os padres. Damas do século XII. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2001.
  • 26. OPITZ, Claudia. “O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500)”. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das Mulheres 2. A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento, s/d.
  • 27. TUCHMANN, Barbara. A Prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991.
  • 28. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. Estudos sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos. São Paulo: CosacNaif, 2010.
  • 29. TUCHMAN, Barbara W. Um Espelho Distante. O terrível século XIV. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990.
  • 30. PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Editôra Mestre Jou, 1966.
  • 31. SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis. Historia Universal VI. De la crisis del siglo XIV a la Reforma. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1980.
  • 32. MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
  • 33. BOIS, Guy. La Gran Depresión Medieval: siglos XIV-XV. El precedente de una crisis sistémica. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2001.
  • 34. CONTAMINE, Philippe, BOMPAIRE, Marc, LEBECQ, Marc, SARRAZIN, Jean-Luc. La Economía Medieval. Madrid : Ediciones Akal, 2000.
  • 35. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • 36. RUIZ-DOMÉNEC, José Enrique. España, una nueva historia. Madrid: Editorial Gredos, 2009.

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